Como a agricultura na América Latina está respondendo à COVID-19, por Cristiane Lourenço
A América Latina é uma região vasta e extremamente importante para a produção global de alimentos. O Brasil, por exemplo, produz mais que o dobro da quantidade de grãos de café do que qualquer outro país, e é também o maior exportador mundial de soja. O Chile lidera a produção de uvas frescas em todo o mundo e responde por 21,7% do volume exportado em nível global, além de ser líder na exportação de mirtilos frescos, ameixas e maçãs secas. Isso evidencia a importância global da região e sua relevância para a manutenção dos altos padrões para a produção de alimentos em toda a cadeia. Em meio a uma crise global, isso passa a ser duas vezes mais importante — e duas vezes mais difícil.
Esse é o desafio que nossas cadeias de abastecimento de alimentos enfrentam em face da COVID-19, cujos efeitos na América Latina estão amplamente difundidos e continuam a crescer. Mas o coronavírus não está intensificando apenas os desafios que enfrentamos; ele também nos obriga a acelerar as mudanças que, em última análise, poderiam solucioná-los.
A COVID-19 é um problema duplo. Primeiramente, precisamos garantir condições de trabalho seguras para os agricultores e trabalhadores rurais em um momento em que dependem de mão-de-obra. Por exemplo, durante o período de colheita da safra, se um produtor não conseguir número suficiente de pessoas para trabalhar em suas terras, ele pode perder grande parte de sua produção naquele ano. O segundo aspecto é a forma como as exportações serão afetadas. Em termos de comércio internacional, a América Latina pode ser dividida em duas categorias: de um lado, os países tipicamente exportadores de produtos agrícolas, como o Brasil ou os países do Cone Sul; e, do outro, os países que precisam importar produtos agrícolas e para abastecimento energético, que se encontram principalmente no Caribe.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em situações de crise como a da COVID-19, este primeiro grupo de países pode ter suas receitas prejudicadas se não puder atender à demanda de exportação, ou se os parceiros de exportação não permitirem que certos produtos sejam enviados devido ao fechamento de fronteiras. Por outro lado, os países do segundo grupo, que não podem satisfazer as suas próprias necessidades sem as importações, poderiam sofrer os efeitos decorrentes desta descontinuidade: falta de abastecimento ou flutuações de preços.
Os impactos econômicos podem persistir por algum tempo. Em função do novo coronavírus, a previsão é de um aumento da pobreza na América Latina (da ordem de 3,5% só este ano, segundo a CEPAL). Isso mudará os hábitos de compra de alimentos. Se as pessoas tiverem menos renda, elas poderão comprar menos ou comprar alimentos mais baratos. Assim, os mercados locais sentirão os efeitos.
Estão sendo realizados esforços para lidar com estes riscos, como estabilizar preços dos alimentos, aumentar a oferta e facilitar a logística para promover o funcionamento adequado das cadeias alimentares. Através destes esforços, temos visto o surgimento de várias tendências, com algumas mudanças acontecendo mais rapidamente:
- A transformação digital da agricultura está acelerando. Já estávamos falando sobre ferramentas digitais – mas em muitos países nessa região, nem todos os agricultores poderiam usar essa tecnologia ou mesmo ter acesso à internet. A adoção de tecnologias digitais estava acontecendo gradualmente, mas agora ela está realmente sendo acelerada. Governos e empresas estão ativamente buscando novas parcerias e políticas que levarão ferramentas digitais a mais agricultores. Essas ferramentas podem ajudar o agricultor a melhorar a produção no campo, bem como a vender seus produtos no mercado, em um momento em que não podem convidar negociadores para virem até suas fazendas.
- Reforço de boas práticas agrícolas, especialmente em termos de segurança do alimento e dos trabalhadores. Mais uma vez, aqui a tecnologia pode desempenhar um importante papel. Um ótimo exemplo vem do setor varejista brasileiro que utiliza a tecnologia blockchain no Programa de Rastreamento e Monitoramento de Alimentos, o RAMA. Mais de 57 grandes varejistas fazem parte, tornando esta ferramenta fundamental para garantir transparência e segurança alimentar de produtos in natura para mais de 28 milhões de consumidores por dia no Brasil.
- A mecanização de métodos de cultivo começa a despertar maior interesse. Antes, muitos produtores descartavam o conceito de máquinas agrícolas autônomas como "algo do futuro". A COVID-19 desafiou os agricultores e eles tiveram que mudar todo o seu plano em relação à forma como utilizam a mão-de-obra sazonal. Assim, começamos a vê-los se interessando mais por opções baseadas em inteligência artificial, por exemplo, que lhes dão apoio em caso de falta de mão de obra.
Por mais que essas tendências tenham um potencial positivo real, elas também trazem seus próprios desafios. O primeiro é como garantir que os agricultores sejam treinados para fazer o uso correto e no potencial máximo das novas ferramentas. Podemos falar sobre o poder dos sistemas blockchain para a agricultura, porém, há trabalhadores nas fazendas que talvez nem saibam ler. O progresso tecnológico deve vir ao lado de desenvolvimento social que garanta o acesso à educação para todos.
Há ainda a questão dos pequenos agricultores. Muitas vezes, eles precisam vender sua produção do dia anterior, para que possam colocar comida no prato amanhã. Eles não têm como suportar uma "lacuna" no processo. Portanto, precisamos garantir que as novas tecnologias acomodem esses agricultores também. Se conseguirmos isso, eles terão melhor acesso não apenas às tecnologias e serviços, mas também às pessoas que compram o que eles produzem com maior valor agregado. Se não o fizermos, serão deixados para trás e as desigualdades sociais só aumentarão.
Essas mudanças irão acontecer, e seus efeitos irão muito além de nos permitir atravessar a crise do coronavírus — elas podem revolucionar toda a cadeia alimentar na América Latina. Mas, além da mudança, precisamos também de pessoas com conhecimentos suficientes para que ela funcione.
O próximo passo é criar colaboração: novas parcerias com organismos nacionais e regionais, e outros integrantes da cadeia de alimentos, para enfrentar os desafios econômicos e sociais. Com estas parcerias, podemos assegurar que as ferramentas agrícolas do futuro serão implementadas e utilizadas no seu potencial máximo, especialmente pelos pequenos agricultores.
Cristiane Lourenço
Especialista em Negócios Sustentáveis pela Universidade de Cambridge. Atualmente lidera a área de Relacionamento Corporativo em alimentos e nutrição para a Bayer na America Latina. Antes de juntar-se à Bayer, atuou com Sustentabilidade e Inovação nos setores de bens de consumo e energia. A executiva possui larga experiência nesta área, já tendo gerenciado projetos em países como Índia, America do Norte, Europa e América Latina.
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