Quem são os donos dos rios do Brasil? Transporte e energia disputam uso da água
"Rio Tietê, conto com você uma vida inteira". Os versos do hino da cidade de Pederneiras, no interior paulista, mostram o status quase sagrado de uma hidrovia que ajuda a impulsionar a economia brasileira.
Seja gerando eletricidade ou transportando produtos agrícolas, o rio é fundamental. Mas a crescente escassez de água provocou uma disputa de quem tem mais direito de explorar as águas dos rios, e especialistas dizem que, num cenário cada vez mais agudo de escassez, o governo precisa solucionar esse impasse.
A escassez de água é "o novo cenário de normalidade, não uma emergência", disse Munir Soares, especialista em energia do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), à Thomson Reuters Foundation.
Um dos principais corredores de transporte do país para o escoamento da produção de soja, milho, fertilizantes e outros produtos agrícolas, a hidrovia Tietê-Paraná ficou fechada por 20 meses entre 2014 e 2016 devido à seca e ao desvio de água para gerar energia, com uma perda estimada de 1 bilhão de reais para empresas de navegação e de 1.600 empregos.
Diante de novas ameaças de fechamento da hidrovia devido à escassez de chuvas, especialistas cobram do governo e órgãos reguladores mais clareza sobre quem pode explorar o rio, e quando.
A agricultura e o agronegócio responderam por cerca de um quarto do Produto Interno Bruto brasileiro em 2017, de acordo com a Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA). O Brasil é o terceiro maior produtor de eletricidade das Américas, segundo a Administração de Informação de Energia (AIE), do governo dos Estados Unidos.
No entanto, apesar da existência de uma política nacional que regulamenta o uso dos recursos hídricos, há uma "zona cinzenta" que desencadeia conflito entre empresas de transporte e energia, segundo Soares.
Em períodos de escassez hídrica, a lei não define claramente quem deve ter acesso prioritário ao rio, que é rico em corredeiras e pontuado por quedas acentuadas, acrescentou o especialista.
Em tempos de chuvas inconstantes, quando o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) determina o despacho de mais energia hidrelétrica, o que demanda mais água para a geração, isso pode impedir a navegação na hidrovia do Tietê, explicou Soares.
Para Soares, se nesta conjuntura a água do rio vai ser usada para gerar eletricidade, os órgãos reguladores precisam deixar isso claro, de modo que as empresas de navegação não sejam surpreendidas e tenham tempo para buscar outras alternativas para evitar prejuízos.
"Se as empresas de transporte não honrarem seus contratos, elas terão problemas."
Segundo Adalberto Tokarski, diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), algumas empresas de transporte entraram com ações na Justiça por causa do prejuízo causado pelo fechamento da Tietê-Paraná em 2014-2016.
"A lei é muito clara, mas ela não é respeitada por causa do poder de interferência do setor elétrico. A lei não dá supremacia ao setor elétrico. Ela garante os usos múltiplos da água, tem que ter um equilíbrio", disse.
DISPUTA PELO RIO
A disputa pelo uso da hidrovia Tietê-Paraná ocorre desde 2001, quando o país enfrentou uma grave crise de falta de energia elétrica devido à escassez de chuvas, e a hidrovia quase foi fechada.
Em 2014, o Brasil sediava a Copa do Mundo e a água que poderia ter ajudado a manter os níveis da Tietê-Paraná foi usada para gerar eletricidade devido ao aumento da demanda e ao atraso da entrada em operação de grandes usinas.
Em São Paulo, o abastecimento de água potável chegou a níveis críticos.
Níveis mais baixos dos rios forçam as empresas a reduzir a quantidade de produtos transportados na hidrovia, podendo até mesmo impedir que as barcaças usem o corredor por completo, segundo Raimundo Holanda, presidente da Federação Nacional das Empresas de Navegação Aquaviária (Fenavega).
Em 2017, a hidrovia transportou um recorde de 8,91 milhões de toneladas de carga, um salto de quase 50 por cento ante 6,3 milhões em 2013, informou o Departamento Hidroviário do Estado de São Paulo por email.
Mas isso estará em xeque se a água do rio for desviada novamente para abastecer as barragens --em um país que depende da energia hidráulica para gerar cerca de dois terços da energia elétrica produzida, disse Tokarski.
