(por FABIO VICTOR e EDUARDO KNAPP, ENVIADOS ESPECIAIS DA FOLHA AO NORDESTE)
Onde o rio São Francisco deságua no primeiro canal da transposição, o pescador José Aílton da Silva, 22, acampou há 15 dias com a mulher, Ana Paula da Silva, 31, e o filho Uálison Caio, de 2 anos. Moradores de Petrolândia (PE), foram em busca de comida, pescada das águas em uma entrada do rio antes conhecida como Água Branca.
Com a chegada da transposição, o lugar, ponto de partida do eixo leste do projeto, passou a ser chamado pelos locais de Paredão. A três quilômetros dali está a Estação de Bombeamento de Floresta (PE), que lança as águas do rio até Monteiro (PB), um percurso de 217 quilômetros cuja conclusão foi inaugurada com festa pelo presidente Michel Temer no último dia 10.
A obra monumental já custou R$ 9,6 bilhões à União e tem sua paternidade reivindicada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que em 2007 tirou do papel uma ideia que circulava no país havia anos.
Em paralelo à disputa política que marca a chegada das águas do rio aos canais e barragens da transposição, desenrola-se outra menos visível, entre as populações ao longo do trajeto da obra, atingidas pela seca mais severa em pelo menos 50 anos no Nordeste, que dura pelo menos cinco anos.
Na ponta que começa a receber a água, o que se encontra são euforia e esperança. À medida que se desce no mapa em direção à bacia do São Francisco, a maior parte dos moradores relata apreensão ou oposição ao projeto.
Neste segundo grupo está o casal Silva. "A transposição está prejudicando o rio. A bomba está ligada o tempo todo puxando água, o nível é baixo e já está baixando mais", disse José Aílton. "Entendo a alegria deles [moradores beneficiados], porque viviam de caminhão-pipa, mas tem de ver o sofrimento que agora está causando aqui", emendou Ana Paula. Ao verem o rio baixo, ambos relatam receio de que a água passará a custar mais caro e faltará para a agricultura na região, outro sustento do casal.
"Eles" a quem se refere Ana Paula são principalmente sertanejos de Paraíba e Pernambuco. Gente como o pedreiro Sebastião Gomes Cazuza, 58, que trabalhou por três anos na obra da transposição (ganhava R$ 6,64 por hora, conseguindo, com horas extras, tirar R$ 2.460 por mês) e no último dia 11, um sábado, apreciava a água do canal encher a barragem de Campos, em Sertânia (PE).
Morador de uma rua sem abastecimento, acostumado a comprar água de caminhão-pipa –3.000 litros por R$ 45–, Cazuza estava duplamente feliz, pelo saldo de seu trabalho e por vislumbrar uma vida menos seca. "É suave e gostoso [ver a água jorrar na barragem], é bom, é bonito, me sinto aliviado. Vai ser uma riqueza para cá", afirmou.
Na paraibana Monteiro, o clima é semelhante. "A festa é grande. Quem critica [a transposição] não conhece a situação de quem vive sem água", observou o agricultor Fernando Gomes dos Santos, 26.
CINZA E OCRE
Ver a água doce singrar o sertão é, para os que vivem no semiárido, um alento amplificado pela circunstância. Dados compilados pelo Cptec/Inpe (Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) a pedido da Folha mostram que a atual seca na região, ininterrupta desde 2012, não tem precedente desde pelo menos 1961. Os três anos com menor volume acumulado de chuva desde então foram 2015, 2012 e 2016.
Considerando só a estação de pluviometria de Quixeramobim (CE), que tem dados desde 1896, é o período mais seco em mais de um século.
Segundo a ANA (Agência Nacional de Águas), os reservatórios do Nordeste estão com 13,8% de sua capacidade, índice mais baixo desde 2012. De acordo com o Ministério da Integração Nacional, 835 municípios da região estão em estado de emergência.
Nestes dias, a paisagem dominante do sertão nordestino é a dos cinzas e ocres da seca, dos xique-xiques, mandacarus e algarobeiras entre dezenas de leitos de rios esturricados, conforme visto pela reportagem em 1.900 quilômetros percorridos de carro por quatro Estados (Paraíba, Pernambuco, Ceará e Bahia, os três primeiros na rota da transposição) em uma semana.
