"A picada do fim", SÉRGIO RODRIGUES - O ESTADO DE S.PAULO
Ofídios, animais associados à peçonha, à índole agressiva e à capacidade de atacar à traição, não gozam de boa reputação na língua popular quando se trata de metáforas. Embora a carga semântica do vocábulo “cobra” tenha uma margem de ambiguidade (uma pessoa ardilosa e falsa pode ser chamada de cobra, mas quem é bamba em determinada atividade também), o mesmo não se dá com a jararaca, cujo único sentido figurado é francamente negativo: “pessoa má, traiçoeira ou geniosa”, registra o Houaiss. Não falta sequer o agravante do sexismo: a mesma fonte acrescenta que a expressão se aplica principalmente a mulheres.
A palavra de origem tupi é quase tão antiga quanto o Brasil: data de 1560, quando o padre José de Anchieta tornou-se o primeiro a empregá-la numa carta. Designa diversas serpentes do gênero Bothrops nativas destas terras, em geral de coloração parda com manchas escuras triangulares, todas extremamente venenosas, que os índios já temiam quando os portugueses aprenderam a respeitá-las. Segundo o estudioso baiano Teodoro Sampaio, que no início do século 20 publicou o referencial O Tupi na Geografia Nacional, o sentido original do tupi yara’raka era “que colhe ou agarra envenenando”. Encontrar uma delas de mau jeito, naquele tempo, era o fim da picada – ou a picada do fim. Chamando o bicho de Geraráca, um historiador primitivo registrou em 1576 que a vítima de seu veneno estava perdida, pois “o mais que dura são vinte e quatro horas”.
Podemos começar a buscar uma explicação para o ofídio de Lula na profundidade das raízes que a jararaca deita no imaginário brasileiro. O grande talento retórico do ex-presidente, de corte populista e inegavelmente eficiente, sempre foi o de fazer soar esse tipo de corda. Se a população do País é hoje maciçamente urbana, as marcas da glória sinistra da jararaca são indeléveis em nossa cultura, registradas em clássicos como Vidas Secas, de Graciliano Ramos (“O inferno devia estar cheio de jararacas...”) e Macunaíma, de Mario de Andrade (“Com a jararaca ninguém não pode não”). Ao mesmo tempo, trata-se por isso mesmo de um bicho perseguido pelo poder do homem, ou seja, uma vítima – como Lula se apresentou. Mas uma vítima perigosa que só deve ser desafiada com um golpe definitivo (“na cabeça” e não “no rabo”), do contrário se voltará para destruir o desafiante. A jararaca de Lula é uma ameaça dura disfarçada de prosa caipira.
SÉRGIO RODRIGUES É JORNALISTA, ESCRITOR E CRÍTICO LITERÁRIO. AUTOR DO ROMANCE O DRIBLE (COMPANHIA DAS LETRAS)
O chefe do bando, editorial do ESTADÃO
É melancólico o fim que se anuncia da carreira política de um líder que foi capaz de vender a ilusão de que poderia mudar para melhor o Brasil. O carisma e a habilidade de Luiz Inácio Lula da Silva como líder populista não podem ser subestimados, mas a política costuma ser implacável com quem passa dos limites na tola pretensão de colocar-se acima do Bem e do Mal e atribuir-se onipotência divina. A soberba de Lula resultou na falência política, econômica e moral do País, responsabilidade que não pode ser jogada integralmente nos ombros débeis daquela que foi colocada na Presidência da República para satisfazer a vontade de seu mentor. Dilma Rousseff, condenada ao desapreço dos brasileiros, já paga um alto preço por sua incompetência. Chegou a vez de Lula, o grande responsável pela nefasta “era petista”, prestar contas de seus atos.
Nos últimos dias, as notícias relacionadas às investigações sobre a corrupção na gestão pública, para a qual o “pragmatismo” de Lula escancarou as portas do governo, não fizeram mais do que revelar aquilo que já era esperado nessa fase das apurações. Essas investigações exigem especial cuidado por causa de suas inevitáveis implicações políticas e consequente repercussão na opinião pública. É o que justifica o nome de Lula ter aparecido oficialmente como investigado apenas agora.
A amplitude e a profundidade da corrupção revelada no governo em dois anos de trabalho árduo e minucioso realizado pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal (MPF) levaram desde logo a uma questão óbvia: é possível que todo esse mar de lama tenha inundado o governo sem a participação efetiva ou ao menos a cumplicidade tácita dos mais altos mandatários? A resposta mais do que evidente é não. Por isso, a maioria dos brasileiros jamais se iludiu a respeito. E a delação do ex-líder do governo no Senado Delcídio Amaral reafirma essa evidência, ao acusar diretamente Dilma e Lula, entre outras coisas, de tentar criar obstáculos às investigações.
Apenas a paixão política e os interesses contrariados, portanto, podem motivar a contestação do trabalho que vem sendo executado pela PF, pelo MPF e pelo Poder Judiciário para pôr termo à impunidade dos poderosos, tornando finalmente realidade entre nós o princípio democrático de que todos são iguais perante a lei.
A partir do instante em que Lula irresponsavelmente convoca a reação das ruas contra a Lava Jato e o que ela significa, é importante lembrar que o ex-presidente entra nessa história na condição de poderoso e não de fraco e oprimido perseguido injustamente pelos malvados inimigos do povo. Lula está com a polícia em seus calcanhares não porque é um nordestino que nasceu na pobreza e subiu na vida. Lula está nessa triste situação porque deixou que o poder lhe subisse à cabeça, deslumbrou-se com a veneração da massa, com o protagonismo político e com a vassalagem interessada de políticos medíocres, intelectuais ingênuos ou vaidosos e, principalmente, com a bajulação de homens de negócio gananciosos.