A decisão de fechar ou não a hidrovia está nas mãos da Agência Nacional de Águas (ANA).
Diante do risco de fechamento da hidrovia no final do ano passado, a ANA criou uma "sala de crise" que reúne o ONS, a Antaq e representantes do setor de transporte para avaliar as condições de navegação da hidrovia e os níveis de água das barragens.
Em comunicado, a ANA informou que “busca atender aos diversos usos da água sem privilégio ou prejuízo a um setor usuário”, mas admitiu que “nem sempre é possível atender às demandas de todos os setores usuários e pode haver conflitos entre os usos”.
O ONS informou, por meio de nota, que sempre procura fazer a melhor gestão dos recursos hídricos, em articulação com a ANA, de forma a tornar compatível a geração de energia com o atendimento aos usos múltiplos da água. No caso da hidrovia Tietê-Paraná, as condições hidrológicas ainda estão sendo avaliadas, pois estamos no meio do período seco, segundo o ONS.
EMPREGOS EM RISCO
Localizada a pouco mais de 300 quilômetros da capital paulista --–onde o Tietê é símbolo da poluição dos rios--, Pederneiras é um ponto estratégico da hidrovia, no qual a carga é transferida para os trens, que a levam até o Porto de Santos para ser exportada, disse Holanda.
"O rio Tietê não é apenas um rio", disse Vicente Minguili, prefeito da cidade conhecida como "a capital da hidrovia".
"A hidrovia é muito importante para gerar empregos e atrair investimentos."
Alan de Moura Lima é um dos 1.600 trabalhadores que perderam o emprego quando a Tietê-Paraná fechou há quatro anos.
"Foi difícil. Passei boa parte da minha vida profissional nessa hidrovia", disse Lima à Thomson Reuters Foundation sobre os trilhos da ferrovia em uma ponte sobre o rio Tietê.
Lima trabalhou na área de logística de duas empresas ligadas à hidrovia por quatro anos, mas depois de ficar desempregado durante um ano, montou uma empresa de revenda de peças com a família e não pensa em voltar para a hidrovia.
"Todo ano há uma ameaça de fechar a hidrovia. Eu não quis voltar por causa dessa incerteza."
CONFLITOS NA AMAZÔNIA
Conflitos sobre o direito de propriedade dos rios também ocorrem na Amazônia, onde grandes usinas hidrelétricas foram construídas nos últimos anos, provocando queixas de empresas de navegação sobre o efeito das barragens nos níveis das águas dos rios.
Em Porto Velho (RO), empresas de navegação disputam o Rio Madeira com a companhia de energia responsável pela Usina Hidrelétrica de Santo Antônio --uma das maiores do Brasil.
Leudo Buriti, presidente da Sociedade de Portos e Hidrovias do Estado de Rondônia (SOPH), reclama de mudanças bruscas nos níveis da água dos rios, o que interfere na navegação --o que ele diz que não acontecia antes da construção da barragem.
Em um comunicado por email, a Santo Antônio Energia disse que a usina não interfere nos níveis do rio porque o fluxo que a barragem recebe do rio é imediatamente descarregado.
"As alterações que ocorrem na vazão do rio Madeira ao longo de todos os anos são decorrentes do degelo dos Andes e dos períodos de chuvas intensas na cabeceira do rio", disse a empresa.
Segundo Buriti, outra queixa é a retenção de troncos de árvores que descem pelo rio Madeira pela usina e a liberação desses troncos de uma só vez, atingindo portos e barcos, causando prejuízo e acidentes.
"Temos que gastar muito dinheiro para retirar esses troncos e devolvê-los ao rio. Esses troncos causam problemas com pequenas embarcações de ribeirinhos e pescadores e também atingem as barcaças."
A Santo Antônio Energia disse que a hidrelétrica usa uma estrutura que impede que os troncos cheguem às turbinas, mas sem retê-los, permitindo que sigam seu curso natural.
Benedito Braga, presidente do Conselho Mundial da Água e ex-presidente da ANA, disse que a ANA tem um papel cada vez mais importante na mediação desses conflitos em tempos de crescente escassez de água diante das mudanças climáticas.
"Em função da predominância da geração hídrica, o setor hidroviário tem uma dificuldade com o setor elétrico. Mas a ANA tem todas condições para encontrar soluções para o setor elétrico e a navegação".
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