Quase no fim do período chuvoso no sertão (de novembro a abril), havia aqui e ali tons de verde, graças a alguma água que caiu na semana retrasada, responsável também por um mar de borboletas nas estradas no dia seguinte ao aguaceiro.
Em Floresta (PE), onde começa o eixo leste da transposição, não há problemas de abastecimento como na ponta que recebe a água. Mas ali, a poucos quilômetros do rio São Francisco e dos canais do projeto, o riacho do Navio e o rio Pajeú –imortalizados na canção de Luiz Gonzaga e Zé Dantas– estão secos.
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O caminho do São Francisco pelos canais da transposição |
A feirante Jocelice Alice da Conceição, 34, conta que já há escassez na lavoura. "O alface vem de outras cidades, porque a água não é suficiente. Aqui estamos com medo de que, com essa água indo para fora, falte para a gente."
Também há apreensão em Cabrobó (PE), à beira do São Francisco e ponto de partida do eixo norte –inconcluso à espera do resultado de licitação desde que a empreiteira responsável, a Mendes Junior, envolvida na Lava Jato, foi inabilitada.
Moradora da cidade, a advogada Larissa Lopes, 25, reclama: "Tinham que primeiro ter cuidado do rio para depois fazer a obra. Do jeito que foi feito, pode beneficiar algumas pessoas, mas daqui a pouco quem vai precisar seremos nós. Acho que é um projeto para desviar dinheiro".
Saúde do São Francisco e falta de obras adicionais são entraves à transposição
Enquanto o governo Temer alardeia a chegada da água da transposição às primeiras cidades do Nordeste, hidrólogos e estudiosos do semiárido nordestino apontam quatro entraves principais para que a transposição funcione: a debilidade atual do rio São Francisco para suprir a nova demanda; a ausência ou precariedade de obras complementares para fazer a água dos canais chegar às torneiras; a prioridade ao agronegócio, em detrimento do abastecimento humano; e o temor quanto ao furto de água dos canais, algo recorrente em projetos na região.
Um ponto crucial é saber se a vazão captada do São Francisco, por autorização da ANA (Agência Nacional de Águas), prejudicará a bacia do rio. Hoje, por causa da seca, ela é de 26,4 m³ por segundo, mas em época de cheia poderá chegar a 127 m³/s.
O governo argumenta que a retirada não afetará o manancial. O engenheiro agrônomo João Suassuna, 64, pesquisador da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco) especialista em semiárido, discorda. "O São Francisco tem problemas hidrológicos sérios e não tem volume para abastecer a transposição. É um rio de múltiplos usos, responsável por 95% da energia gerada no Nordeste, irriga uma área de 340 mil hectares."
Segundo Suassuna, a fronteira agrícola de Mapitoba (Maranhão, Piauí, Tocantis e Bahia) é outra ameaça ao rio. "Os produtores de soja estão exaurindo as águas de subsolo dessa região, do aquífero Urucuia, o que já está interferindo nas vazões de base do são Francisco, que alimentam o leito do rio."
Assim como Suassuna, o hidrólogo João Abner, 63, professor titular aposentado da UFRN, crê que a prioridade de uso da água será do agronegócio, diferentemente do que afirma o governo, para quem a primazia é para o abastecimento humano.
"Os canais foram dimensionados para uma vazão quatro vezes maior do que a outorgada. E a expectativa de desenvolvimento pregada largamente por todos os políticos vai pressionar sempre por aumento de vazão para atender o agronegócio. Os Estados da região estão com grandes projetos em andamento baseados na vazão máxima. Esse é o maior conflito do projeto", diz Abner.
Secretário de recursos hídricos de Pernambuco até janeiro passado, o engenheiro José Almir Cirilo, doutor em recursos hídricos e professor titular da UFPE, discorda dos colegas sobre o prejuízo ao rio. "Os 26 m³/s são vitais e representam apenas 1% da vazão média do São Francisco. Mesmo na crise atual que também afeta a bacia do rio, é uma retirada insignificante", defende.
Mas Cirilo aponta outro problema, a pendência de obras complementares para que a água chegue às torneiras. Ele cita o caso do do Ramal do Agreste, canal que captará água da transposição em Sertânia para abastecer 68 cidades pernambucanas a partir da chamado Adutora do Agreste. "Esse projeto está pronto há pelo menos dois anos, o governo federal licitou há um ano e até hoje não determinou o início da obra, que vai se estender por no mínimo quatro anos."
