Vídeo informa: a palavra de Genoino tem tanto valor quanto uma cédula de 3 reais
‘Soviete da Papuda’, um artigo de Antônio Machado de Carvalho
Publicado no jornal O Tempo desta quinta-feira
ANTÔNIO MACHADO DE CARVALHO
“Uma trinca de bandidos, convivas habituais de ricaços e poderosos, hospedou-se na Papuda. Gente distraída pode associar o nome incomum ao daqueles lugares exóticos do mundo tropical. Algo do tipo hotéis e Spa’s suntuosos, dos tantos que proliferam no Brasil, destinados a abrigar figurões em momentos de tédio existencial. Mas, não. Não é uma casa de repouso e sim uma reles penitenciária, agora tristemente famosa, similar às que no resto do mundo se devotam a punir malfeitores. A trinca, então, lá aportou, por determinação do Supremo Tribunal Federal, acompanhada de um séquito (outros condenados no processo do mensalão). Ao manter os prisioneiros na comarca de Brasília, o ministro Joaquim Barbosa revelou relevante preocupação: o sistema carcerário brasileiro poderia ficar contaminado caso os patifes fossem deslocados para outros estados da federação. Melhor seria, socialmente, se ficassem próximos da vasta grei que prolifera no ambiente depravado de Brasília.
Mas a companheirada dos quadrilheiros parece que não entendeu o alcance da medida. O ilustre ministro vem sendo atacado brutalmente por eles. Tuítam pela internet coisas do gênero: “Joaquim Barbosa, o negro que traiu o Brasil, negro mau-caráter. Graças ao Dirceu, ele foi nomeado ao STF e esse fdp agradece assim”, nestes exatos termos. Um espanto! Causa espécie que ruidosas lideranças que combatem o racismo nada digam a respeito. Aliás, nem a OAB, nem ONG’s variadas e nem pomposos mandarins acadêmicos, todos supostos defensores de ações afirmativas. Essa odiosa omissão se explicaria, talvez, pela peculiar visão de mundo petista. Nela, há bons crioulos (os “nossos” pretos, claro, os que caem de quatro a um aceno do sinhô), e negros ingratos, como o Barbosão, sujeitinho pernóstico que não sabe o seu lugar.
Filas se formaram às portas da Papuda em reverência aos novos hóspedes. Cuidem-se, rápido, o PCC, o Comando Vermelho e os Amigos dos Amigos. A nova elite penitenciária chegou. Quem manda no pedaço, doravante, é o Soviete dos Papudos, sob o tacão experiente de José Dirceu, secundado por Genoíno e Delúbio, forjados nas cartilhas de Lenine, Mao Tsé Tung e Fidel Castro. Uma inovação tropicalizada aos manuais leninistas se dará com a inclusão do lumpen-proletariado nas articulações para construir um novo Brasil. Em breve, Marcola, Fernandinho Beira-mar e Elias Maluco se curvarão prestando vênias aos companheiros de armas.
A Papuda propiciará um benefício adicional. Entrará no rol dos roteiros turísticos mais apreciados da capital da República. Quem sabe, o governo do Distrito Federal não constrói um shopping popular para vender artesanato e lembranças com imagens de tão caricatas figuras? O mercado capitalista tem dessas coisas. Em vez de “tudo acabar em livro”, como queria o poeta, tudo acabaria mesmo no comércio e na mais vil pecúnia. Vivas, pois, aos guerreiros e heróis da república lulista.
O vídeo informa: a palavra de Genoino tem tanto valor quanto uma cédula de 3 reais
De novo, o deputado presidiário José Genoino qualificou de “abutres” os jornalistas que acompanham seus deslocamentos entre a Papuda e o hospital. Mais uma vez, a coluna replica com a exibição de um vídeo gravado em 1° de setembro de 2008 pelo programa CQC, da Band. É mais que uma conversa entre o humorista Warley Santana, que se apresenta como “jornalista e assessor de imagem”, e um figurão do PT. É uma prova contundente de que a palavra de Genoino tem tanto valor quanto uma cédula de 3 reais.
