"O enterro dos ossos", por JOSÉ NÊUMANNE, e "Corrupção, impeachment e reforma", (EDITORIAL DO ESTADÃO)

Publicado em 30/12/2015 16:51
no blog de Augusto Nunes, em veja.com
 

José Nêumanne: O enterro dos ossos

 

Publicado no Estadão

 

Espere mais um pouco. Este ano da (des)graça de 2015 não acabará amanhã nem talvez em mais 12 meses: ele tem tudo para se arrastar pelo menos até o réveillon de 2019, quando só então a esperança poderá ressurgir.

Militantes ocultos, embalados pelos eflúvios da ceia natalina, apostam que as facas voltaram às bainhas e o pó da rua assentou desde que a dissidência liderada por Barroso, o copioso, deu vitória parcial (que pode se tornar de Pirro) ao desgoverno Dilma há duas semanas. Ledo e ivo engano! A maioria governista flutuante (de 5 a 8, mais o voto de Minerva de Lewandowski sempre a favor) decretou a intervenção do Judiciário, de início, sobre o Legislativo e, em seguida, sobre nossa língua materna, que está ficando menos culta e mais feia.

Pois o artigo 51, parágrafo 1.º, da Constituição vigente, pelo menos até segunda ordem na próxima sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF), reza: “Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I – autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado”. Ao transferir para o Senado o poder de abrir o processo, avalizado por maioria de dois terços dos deputados, o STF deu ao verbo um sentido que o dicionário do mestre Houaiss não reconhece entre uma miríade de significados: o de apenas encaminhar. Autorizar quer dizer: tornar lícito, permitir, dar permissão a, consentir, dar direito a, dar motivo a, possibilitar, tornar válido, abonar, justificar e validar.

Mais subversivo ainda foi dar ao advérbio de modo privativamente, que significa exclusivamente, singularmente, especificamente, o sentido de subsidiariamente, cuja palavra latina, de que decorre no vernáculo, representa algo “na reserva, na retaguarda”. Com a troca semântica, o STF dispôs-se a atuar como Poder não autônomo (para Houaiss, “dotado da faculdade de determinar as próprias normas de conduta, sem imposições de outrem”), mas submisso (“disposto à obediência”, idem).

De volta à História: por que, além de provar a subserviência do Judiciário ao Executivo, a vitória de Dilma não seria parcial e lembraria a do rei de Épiro e Macedônia, ao lamentar uma batalha vitoriosa por ter nela perdido tantos soldados que passou a considerar a consequência inevitável da derrota na guerra? É que, numa prova de que o cérebro não é sua arma favorita, a presidente Dilma, no dia seguinte a esta, em vez de estender a mão à nação, que amarga índices apavorantes de queda de atividade econômica, emprego e renda e inflação e dólar em alta, para buscar a conciliação para sair do atoleiro, enfiou o pé no acelerador: deixou de fingir que acenava ao mercado, abraçou o populismo e beijou o desastre.

Cérebro também não é o forte do candidato que ela derrotou em 2014. Aécio Neves flertou com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, cuja popularidade é pior que a de Dilma, e assistiu de camarote à humilhante derrota da batalha nas ruas ao escolher outra banda podre da maçã. Depois, cuspiu na face da alternativa de poder à mão, Michel Temer, e correu para casa, de onde, aliás, parece nunca ter saído.

Ambos provam ao povo traído, irado e ressabiado que vale a descrição sempre atual do historiador Sérgio Buarque, que definiu como cordial (de cordialis, coração em latim medieval) a desfaçatez sem pudor do brasileiro na mistureba viciosa do público com o privado.

Chefe do governo e líder da oposição já confundiram muito rua e casa e agora mostram ter coração duro, sem coragem nem compaixão. No Rio, Dilma inaugurou o Museu do Futuro, exata metáfora da evidência de que o país do porvir, previsto por Stefan Zweig, fica cada vez mais distante deste. Agora temos até um museu para celebrá-lo, já que do passado nunca ninguém cuidou. E ela não voltou para consolar os pobres aflitos morrendo feito insetos às portas dos hospitais públicos fluminenses.

