Jornal EL PAÍS entrevista Roseli Ruiz, do sindicato de Antonio João (MS)
Fazendeira em conflito com indígenas: “Só saio de casa algemada ou morta”
Produtora rural diz que ação para retomar teve terras no Centro-Oeste não foi premeditada
A produtora Roseli Ruiz, presidente do sindicato rural de Antônio João, tornou-se a figura de destaque do conflito que deixou um indígena morto no último dia 29. Foi na fazenda de seu cunhado, vizinha a dela onde o conflito começou, que Semião Fernandes Vilhalva, de 24 anos, foi alvejado por um tiro no rosto depois que um grupo de fazendeiros entrou na área para expulsar os guarani-kaiowá que reivindicam as terras. Exaltada em reuniões e com a imprensa, ganhou fama de pouco amigável, algo que ela faz questão de refutar citando ações assistenciais que executou ao longo dos últimos anos com a comunidade indígena que reivindica sua fazenda.
Na última sexta-feira, ela recebeu o EL PAÍS na sede da associação para uma entrevista. Em alguns momentos, irritou-se com as perguntas, mas contou sua versão do conflito. Após o confronto, que ela narra em detalhes destacando a "adrenalina" da "guerra", Ruiz retomou o controle de uma casa em suas terras. Agora, diz que só sai de lá morta ou algemada. Para ela, os índios entraram em suas terras influenciados pelo Conselho Missionário Indigenista (CIMI), um braço da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, órgão da Igreja Católica. Diz ainda que a igreja está interessada no Aquífero Guarani, a megamanancial de água doce. O CIMI nega as acusações e afirma, por sua vez, que há um “Estado Paramilitar Ruralista” em Mato Grosso do Sul, formado para atacar os índios.
Paulista de São Carlos, Roseli conheceu Pio Queiroz Silva quando cursava Serviço Social em Ribeirão Preto. O marido herdou a fazenda Barra, onde criam gado, do pai Pio Silva, acusado pelos índios de expulsá-los após comprar as terras do próprio Governo do Estado, na década de 1950. Segundo ela, não houve expulsão. Depois da primeira retomada indígena em sua fazenda, em 1998, Roseli voltou para a faculdade de direito e, depois, fez um curso de antropologia, além de uma pós graduação em Arqueologia. Com isso, abriu uma empresa para fazer laudos antropológicos de áreas em disputa.
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Pergunta. Como começou o conflito?
Resposta. Há muitos anos, uma família comprou uma grande área para fazer fazenda no Paraguai. Eles precisavam tirar os índios de lá e doaram um pedaço de terra. Nessa área, morava a família de um índio chamado Alziro Vilhalva, que trabalhava em uma fazenda ao lado da nossa. Um dia, ele ganhou do dono da fazenda uma área para viver mais perto do trabalho [que se tornou a Vila Campestre]. Em 1970, foi criado o CIMI aqui e um antropólogo começou a visitar os lugares onde tinha índio. Todo o lugar tinha índio. Os índios sempre trabalharam na fronteira, sempre procuravam serviço nas fazendas, isso não é novidade para ninguém.
P. E onde moravam esses índios que trabalhavam aqui?
R. Vinham do Paraguai, para procurar serviço.
P. Aqui no Brasil não tinha?
R. Algum dia teve índio, mas não sei se eram esses guarani-kaiowá. Todos esses [que reivindicam a terra], desde quando a gente conhece a história, vieram de lá [Paraguai]. Esse antropólogo começou a visitar as fazendas onde ele sabia que tinha índio morando e começou a falar que eles tinham direito à terra, que tinham que falar que o pai deles morava ali, que o tio morava ali. Um índio contou tudo isso pra gente.
P. A relação até aí era boa, então?
R. Eu era conhecida como a Roseli dos índios! Um índio era picado de cobra aqui, eu botava na minha camionete e levava para o hospital. Todo mundo sabe dessa história. Desde que eu casei, Natal, Dia das Crianças e Páscoa, eu fazia festa para eles. Eu tenho foto da minha filha pequena, vestida de Papai-Noel, com a camionete cheia de brinquedo, distribuindo pros indinhos. A gente distribuía lá, na Vila Campestre, e depois vinha para a cidade. To-do mun-do sabe disso. Tem tudo registrado. Mas em 1998, dia 21 de dezembro, um índio ligou pra gente e falou que ia ter invasão da nossa fazenda. A gente nunca tinha ouvido falar de invasão e nem que índios queriam a nossa terra. Nós éramos amigos deles, convivíamos na maior tranquilidade do mundo. Meu cunhado Dacio tinha avião naquela época, sobrevoou o Campestre e viu a quantidade de gente, de ônibus, chegando. Foi aí que começou. Nunca tinha tido nem discussão. Foi o maior susto do mundo, foram entrando. Não tínhamos nem como levar os peões todos. No dia seguinte, chegou a Polícia Federal, a Funai. Começou a negociação.
