"O Coronavirus e a segurança dos alimentos", por MARCOS JANK
Causou grande apreensão no mundo alimentar a decisão do governo chinês, na semana passada, de suspender importações de carnes vindas de frigoríficos dos EUA (Tyson), Alemanha (Tönnies) e Noruega (Royal Salmon), alegando o risco de contaminação do produto pela covid-19.
Autoridades sanitárias de vários países informam que não há evidências científicas e de rastreabilidade que possam comprovar a transmissão do novo coronavírus pelo manuseio ou pela ingestão de alimentos. Mesmo se estiver presente na superfície dos alimentos ou nas embalagens, o vírus tem baixa capacidade de sobrevivência e será facilmente eliminado com a lavagem adequada e o cozimento dos produtos. O maior risco seria a transmissão interpessoal no momento da manipulação de alimentos – por exemplo, na sala de cortes do frigorífico ou nos pontos de venda.
O ponto focal do novo surto chinês é novamente um mercado de alimentos frescos. O primeiro surto, reconhecido oficialmente, aconteceu em dezembro num mercado tradicional (wet market) da cidade de Wuhan. O novo surto surge agora no mercado de produtores de Xinfandi, em Pequim. Tudo indica que o vírus estava presente no ambiente desse mercado, mas não no interior dos alimentos.
Autoridades chinesas disseram ter obtido 40 testes positivos de covid-19 para uma variante viral que passou por mutação na Europa, encontrada no ambiente. O vírus foi detectado nas tábuas de madeira utilizadas para filetar salmão importado da Noruega, mas não no filé do pescado. Sabe-se que peixes e animais domésticos como aves, suínos e bovinos não transmitem o vírus.
Apesar disso, o governo chinês decidiu retomar as restrições à circulação de pessoas na capital e intensificou os controles de fronteira nas importações de alimentos. Supermercados retiraram o salmão de suas prateleiras e os frigoríficos estrangeiros citados foram suspensos.
Tais decisões precipitadas viraram um prato cheio para redes sociais sensacionalistas que se alimentam de teorias conspiratórias. Imediatamente elas passaram a sugerir que a contaminação teria vindo do exterior, desviando a culpa em relação a uma segunda onda de origem doméstica. Num mundo cada vez mais dominado pelo medo, pela xenofobia e pelas fake news, não creio que essa novela vá terminar apenas no salmão norueguês.
Saúde humana, sanidade animal e risco de zoonoses serão temas de atenção permanente nos próximos anos. A expressão “segurança do alimento” (food safety, em inglês) fará parte do “novo normal” que virá após a pandemia. A humanidade descobriu a sua inimaginável fragilidade em tempos de globalização, tornando-se refém da falta de respiradores, testes e vacinas, o que vai criar a necessidade de reorganizar a saúde pública global.
Até a chegada desse vírus, os principais vetores de crescimento do setor agroalimentar eram produtividade e sustentabilidade. Basicamente produzir grandes volumes de commodities a preços competitivos, de forma sustentável. Lembrando que sustentabilidade compreende o difícil equilíbrio entre eficiência econômica, preservação ambiental e equidade social, um tema pelo qual o Brasil tem sido muito cobrado.
Acontece que o mundo pós-pandemia será dominado pela combinação de três "S" - Saúde, Sanidade e Sustentabilidade - que nada mais é que a repaginação de um antigo conceito chamado “saúde única”, popular no universo da ecologia e da veterinária.
A primeira tentativa sistemática reconhecida de estabelecer uma relação causal entre humanos, animais e meio ambiente foi feita pelo médico grego Hipócrates, ao redor de 400 a.C., em seu livro "Ares, Águas e Lugares". No final do século 19, ao estudar a relação entre doenças humanas e animais, o patologista alemão Rudolf Virchow criou o termo “zoonose”, afirmando que “entre as medicinas animal e a humana não há linhas divisórias – nem deveria haver”.
A expressão “saúde única” surgiu em 2004, propondo uma abordagem holística e transdisciplinar para lidar com a saúde da humanidade, dos animais e dos ecossistemas. O conceito amplo de saúde única abrange temas como risco de doenças zoonóticas, resistência antimicrobiana, sanidade, segurança do alimento, desmatamento, contaminação ambiental e outras ameaças à saúde, compartilhadas por pessoas, animais e meio ambiente.
No caso específico da sanidade animal, creio que o grande objetivo deveria ser reduzir a imensa heterogeneidade das cadeias alimentares no mundo, por meio da convergência regulatória dos sistemas de defesa sanitária – a refrigeração das cadeias de produtos perecíveis, o controle sanitário efetivo dos mercados tradicionais, o fim do comércio ilegal de animais silvestres, a criação confinada de animais domésticos e a melhoria dos sistemas verticais de integração entre agricultores e indústrias de insumos e processadoras.
O Brasil lidera as exportações mundiais de carne bovina e de aves e ocupa o quarto lugar em carne suína. É hora de assumir e comandar esse debate, evitando atitudes arbitrárias e não científicas, derrubando fake news e propondo uma estrutura sólida da saúde única para o mundo pós-covid.
(*) Marcos Sawaya Jank é professor de agronegócio global do Insper.
Aproveito para informar sobre a nova área de indicadores e publicações que criamos no site do Insper Agro Global, que trará estudos desenvolvidos pelo nosso grupo de pesquisadores. Os primeiros trabalhos que já foram postados são:
ESTUDOS
Impactos da Covid-19 no Agronegócio e o Papel do Brasil
Parte 1 | Cadeias Produtivas e Segurança Alimentar
Parte 2 | Saúde Única, Zoonoses e Segurança do Alimento - traz uma análise completa do tema do artigo de hoje.
BOLETINS: passamos a divulgar mensalmente o “Boletim Especial Covid-19” com informações e análises sobre o impacto da pandemia de Covid-19 no agronegócio mundial.
LIVRO
China-Brazil Partnership on Agriculture and Food Security, lançado em junho de 2020 pela Esalq-USP e pela China Agricultural University (CAU), com a parceria institucional do centro.
Abraço, Marcos
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