Mauricio Macri aborda as vítimas das enchentes na Argentina e Dilma as sobrevoa de helicóptero: ele sabe que governo implica compromisso com o povo; ela acha que é só ficar no poder e, com seu estilo tatibitate, repete diuturna e noturnamente a decisão histórica do imperador fanfarrão. Aécio não foi ao Sul nem deu atenção à devastação do Rio Doce pela lama tóxica no estado onde nasceu, que governou e no qual foi por ela derrotado.

Para Elizabeth Bishop, o órgão mais utilizado pelo brasileiro é o fígado. A presidente não perturba o dela lidando com desgraças ao rés do chão e a céu aberto. O senador distribuiu em redes sociais cartões de um Natal de comercial de margarina no apartamento em que arrastões na praia de Ipanema não azedam seu humor. Dilma preferiu indultar petistas condenados pelo STF no mensalão e se solidarizar com um aliado bebum, ofendido no Leblon por bêbados do lado de lá, a consolar vítimas da microcefalia, da doença pública no Rio e da lama tóxica em Minas.

É tolo esperar que neste conflito nossa Pátria em frangalhos e escombros se una nas eleições que prenunciam mais do mesmo: em 2016, dona Marta do PT disputará a Prefeitura de São Paulo com seu Haddad do padim Lula? Em 2018, Aécio, Serra e Alckmin terão triunfo inusitado ou mais um fiasco?

Haverá uma regata olímpica à ré na Baía de Guanabara, descrita como “nojenta” pelo holandês Dorian van Rijsselberghe, campeão em Londres-2012 na classe RS:X? Ele teve de tirar sacos plásticos do casco do barco para vencer a Copa Brasil de Vela. E o mal-estar de um membro de sua equipe denota que estamos com o intestino solto.

Em seis meses, os coliformes fecais guanabarinos, os dejetos metálicos da Samarco, a seca e a microcefalia no Nordeste e os incêndios na Amazônia e na Bahia ganharão o mundo, mas não mais conquistando o planeta, como nos tempos do charme imbatível de Lulinha Paz e Amor. A nós, desde o tempo da Confederação dos Tamoios, só nos resta recolher os cacos e enterrar os ossos.

(por JOSÉ NEUMANNE, em O ESTADO DE S. PAULO)

 

Editorial do Estadão: Corrupção, impeachment e reforma

Publicado no Estadão

Tomar os desejos pela realidade é um vezo tipicamente petista do qual o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, deu um magnífico exemplo em entrevista publicada no Estadão. É claro que um ministro de Estado, principalmente da área política, tem de ter o dom de manejar com habilidade as palavras, o que implica responder sempre o que lhe convém e não necessariamente o que foi perguntado. Mas o abuso desse recurso retórico pode se tornar uma faca de dois gumes. Ao tomar a iniciativa – em quatro respostas sucessivas a questões que não se referiam exatamente ao impeachment – de trazer o assunto à baila para desqualificá-lo, Cardozo revelou uma preocupação obsessiva com o tema do afastamento da presidente, o que contradiz a tranquilidade que procurou sempre, por dever de ofício, aparentar em relação à grave crise política que o governo impopular de Dilma Rousseff enfrenta.

Para o ministro da Justiça, “as condições para um processo de saída da crise agora estão dadas”, o que significa que “a realidade política começa a ser pacificada” e “começa, cada vez mais, a se caracterizar a rejeição de um impeachment”. “Ou seja, fica cada vez mais claro que o impeachment não é solução.” Ora, ninguém com um mínimo de bom senso e responsabilidade pode achar que o impeachment de Dilma Rousseff é uma “solução”. Trata-se de um recurso constitucional de absoluta excepcionalidade que se oferece a uma sociedade livre e democrática não como um fim em si mesmo, mas como um meio para atingir objetivos maiores. No caso, para a remoção de uma presidente que cometeu crime capitulado em lei e também de um obstáculo ao efetivo combate à crise política, econômica, social e moral que infelicita o país por obra e graça da irresponsabilidade populista, do sectarismo ideológico e da absoluta incompetência da chefe do ministro.

Mas para o titular da Justiça o processo de impeachment, defendido por dois em cada três brasileiros, é apenas um ato de “vingança” de Eduardo Cunha, que “não tem fundamento” legal. Para Cardozo, ser favorável ao impeachment é “defender o quanto pior melhor”, expressão corrente na retórica petista dos momentos difíceis, a que o ministro recorreu mais de uma vez na entrevista.