Só saio de lá algemada ou morta. A casa é minha! Ou vocês acham que onde vocês moram não tinha índio antes? Dá sua casa para eles!
P. O que aconteceu?
R. O Governo brasileiro começou a fazer um estudo antropológico. O acordo é que os índios ficariam oito meses em um trecho da fazenda Cedro, da irmã do meu marido. Mas isso já tem 17 anos. Eles nunca saíram dessa área. Depois ampliaram para o vizinho, na fazenda Morro Alto.
P. Foi aí que a relação piorou?
R. Eu continuei ajudando. Construí uma escola para eles [na Vila Campestre]. Até que um dia meu marido foi atacado por um índio (mostra a foto dele ensanguentado). Olha, eu sou briguenta, eu grito, eu falo... Mas meu marido, você pergunta para todo mundo, é uma pessoa calma, ponderada, um homem que não encrenca com ninguém, não briga. Uma pessoa excelente. Nesse dia, eu falei: chega! Não tem mais amizade. Mas, há quatro anos, me disseram que tinha chegado um pessoal com outra cabeça, mais estudado, que queria conversar. E vieram. Nos últimos quatro anos vivemos em paz. Assumi o sindicato, trouxemos cursos para eles. Temos um ônibus para tratamento dentário, eu mandava buscar na aldeia. Tudo sempre do jeitinho que eles quiseram. Montei até uma cooperativa para eles.
P. E por que a senhora fazia isso?
R. Eu não comecei a ajudá-los quando eles invadiram. Desde que casei, eu queria conhecer os índios. Contei que desde o começo da história que eu fazia Natal, Ano Novo... Eu gostava. Sem interesse nenhum! Eles lá naquela pobreza. A ausência total do Estado. Aqui em Antônio João, você pode sair e ver quantas pessoas eu levei para operar, para hospital. Eu faço porque eu tenho facilidade, gosto. Não sei porque as pessoas acham que a gente só faz as coisas por interesse. Mas é claro. Não vou dizer para você que não tenho interesse de conviver pacificamente. Agora, pergunta quantos [deles] que têm interesse de viver pacificamente?
P. E como foi esse último conflito?
R. Na segunda-feira, dia 17, começou um curso lá na aldeia de cultivo de mandioca a pedido dos caciques. Quando cheguei de camionete, vi um coordenador do CIMI na aldeia. Na quarta-feira, perto da hora do almoço tocou o telefone e um cacique me ligou, falou que todos os caciques tinham sido destituídos e que eles iam invadir. Destituíram até a Polícia Indígena, um grupo que eles formaram para fazer a segurança da aldeia e que a gente dava uma ajuda de custo.
P. Mas o CIMI tem poder de destituir algum cacique?
R. Eles mandam!
P. Mas o que aconteceu em seguida?
R. Um cacique ligou e avisou que já estavam descendo. Peguei duas pessoas aqui, pedi para irem comigo até a fazenda. Passei no Campestre, entrei na escola e perguntei para um cacique se eles iam mesmo invadir minha propriedade. Ele não disse nem sim nem não. Falei: ‘eu sou amiga de vocês, mas sei ser inimiga’. Eu sempre falava que se entrassem na minha casa de novo, eu morreria, mas mataria uns 20. Mas eu nem tenho revólver, nem tenho arma na fazenda. Dessa vez, falei o contrário. Falei que não ia fazer nada, que ia sair da fazenda e ficar assistindo até onde ia a coragem deles de fazerem isso comigo. Aí já colocaram na internet que eu ia matar os índios.
P. Mas não entraram nessa noite na sua fazenda.
O que a Igreja Católica quer? O que eles querem aqui é a água. Aqui tem oAquífero Guarani e a prospecção é muito fácil
R. Recebi um telefonema dizendo que eles não iam entrar porque eu tinha ameaçado e que eles estavam com medo. Disseram que iam entrar na fazenda Primavera. E entraram. Sempre tem um lá dentro que informa a gente, um coitado que tem um celular e que precisa de dinheiro que informa, vende foto, faz tudo. Bom, dias depois inventaram de invadir as três fazendas da família do meu marido. É igualzinho ao morro do Rio de Janeiro: a maioria é gente boa, mas tem meia dúzia de bandido que leva a massa que não tem opção.