No começo da entrevista, o enviado especial do CQC lhe pede que aponte as principais diferenças entre a juventude dos anos 60 e a de agora. Aquela “tinha sonho ideologia e causa”, afirma Genoino. “A juventude de hoje, apesar de ter mais informação, ela tem menos conhecimento”. Com as câmeras desligadas, o declarante ouve o conselho: como o público do programa é constituído majoritariamente por jovens, seria conveniente abrandar com observações elogiosas os reparos que fizera aos moços deste início de século.
Imediatamente aceita, a sugestão provoca bruscas mudanças na forma e no conteúdo do palavrório. “Uma geração não pode se relacionar com a outra de maneira arrogante nem autoritária”, corrige-se Genoino no recomeço do palavrório. “Cada geração vive a intensidade da sua época”. Hoje, derrama-se o declarante, os jovens “estão vivendo uma intensidade positiva, têm muita informação”. Os poucos minutos seguintes bastam para transformar o que deveria ser uma entrevista num monumento à hipocrisia. E confirmam que, a exemplo do chefe supremo, sacerdotes da seita lulopetista não têm compromisso com o que dizem.
Os problemas cardíacos do mensaleiro condenado por corrupção ativa são reais, mas só quando o paciente está engaiolado na Papuda aparecem surtos de depressão ou princípios de enfarte. A doença existe. Os achaques do hóspede da cela S 13 podem ser tão verdadeiros quanto o depoimento ao CQC.
‘Luta por privilégios’, de Merval Pereira
Publicado no Globo desta quinta-feira
MERVAL PEREIRA
Os “presos políticos” José Dirceu e José Genoíno continuam sua “luta política” na tentativa de se livrarem da parte mais dura da condenação, mesmo no regime semiaberto a que estão condenados.
O terceiro membro petista do que até agora é considerado “uma quadrilha” pelo STF, Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, parece ter se aquietado depois de ter assinado manifesto político no primeiro dia de prisão.
Quanto mais se debatem dentro da prisão em busca de privilégios que já são evidentes no dia a dia da cadeia, Dirceu e Genoíno vão produzindo fatos que apenas aumentam a visibilidade de suas condenações e expõem à opinião pública a tentativa de desmoralizar a Justiça e fugir de suas responsabilidades penais.
O caso que parecia mais simples, e acabou se transformando em uma complicação para o próprio condenado e também para o ministro Joaquim Barbosa, é o de Genoíno, que alega doença grave para pedir prisão domiciliar.
O petista fez uma cirurgia em julho e colocou uma prótese na aorta, procedimento sem dúvida arriscado, mas que, ao que tudo indica, teve êxito absoluto.
Parentes e amigos chegaram a falar em “risco de morte” se ele permanecesse na Papuda, mas duas juntas médicas deram pareceres contrários à necessidade da prisão domiciliar. Primeiro, uma indicada pela Universidade de Brasília a pedido do presidente do Supremo, ministro Joaquim Barbosa, definiu que seu caso não era para prisão domiciliar.
Em seguida, outra junta médica, esta da Câmara dos Deputados, deu o mesmo diagnóstico. Os médicos da UnB concluíram que Genoíno apresenta “excelente condição clínica atual, sem expectativa em qualquer prazo futuro de eventual insucesso cirúrgico ou complicação”. O petista é “portador de cardiopatia que não se caracteriza como grave”, o que permite que ele seja tratado normalmente no sistema prisional.
Os blogs chapas-brancas, muitos financiados pelo governo petista, tentaram, como sempre fazem, desacreditar os médicos brasilienses, chegando ao cúmulo de atribuírem o laudo a tendências políticas antipetistas.