É bizarra também a posição do auxiliar de Dilma em relação à corrupção que contamina hoje praticamente toda a administração pública. Chega a ser tocante a delicadeza com que se refere à participação do PT nos esquemas de corrupção que já botaram atrás das grades dois de seus ex-presidentes e dois ex-tesoureiros: “É evidente que o PT sofrerá críticas e será acusado por um eventual erro que alguns dos seus dirigentes e militantes fizeram”. Ou seja, o mensalão e a farra da propina na Petrobras, para citar apenas os exemplos mais luzidios, foram apenas “eventual erro” de dirigentes – e não uma estrutura criminosa montada na administração pública para garantir os recursos necessários à realização do “projeto de poder” do PT.

O mais notável, porém, é a sutil tentativa de Cardozo de relativizar a responsabilidade do PT nos casos de corrupção com o argumento de que esses malfeitos só estão sendo investigados e punidos porque os governos do PT assim o quiseram. Mais ou menos assim: a corrupção não existe porque é praticada. Existe porque é descoberta.

Mas José Eduardo Cardozo, justiça seja feita, é extremamente crítico do sistema político que elegeu e tem mantido o PT no poder: “É um sistema que gera corrupção e que gera problemas estruturais no âmbito da governabilidade”. Mais: “Eu tenho que atacar as causas, como também tenho que combater os efeitos. Combatem-se os efeitos punindo e prendendo os corruptos. A lei vale para todos. Mas tenho que atacar as causas. E elas, em larga medida, remontam a questões estruturais de nosso sistema político. Isso só pode ser enfrentado com uma reforma”.

Pena que o PT, há 13 anos no poder, jamais tenha cogitado a sério colocar sua influência, hoje decadente, a serviço da concretização de uma ampla reforma política. Dilma Rousseff, por exemplo, prefere continuar praticando o toma lá dá cá e arcando com os “problemas estruturais no âmbito da governabilidade”. Como revolucionária que ainda é, a palavra “reforma” causa-lhe engulhos.

 

 

2016 aflitivo

Por ROGÉRIO GENTILLE, da FOLHA DE S. PAULO

 

O governo Dilma termina o ano com a saúde muito debilitada, mas respirando sem a ajuda de aparelhos. A presidente conseguiu uma leve melhora na sua popularidade (de 8% de ótimo/bom em agosto no Datafolha para 12% em dezembro) e o clima pró-impeachment arrefeceu desde que, com habilidade inusual, Dilma carimbou no processo a figura de Eduardo Cunha.

 

Na batalha da comunicação, o impeachment deixou de ser um pedido formulado pelo fundador do PT e militante dos direitos humanos Hélio Bicudo para figurar como um "golpe" impetrado pelo "dragão da maldade" peemedebista.

Mas a calmaria é circunstancial. Eduardo Cunha não deverá se sustentar muito tempo no cargo. Sem o bode expiatório, o processo de impeachment deverá retomar o curso normal, a não ser que a presidente consiga reconstruir sua base política no Congresso -tarefa que tenta, desde a segunda posse, sem sucesso.

O problema é que Dilma não pode contar hoje com as duas principais armas que um governante costuma dispor para aglutinar forças. A despeito da ligeira melhora em sua imagem, a presidente está longe de ser uma boa companhia para quem necessita de voto nas eleições de 2016.

Ao mesmo tempo, em meio à grave crise econômica, seu governo não tem como oferecer obras e verbas para estimular a acomodação política parlamentar. O máximo que poderá fazer é prestar socorro a governadores que, a exemplo do que foi feito pelo do Rio, disponibilizarem votos para sua causa maior (a sobrevivência) no Congresso. Mas, como se viu na reunião do ministro da Fazenda com 10 governadores, os problemas são enormes e prementes, enquanto o cobertor é obviamente curto.

Para embaralhar ainda mais o quadro, há a Operação Lava Jato, que exerce incessante ameaça sobre o governo e seus aliados, assim como sobre o entorno de Michel Temer.

O ano de 2016 tende a ser tão ou mais aflitivo que 2015. 

(por ROGERIO GENTILLE, na FOLHA DE S. PAULO)

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Blog de Augusto Nunes (veja.com)

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