P. E como aconteceu o confronto no sábado, na retomada da sua casa?
R. Na sexta, teve uma reunião em Campo Grande sobre a questão. Todos os sindicatos rurais foram. Eu tinha marcado uma reunião aqui no sábado e eles vieram para cá. Estava o senador Moka [PMDB], o deputado [federal Luiz Henrique] Mandetta [DEM], a deputada [federal] Tereza Cristina [PSB]... Contei o que tinha acontecido, que minha vida virou de pernas para o alto. E falei que eu voltaria para a minha casa porque estava de saco cheio. Peguei a camionete e saí. Começou a sair todo mundo atrás. Fui na minha casa e entrei. Entrei como? Por favor, saiam daí? Não. Foi luta mesmo, corporal, todo mundo com pau na mão. Estamos cheios de produtor rural marcado. E aí eu tomei conta da minha casa e estou lá. E só saio de lá algemada ou morta. A casa é minha! Aquilo é minha vida. Nós compramos, pagamos e eu perdi minha juventude ali. Ou vocês acham que onde vocês moram não tinha índio antes? Dá sua casa para eles!
P. Então não houve algo planejado, de todos saírem juntos para as fazendas?
R. Não! Foi um susto. Eu só pensei nisso na hora que eu fui subir ali. Me deu um clique e eu falei: "Eu vou embora pra minha casa, não vou ficar aqui". Eles me seguiram.
P. Alguém de vocês estava armado?
R. Eu não sei. Estão falando que tinha arma. Eu não vi arma.
P. A gente viu alguns indígenas com uma marca no corpo, que parecem de bala de borracha. Alguém carregava isso?
R. Eu não sei. Eu não estava armada. Ninguém da minha família estava armado. Estava Ricardo Bacha, que foi candidato ao Governo do Estado, com a mulher. Estava a doutora Aldinha, que é irmã do ex-presidente da Famasul (associação dos produtores rurais do estado). Estava a dra. Miriam, essa que discutiu com o ministro na reunião (ministro da Justiça, que se reuniu com produtores por causa do conflito), que é médica e tem a irmã que trabalha na Receita Federal. Um monte de mulher! Você acha que o meu marido e esses homens seriam irresponsáveis a ponto de chamar para ir para lá com arma onde tinha um monte de mulher? Tinha mais de sessenta camionetes atrás. Eu nunca pensei num negócio desses, eu nunca imaginei. E fomos lá juntos, não fomos para matar ninguém, não! Nós chegamos e já entramos na varanda. Foi tabefe para todo lado, eles não esperavam.
P. Quantos índios eram?
R. Menina, você precisa ir para uma guerra para ver a adrenalina que é. Você não vê nada! E você se agiganta. É uma coisa impressionante, você não tem medo. Foi aquela luta corporal ali.
P. E como o indígena Semião morreu?
R. Eu não sei, não estava lá.
P. Você acusou o CIMI de estimular as invasões. Por quê?
R. Vamos buscar na história, como a Igreja Católica começou. O que eles querem? Eles querem as nossas riquezas! A maior riqueza que nós temos! Há 16 anos eu já estudava o porquê de tanto interesse internacional, dava as palestras e falavam que eu era louca. Eu dizia que o que eles querem aqui é a água. Aqui tem o Aquífero Guarani e a prospecção é muito fácil.
P. Então a senhora acha que há um complô do Vaticano por causa do Aquífero Guarani?
R. Não é só do Vaticano. A Inglaterra... Você sabia que quando foi demarcar a Raposa Serra do Sol o Charles esteve no Brasil?
P. Quem?
Existe uma indústria do conflito. Cada vez que tem um conflito vem rios de dinheiro do exterior
R. O príncipe Charles! E sem comunicar oficialmente o Governo brasileiro. Vai também achar que eu sou louca... Você é jovem, vai estudar um pouco de história que vai ver os interesses da Igreja desde que o mundo é mundo. Eles querem as nossas riquezas. Porque se eles quisessem melhorar a vida desses índios, onde conseguiram demarcar eles não estavam nessa miséria. Vai lá em Roraima! Andei tudo lá, tenho cliente lá.
