Agripina Inácia chegou ao poder! A caricatura é melhor do que o retrato. Ou: Ira-ny censura Flaubert
Num post escrito anteontem, eu lhes apresentei Agripina Inácia, a “socióloga da Unicamp”, caricatura de uma feminista vivida por Regina Casé no excelente TV Pirata, já lá se vão quase 25 anos. O Brasil e a televisão, na média, eram mais inteligentes. Quadros de humor daquele programa seriam considerados, hoje em dia, sofisticados demais para as massas. Quem já assistiu ao vídeo sabe do que estou falando; quem ainda não viu pode fazê-lo agora. É obrigatório! Volto em seguida.
Voltei
O que distingue o discurso de Iriny Lopes do de Agripina Inácia? Nada! Ocorre que a primeira pretende ser levada a sério, e a segunda era uma caricatura. Há quase 25 anos, reitero, ironizava-se essa discurseira imbecilizante do politicamente correto. Não que a incorreção seja um bem em si mesmo. Não é! O quadro, no que tinha de, vá lá, sério, alertava para o fato de que o humor se faz justamente desconstruindo as, digamos, “doxas”, mesmo aquelas virtuosas. Porque é da natureza humana captar uma pitada de ridículo mesmo nos gestos mais heróicos ou nas ações mais generosas.
Fico cá a pensar no Brás Cubas, de Machado de Assis, a olhar com distanciamento crítico a bondade de coração dos simples, onde via um grãozinho de parvoíce. Certas igrejas pentecostais picaretas (não estou dizendo que todas sejam; leiam direito) o mandariam para o templo para tirar o capeta do corpo; Ira-ny poderia enviá-lo para um campo de reeducação companheira…
Viram Agripina Inácia? Como foi que ela analisou a piada sobre a moça grávida que vomita no avião e que vai ter de casar? Reproduzo trecho de sua fala. Prestem atenção:
“Bem, eu gostaria de fazer uma colocação, a nível de crítica, enquanto alerta a nós, mulheres, que, mais uma vez, nessa anedota, estamos sendo discriminadas,aparecendo numa condição terrível, sendo reduzidas, mais uma vez, a meros objetos de procriação, inclusive sem o direito de influir, mais uma vez, enquanto seres humanos que somos, enquanto indivíduos, sem direito de influir na dinâmica do tecido social. Claro! No momento em que a mãe diz assim pra filha: “casa amanhã”; nesse momento, eu acho que se configura claramente, sem sombra de dúvidas, uma colocação reacionária, uma colocação machista dessa anedota! Que é que é isso, minha gente? Por que, ao invés disso, a mãe não diz: “Foi, sim! Foi, sim, e eu vou levá-la para fazer um aborto”. Por que não? Eu acho que nós, mulheres, enquanto seres humanos, temos total direito; eu acho que a mulher pode e deve dispor do seu corpo como e bem entender, ou não?”
A Agripina Inácia da vida (i)rreal, a tal Ira-ny, voltou a comentar hoje a propaganda das lingeries Hope, aquela estrelada por Gisele Bündchen. Leiam o que ela disse e depois comparem com a fala de Agripina:
“A publicidade forma opinião, e isso [a propaganda] é estereotipar a mulher como um indivíduo na sociedade que, para ter uma condição igual ou para interromper um processo de agressão, ou para não sofrer nenhuma repreensão, precisa usar o corpo para isso. Quando a mulher pode usar a cabeça, a boca, como qualquer ser humano. Nada contra o humor.Mas nessa caracterização do que é certo e do que é errado, há uma indução à manutenção da imagem da mulher como veio sendo construída secularmente, de ser secundarizada, ser subalterna”.
Há, admito, uma outra diferença entre elas, a “Pina”, ou “Gripa”, se expressa com um pouco mais de clareza “a nível de” indivíduo, né? É de estarrecer. A piada ganhou um cargo na Esplanada dos Ministérios. Eu sou fascinado por esses raciocínios que acatam, como premissa, uma regra universal da convivência e, em seguida, apelam a uma conjunção adversativa para negar o que acabaram de sustentar. Notem ali:
1) “Nada contra o humor” (ela aceita uma regra universal da convivência);
2) “Mas (conjunção adversativa), há uma indução à manutenção da imagem da mulher”…
Pronto, ela já recusou a premissa universal que supostamente admitira. Há uma construção na linguagem popular que explica esse raciocínio: “Maria casa com quem quisé desde que seja com o José” — nesse caso, em vez da adversativa, emprega-se a condicional.
Todos os tiranos podem pensar como Agripina — digo, como Ira-ny. Stálin não diria diferente: “Sou a favor da divergência de opiniões, mas, nesse caso…” Ira-ny não sabe, mas ela própria é a piada.
A ministra não ficou só nisso, não! Também justificou, deixando claro que acredita ter feito o certo, o envio de um ofício à Globo sugerindo que Aguinaldo Silva, autor da novela “Fina Estampa”, dê o tratamento adequado à personagem espancada pelo marido e ao espancador. Os fascistas — os de direita e, principalmente, os de esquerda — acreditam firmemente que a estética tem de ser uma ética. O socialismo soviético apoiou o chamado “realismo socialista”. Jdanov, o ministro da Cultura de Stálin, incentivava as obras de arte que exaltavam o caráter revolucionário da classe operária e a disposição das massas de colaborar para a criação da pátria da classe operária. Já o nazismo era neoclassicizante, exaltando um ideal de volta à harmonia da natureza, sem os apelos decandentistas da sociedade então moderna.
Nos dois casos, aspirava-se a uma pureza ideológica livre de desvios e da sujeira da diversidade humana. O que o nazismo considerava “decadente”, o socialismo considerava reacionário e pequeno-burguês. Assim é dona Ira-ny. Ela acredita na novela como um instrumento de educação — ou de deseducação, como pensavam, por exemplo, os acusadores de Flaubert quando resolveram mandar “Madame Bovary” (1857), o livro — na verdade, a personagem — para o banco dos réus, o que resultou numa das frases célebres nas polêmicas públicas. Perguntam a Flaubert, de modo inflamado, quem, afinal de contas, era aquela Madame Bovary devassa de seu livro, que ousava trair Charles, um marido perfeito e cidadão exemplar. Só lhe restou dizer: “Emma Bovary c’est moi”. Os reacionários da época não aceitavam o que consideravam uma ofensa aos costumes; a reacionária Ira-ny não aceita o que considera uma ofensa à militância militonta. Ira-ny censura Madame Bovary 154 anos depois.
Propaganda, novela, obra de arte, música, pintura etc. não têm de servir a propósitos considerados “nobres”. Sempre que se tentou esse caminho, produziu-se lixo retórico. Nas sociedades livres — e talvez venhamos, um dia, a conhecer uma…—, essas manifestações são tanto mais interessantes quanto mais questionam a ordem estabelecida (inclusive aquela das pessoas “corretas”). Se servem a um partido, a uma causa, a uma militância, então passam a ser apenas um discurso ideológico, de caráter instrumental: LIXO!
Gênios como Virgílio, é verdade, produziram sob os auspícios do estado e do poder e, ainda assim, ergueram monumentos mais duradouros do que o bronze, como disse outro grande (Horácio) sobre a própria poesia. Ocorre que nenhum deles fez da própria obra instrumento vagabundo de proselitismo, que é o que os fascistas, de esquerda e de direita, esperam da arte.
A melhor coisa que Ira-ny faz é fechar a boca. Não porque seja mulher, obviamente, mas porque é Ira-ny.