O ministro da Integração Nacional, Helder Barbalho, diz que o governo federal ampliou os repasses ao governo de Pernambuco para a obra e que a Adutora do Agreste deve começar a operar em sete meses.
Barbalho lembrou que as obras adicionais cabem aos governos estaduais e disse que, ao assumir, o atual governo agiu para agilizar os repasses. "É fato que as obras estruturantes deveriam estar prontas no momento da passagem da água. Por isso, em maio passado, quando assumimos, chamamos os governos dos Estados e as empresas envolvidas com a transposição e perguntamos qual a capacidade de execução para antecipar os cronogramas. Terminamos o ano colocando dinheiro na conta do governo de Pernambuco."
O ministro frisou, entretanto que "desde o primeiro momento o compromisso principal [do governo] é com o caminho das águas" e que, graças à situação crítica de abastecimento em Campina Grande (PB), que receberá água da transposição a partir de Monteiro (PB), havia pressa para concluir o trecho leste.
Segundo Helder Barbalho, Monteiro e Sertânia já estão abastecidas com água da transposição. No caso da cidade paraibana, a informação é contestada pelo Ministério Público Federal. "A água da transposição enche os reservatórios, mas a companhia de saneamento precisa distribuir essa água. Em Monteiro, esse sistema não existe em toda a zona urbana e inexiste na zona rural", disse a procuradora federal Janaína Andrade de Sousa.
"Na minha casa não chegou água. Ontem fiz uma escova num salão e tive que comprar água mineral. Sempre levo duas garrafas de água para frequentar um salão de beleza", contou a procuradora.
Dois outros moradores de Monteiro relataram nesta sexta (17) à reportagem que na véspera começou a chegar um pouco de água em suas casas. Um morador de Sertânia disse que nada mudou e que continua a tomar banho de cuia com água comprada de caminhão-pipa.
FISCALIZAÇÃO
Morador de Juazeiro (BA), às margens do São Francisco, o filósofo e teólogo Roberto Malvezzi, assessor da Comissão Pastoral da Terra e de movimentos sociais, diz que o atual estado do rio não é compatível com a transposição. "A reprodução de peixes é afetada, porque não há mais a inundação das lagoas marginais. Isso impacta diretamente a vida de milhares de pescadores que viviam dessa pesca. Sem falar na cunha salina que penetrou o rio e está inviabilizando os mananciais de água doce da foz. Não que a transposição seja a causa desses problemas, mas pode agravá-los. A causa é o desmatamento do Cerrado."
Órgão que se opôs à transposição enquanto o projeto foi debatido, o CBHSF (Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco) diz que "agora, quando quase R$ 10 bilhões já foram investidos, essa polêmica perdeu o foco político, muito embora historicamente vá se manter ainda por um longo período". O CBHSF atenta para a importância de se fiscalizar a vazão autorizada pela ANA (Agência Nacional de Águas) e cobra o engajamento dos Estados que passarão a receber água do rio.
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O caminho do São Francisco pelos canais da transposição |
"A entrada em funcionamento do eixo Leste da transposição representa mais uma demanda expressiva de água em contexto de grave crise hídrica e ambiental na própria bacia e calha do São Francisco, onde as vazões a jusante dos principais reservatórios (Três Marias e Sobradinho) estão sendo reduzidas drasticamente para contornar os efeitos dramáticos da seca de cinco anos. Em tais circunstâncias, as condições da outorga deverão ser estritamente observadas", afirma o presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda.
"Por outro lado, o fato das bacias receptoras do Nordeste Setentrional receberem as águas do São Francisco torna-as, a partir de agora, e a seus Estados também (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba) responsáveis pela gestão das águas sanfranciscanas tanto para o bônus como para o ônus, ou seja, todos que usam águas do rio São Francisco devem se obrigar a um engajamento de fato e não apenas retórico, com o uso racional dessas águas, com as restrições impostas à administração da crise hídrica que afeta o próprio rio São Francisco e com o Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica que até agora, em termos práticos, ainda não saiu do papel."
O Ministério da Integração lançou em outubro um programa de revitalização da bacia, batizado de Novo Chico, no qual diz que vai investir R$ 7 bilhões, que prevê a recuperação de nascentes e matas ciliares, tratamento de esgoto ao longo da bacia e educação ambiental, entre outras medidas.