P. Mas você não acha que o Governo brasileiro agiria para evitar isso?
R. Ah, vai! Olha os yanomami! Aquilo está virando um país! A grande meta deles é fazer uma colcha de retalhos. Você não sabe que os yanomami estão na ONU com o processo de independência avançado? Aqui eles querem fazer uma grande nação Guarani.
P. Querem a independência do Brasil?
R. Sim! Igual o Rio Grande do Sul já quis ser independente. Mesma coisa. Começaram isso em 1970 e estão avançando. Eles [igreja] vão acabar com todos esses índios!
P. O ministro da Justiça veio aqui e falou que teria uma negociação.
R. Há dois anos, o mesmo Governo fez a mesma promessa quando botaram fogo lá em Sidrolândia. Foram dois anos de negociação. Mentiras, mentiras, mentiras. Estão sem credibilidade. Falando que vai fazer... Quando? Que horas? De que jeito? O governo, se quisesse, já tinha feito. Existe uma indústria do conflito. Cada vez que tem um conflito vem rios de dinheiro do exterior.
“Foi uma guerra, um massacre”
Indígenas guarani-kaiowá ocuparam 5 fazendas em disputa no Mato Grosso do Sul e entraram em confronto com fazendeiros; um índio foi morto por um tiro
Às margens da rodovia que corta o município de Antônio João, no Mato Grosso do Sul, cinco homens do Exército, armados, olhavam atentamente o interior dos veículos que passavam na última sexta-feira. Camionetes da Força Nacional e carros das Forças Armadas circulavam pela estrada e um helicóptero militar rondava no céu. O cenário, que parecia o prenúncio de uma guerra, dava pistas da gravidade a que chegou o conflito por terras no Estado. Seis dias antes, Semião Fernandes Vilhalva, um guarani-kaiowá de 24 anos, foi assassinado em plena luz do dia em uma fazenda. Levou um tiro na cabeça, ao procurar o filho de cinco anos na beira de um riacho.
Carregado morro acima já sem vida pelos próprios indígenas, o rapaz se tornava a mais nova vítima de uma longa disputa por terras que opõe índios e fazendeiros. No mesmo dia, dezenas de outros indígenas, incluindo mulheres e crianças, ficaram feridos a pauladas ou por tiros de bala de borracha, que deixaram marcas pelo corpo, vistas pela reportagem. No centro da cidade chegaram boatos de que, como vingança, eles incendiariam diversas casas. A pacata Antônio João, de 8.612 habitantes, entrou em pânico.
Os índios reivindicam desde o final dos anos 1990 a ocupação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, de 9.317 hectares (o equivalente a nove mil campos de futebol), hoje dividida por cinco fazendas de criação de gado, três delas dos filhos de Pio Silva. Silva, segundo os guarani-kaiowá, os expulsou da área na década de 1950 ao lado de outros quatro homens, depois de comprarem os lotes do próprio Governo do Mato Grosso do Sul. Seus herdeiros dizem que só havia uma família de índios na área.
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Segundo os indígenas, com a chegada dos novos donos, muitos índios passaram a trabalhar para os fazendeiros e receberam uma área perto das fazendas, chamada de Vila Campestre. No final da década de 90, com o espaço já pequeno para as famílias em crescimento, decidiram retomar o terreno das fazendas para fazer uma nova aldeia, e entraram em confronto com os fazendeiros. Desde então, ao menos três índios já morreram, entre eles Durvalino Rocha, cunhado de Vilhalva, em 2005. A história que se repete em ao menos outras 80 áreas do Mato Grosso do Sul, um Estado com forte vocação agrícola e que é palco dos piores conflitos do tipo no Brasil. A espera de uma resolução para o conflito, muitos grupos improvisam aldeias na beira de estradas. Sem atendimento médico, 2.112 índios morreram nos últimos 13 anos por causas evitáveis no Estado, conforme mostrou levantamento do EL PAÍS sobre a saúde indígena.
No último dia 22, um sábado antes do da morte de Vilhalva, os guarani-kaiowá deram início ao maior processo de ocupação de todos esses anos. Primeiro entraram na fazenda Primavera, uma das cinco que reivindicam. Em seguida, ocuparam as outras quatro áreas.
