Brincando com fogo, por Roberto Padovani e Carlos Lopes
Nos últimos anos, o Brasil tem sido capaz de corrigir rumos e produzir avanços institucionais. Mas como estas melhorias ocorrem sempre às custas de muitas tensões e riscos de retrocessos, há hoje certo cansaço e uma desconfiança permanente sobre a capacidade de se manter a direção correta.
A história mostra que reformas econômicas são implementadas em momentos difíceis. As crises agem como uma forma de alinhar interesses, mobilizando a maioria normalmente silenciosa e constrangendo interesses específicos. O desemprego elevado é uma forma de coordenar agendas e criar consensos nacionais em torno da necessidade de mudanças.
Os diversos avanços institucionaisfeitos no Brasil a partir de 2016 reforçam esta tese. A despeito de momentos de baixa popularidade e dificuldades de coordenação política no Congresso, avanços importantes foram aprovados, como a mudança da TJLP, o teto de gastos, a trabalhista, o cadastro positivo, a previdência, as leis de falências e de licitações, os novos marcos regulatórios do gás e do saneamento e a autonomia do banco central.
A relação entre crise e reformas, no entanto, não é automática e nem ocorre sem ruídos. Os cálculos políticos entre os diferentes atores não são uniformes e os benefícios de uma decisão podem ser difusos, fazendo com que a dificuldade em se perceber a necessidade de mudar exija um ambiente muito tenso para coordenar as preferências. Isso faz com que, além da demanda natural por aumento de gastos públicos, o risco de retrocessos esteja sempre presente, gerando instabilidades financeiras agudas.
O contexto institucional brasileiro potencializa estas dificuldades. O teto de gastos obriga o País a fazer escolhas difíceis para realocar gastos públicos de forma eficiente, trazendo sempre temas polêmicos como a redução do tamanho do Estado e o aumento de sua eficiência, o que implica desvinculação de gastos e revisão de benefícios tributários.
São bons exemplos o nervosismo durante a reforma da previdência em 2019 e, no segundo semestre de 2020, as turbulências geradas pelas discussões em torno da flexibilização do teto de gastos, ampliação dos programas de auxílio e o debate sobre a criação de novos programas sociais.
Neste ano, a tramitação da PEC emergencial no Congresso e as confusões envolvendo o orçamento têm sido fonte de mais incertezas. A possibilidade de aumento de gastos sem contrapartidas fez com que o mercado financeiro disparasse alertas por meio de movimentos no dólar, juros e bolsa. Curioso é que a pressão por mais despesas veio não apenas do Legislativo, como seria natural, mas também do próprio Executivo.
Além das tensões que normalmente acompanham as reformas, a pandemia amplificou os riscos. Como o Brasil foi o mercado emergente que mais gastou na crise em proporção ao tamanho da economia, alcançando um valor mais que duas vezes superior à média de seus pares, a elevação da dívida pública passou a ser tema central. Mesmo com hipóteses otimistas sobre juros e crescimento, a estabilização da dívida deverá ocorrer apenas ao final do próximo mandato presidencial, expondo o País a todo tipo de choque.
Politicamente, a insatisfação social gerada pela crise incentiva posturas radicais, estratégias políticas de confronto permanente, tensões institucionais e maiores incertezas eleitorais. Não menos importante, há um aumento da volatilidade dos mercados globais. A ampla injeção de recursos e a forte recuperação em curso alimentam o receio da volta da inflação, pressionando os juros e trazendo o risco de interrupção dos fluxos de capitais, principalmente para aquelas economias emergentes com maiores fragilidades fiscais.
O problema é que mesmo que as instituições funcionem e os momentos de estresse ajudem a avançar as reformas e a frear a irresponsabilidade, nenhuma economia pode testar seus limites o tempo todo, trabalhando com crises frequentes. No caso brasileiro, muita energia tem sido gasta para evitar retrocessos, gerando pressão em ativos financeiros e cenários menos previsíveis.
Como o acúmulo de crises não é algo neutro para a economia, o paradoxo é que as incertezas que acompanham as reformas e garantem a responsabilidade econômica podem gerar danos permanentes e atenuar parte dos efeitos positivos dos próprios avanços institucionais.
A cada novo evento, a desconfiança de empresários e investidores aumenta e torna a recuperação mais difícil. Como decorrência, a economia se fragiliza e o cenário fica propenso a acidentes. Isso significa que mesmo que o resultado dos processos legislativos possam ser positivos, a forma como eles ocorrem também importa. Os sustos produzem danos reais.
É o que tem sido visto. Após tantas instabilidades nos últimos meses, a previsibilidade econômica e política se reduziu e fez os preços dos principais ativos financeiros perderem referência.
O câmbio se descolou ainda mais de seus fundamentos e do comportamento das demais moedas emergentes. Com aumentos adicionais de custos, as empresas elevam preços, pressionando a inflação corrente e contaminando as expectativas para os próximos anos. Tudo isso obriga o Banco Central a acelerar o processo de normalização da taxa de juros, com a ação da política monetária passando a ser pautada não apenas pelo risco inflacionário, mas também pela necessidade de manter a credibilidade na gestão da política econômica como um todo.
Com impactos em confiança, renda e crédito, este pode ser mais um ano de frustração com o crescimento, criando a impressão que a responsabilidade nas agendas do governo e do Congresso talvez esteja sendo alcançada a um custo alto demais.
É inegável que a sequência sem fim de crises e sustos faz com que a sala fique cheia de gás. Pequenos erros podem ser a faísca para grandes acidentes. O Brasil continua brincando com fogo e, pior, pode estar se queimando.
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