Ao longo de toda sua vida pública, mas principalmente depois que se tornou presidente da República, Lula deu reiteradas demonstrações de tolerância com desvios de conduta em seu governo e de certas vacilações de caráter. O mensalão é o maior exemplo disso. Declarou-se “traído” e pediu “desculpas” ao País. Não demorou muito para que se constatasse ser isso mais um de seus jogos de cena para enganar os incautos. Passado o efeito desejado, Lula afirmou que o mensalão era “uma farsa” que ele se dedicaria a desmascarar tão logo deixasse o poder. E a essa altura o petrolão já abastecia as algibeiras da tigrada.
A Operação Aletheia, que levou Lula a depor à PF, tem na mira “organização criminosa infiltrada dentro do governo federal que se utilizava da Petrobrás e de outras empresas para financiamento político e também para apropriação pessoal”. Essa “organização criminosa”, segundo o procurador Carlos Fernando Santos Lima, “certamente tem um comando”. Todo o Brasil sabe quem ocupa o posto.
Dilma defende Lula num encontro com governadores e sofre uma contestação (blog do Josias / UOL)
Dilma Rousseff foi submetida a uma saia justa ao dizer, num encontro com governadores, que ficara “indignada” com o tratamento “desrespeitoso” dispensado a Lula por Sérgio Moro, juiz da Lava Jato. Um dos visitantes, Pedro Taques (PSDB), governador de Mato Grosso, retrucou a anfitriã: “Entendo que não houve desrespeito, presidente. Ninguém está acima da lei.”
Os governadores voaram até Brasília para discutir, na noite da última sexta-feira, o alongamento das dívidas dos seus Estados com a União. Horas antes, agentes da Polícia Federal haviam executado uma ordem de “condução coercitiva” de Lula, para prestar depoimento sobre a suspeita de receber vantagens de empresas pilhadas roubando a Petrobras.
Dilma enxergou na coerção ordenada por Moro um “abuso de autoridade”, pois “bastava convidar” Lula, que “não se negaria a prestar os esclarecimentos”. Ao contraditá-la, Taques chamou Dilma de “presidente”, não de presidenta, como ela prefere. Brindou-a, de resto, com um cerimonioso “vossa excelência”. Ex-procurador da República, ele sapecou:
“Eu não sairia desta sala com a consciência tranquila e não respeitaria o bom povo de Mato Grosso, que me mandou aqui, se não expressasse minha opinião. Entendo que não houve abuso ou perseguição. Ninguém está acima da lei. Todos, inclusive eu, podemos ser investigados. A lei não pode servir para beneficiar amigos nem para prejudicar inimigos.”
Além das referências a Lula, Dilma tomou o tempo dos governadores para defender a si mesma das acusações feitas por seu ex-líder no Senado, Delcídio Amaral, hoje um delator premiado da Lava Jato. Delcídio disse, entre outras coisas, que Dilma sabia que a refinaria de Pasadena, no Texas, fora adquirida com sobrepreço pela Petrobras, para que a diferença fosse usada no pagamento de propinas.
Dilma presidia o Conselho Administrativo da Petrobras na época em que o negócio foi fechado. Contra o ataque de Delcídio, ela exibiu aos governadores decisão do procurador-geral da República Rodrigo Janot. Em despacho de julho de 2014, o chefe do Ministério Público Federal arquivara representação em que um grupo de senadores pedia a abertura de inquérito para responsabilizar Dilma pelo prejuízo imposto à Petrobras –coisa de US$ 800 milhões.
Por mal dos pecados, Pedro Taques assinou a representação protocolada na Procuradoria contra Dilma. Na época, ele era senador pelo governista PDT. Viu-se compelido a mencionar o fato na reunião da última sexta: “Presidente, quero dizer a Vossa Excelência que eu, pessoalmente, redigi essa peça. Representei contra a senhora na Procuradoria. Meu nome está aí. Não posso esquecer o que assinei e redigi. Eu e colegas como Cristovam Buarque, Pedro Simon, Randolfe Rodrigues… Li a decisão do procurador-geral. Respeito a sua história. Mas não renego o que escrevi.”
“Você viu a minha resposta ao procurador?”, indagou Dilma, determinando a um auxiliar que entregasse cópia a Taques. O governador respondeu que já conhecia a peça. Não quis polemizar com a presidente. Autorizado, deixou a reunião antes do término.
Nenhum dos outros governadores ecoou as observações do colega matogrossense. Ao contrário. Vários endossaram o desagravo a Lula e solidarizaram-se com Dilma. Entre eles o alagoano Renan Filho (PMDB), o piauiense Wellington Dias (PT) e o cearense Camilo Santana (PT).
O governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg (PSB), que também era senador e assinou a representação contra Dilma, preferiu silenciar. Vice-governadora do Paraná, Cida Borghetti (Pros) representou o governador tucano Beto Richa. Disse na reunião de sexta-feira que os ataques a Dilma atingem a mulher brasileira.
Neste sábado, Dilma visitou Lula na cobertura dele em São Bernardo. Reiterou a tese de que seu padrinho político sofreu uma “violência injustificável''. Em nota, o juiz Sérgio Moro defendeu a ação envolvendo Lula. O Ministério Público tachou de “cortina de fumaça'' o debate sobre o método empregado para ouvir Lula. em torno do ex-presidente.
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