No sábado seguinte, dia 29, cerca de sessenta camionetes deixaram a sede do sindicato rural de Antônio João. Seguiam os passos de Roseli Ruiz, presidente da associação e mulher dos filho mais velho de Pio Silva, herdeiro da fazenda Barra, uma das últimas ocupadas pelos índios. O grupo contava ainda com Dácio Queiroz, também filho de Pio, dono de outra fazenda invadida, a Fronteira, e com políticos, como o deputado federal pelo DEM Luiz Henrique Mandetta, um dos integrantes da comissão que discute a PEC 215, uma proposta de emenda à Constituição que quer mudar a forma como a demarcação de terras indígenas é feita no país.
O séquito de camionetes percorreu por cerca de 10 minutos a rodovia, entrou pela estrada de terra e parou em meio a freadas bruscas, que levantaram poeira, perto da casa principal da fazenda Barra. Foram recebidos por homens, mulheres, adolescentes e crianças aos gritos, com paus e arco e flecha nas mãos. Os índios relatam que, depois de alguma discussão, os homens dispararam tiros para o alto e armas com balas de borracha em direção a eles –o que os fazendeiros negam. Em meio a uma intensa correria, motos de indígenas acabaram incendiadas, outra delas foi furada por tiros. Um índio foi cercado e atacado com um pedaço de pau que abriu sua testa. O confronto se estendeu para a fazenda Fronteira, logo ao lado. Crianças se perderam. Entre elas, o filho de Vilhalva. Não demorou muito e o rapaz apareceu morto. A Força Nacional, uma espécie de tropa de elite do Governo federal formada por policiais militares de vários estados, demorou uma hora para chegar, afirmam os índios.
"O que aconteceu foi um massacre, uma verdadeira guerra", diz uma liderança que não quis se identificar por medo de vingança. "Estava com meu neto de um ano no colo. Ele foi atingido por balas de borracha e chegou a desmaiar", conta Leni, outra das indígenas do movimento. Fazendeiros afirmam que foram atingidos por pauladas e que há marcas de bala em seus veículos.
O processo de demarcação da terra já foi autorizado pelo Governo federal, mas acabou barrado no Supremo Tribunal Federal em 2005. Desde então, o ministro Gilmar Mendes, relator do processo que afirma que o tema é "muito complexo", ainda avalia se a área deverá ir para os índios ou para os fazendeiros. “Nós esperamos pacientemente por dez anos a Justiça resolver a questão. Mas decidimos agir para não esperar a vida toda”, diz Kuña Poty, de 47 anos, que agora vive na sede da Primavera. Roseli e Dácio conseguiram recuperar suas casas após a confusão e suas famílias voltaram para as fazendas, onde foram alocados homens do Exército e da Força Nacional. Os índios continuam no restante da área.
Negociação
Após a morte de Vilhalva e toda a atenção que a questão ganhou na imprensa, deputados tentaram acelerar a aprovação da PEC 215 no Congresso. A proposta, que já ganhou um relatório final da comissão que a analisa e deve ser encaminhada para a votação ainda neste ano, dará à Câmara o poder de aprovar as demarcações de terra -uma prerrogativa hoje do Executivo- e permitirá a indenização de terras demarcadas. Em uma Casa lotada de parlamentares ruralistas, isso deverá dificultar que os índios consigam qualquer nova área que reivindicam.
O Governo, por sua vez, decidiu tentar negociar. Na semana passada, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, esteve na capital do Estado, onde se reuniu com fazendeiros e com indígenas. Em meio a uma discussão tensa, que teve até bate-boca com uma produtora rural, Cardozo propôs que os índios selecionem cinco áreas em litígio para a demarcação urgente e prevê como solução a indenização aos fazendeiros. Um problema, visto que pela legislação o Governo pode apenas pagar pelas benfeitorias feitas na terra e não pelo terreno, que já seriam dos índios e, portanto, da própria União. Os fazendeiros não aceitam receber menos, já que pagaram pelas terras de boa-fé.
A proposta de Cardozo é vista com ceticismo por ambas as partes. Há dois anos, após a morte em 2013 de um índio terena no município de Sidrolândia, também no Mato Grosso do Sul, uma mesa de negociação foi formada pelo ministério, com a mesma proposta. Depois de inúmeras negociações, não se chegou ao acordo esperado. “São mentiras, mentiras e mentiras. O Governo está sem credibilidade. A verdade é que, se eles quisessem resolver a questão já teriam resolvido”, reclama Roseli. Seu cunhado não quis falar com a reportagem.
Enquanto o impasse não é resolvido, os índios garantem que não sairão das áreas ocupadas. Nos próximos dias, pretendem começar a montar barracas e, num futuro próximo, criar uma roça em meio a área desmatada para o pasto do gado. O clima de guerra promete continuar.
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