A nomeação de uma junta distinta pela Câmara chegou a entusiasmar os apoiadores do PT, que viam na sua escolha uma posição independente dos deputados em relação a Joaquim Barbosa.
Mas o laudo médico da junta designada pela Câmara também concluiu que o deputado licenciado José Genoíno não é portador de cardiopatia grave.
O petista queria antecipar sua aposentadoria por invalidez para escapar da abertura de um processo de cassação. Os médicos, porém, disseram que, até o momento, não é possível atestar a sua incapacidade definitiva.
Eles prorrogaram a licença médica por mais 90 dias e disseram que queriam evitar o pior. “Rotular uma pessoa como inválida. Nessa doença há grande chance de melhora”. O que para um cidadão comum seria um laudo bem-vindo, para Genoíno, é um empecilho.
O caso de José Dirceu é mais patético. Depois de tentar reviver na prisão os tempos heroicos de preso político, orientando os companheiros de cela nas discussões políticas e dando conselhos de como se comportar, foi contratado para trabalhar de gerente num hotel de Brasília.
O salário de R$ 20 mil, embora risível diante dos ganhos com sua consultoria, ainda assim coloca Dirceu em posição de elite, ainda mais se comparado com o salário em torno de R$ 2 mil dos companheiros de trabalho.
O proprietário do hotel, Paulo Masci de Abreu, é também dono de uma empresa de comunicação que possui várias rádios, em São Paulo, na rede CBS (Comunicações Brasil Sat).
Há informações de que a relação com Dirceu vem do tempo em que o ex-ministro trabalhava com consultoria e teria ajudado o empresário a negociar com o governo concessões de mídia, entre as quais a da ex-TV Excelsior, que dependeria de uma aprovação de Dilma.
Embora, como preso em regime semiaberto, Dirceu tivesse que trabalhar, segundo o artigo 35 do Código Penal, “durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar”, o “trabalho externo é admissível”. Um privilégio que poucos conseguem.
Reynaldo-BH: Era uma vez…
REYNALDO ROCHA
Era uma vez…
Assim começam as histórias da Carochinha. Jamais o professor Marco Antonio Villa começaria um livro assim. Como não sou historiador nem jornalista, não só começo dessa maneira como emendo: “em um reino distante da civilização…”.
Pronto: falamos do Brasil. Nesta estranha terra, havia um advogado que não advogava. Que era consultor econômico sem nunca ter lido um manual de contabilidade. Que se dizia especialista em política e jamais citou um autor de sociologia política. Como a terra era única em suas idiossincrasias, era o consultor de maior sucesso na história desta terra.
Também não se conheciam os clientes do consultor. Nem mesmo o que era ofertado como serviço. Mas era caro. Muito caro.
Quis o destino que o consultor-mor fosse parar no xilindró. Não estava preso pelas consultorias, mas pelos serviços prestados (e ele mesmo e alguns amigos) antes da fase empresarial.
Vendo o sol nascer quadrado, usou da lei para se candidatar a trabalhar fora dos muros da prisão.
Os advogados do consultor-fantasma já estavam preparados para o pedido do benefício. O reino da mediocridade imperial se perguntava: saberemos enfim o que faz o consultor? De que vive? Que tipo de trabalho presta?
E veio a surpresa. O fim do mundo não é fim, o limite é ilimitado e o poço nunca tem fundo, só início para outro poço.
O consultor trabalhava em hotel! Era tão claro e nunca percebemos. Os escritórios e gabinetes quando o consultor-de-qualquer-coisa trabalhava foram transferidos para quartos de hotel. Nada mais justo que o retorno ao habitat natural.
Seria maître, recepcionista, mensageiro ou camareiro? Certamente não. As profissões honestas nunca ganharam o que o consultor fake ganhou.
O consultor-condenado vai trabalhar NO HOTEL e não PARA o hotel. Localização privilegiada: ao lado do Congresso, da Esplanada dos Ministros e do Palácio do Planalto.
O consultor-bolivariano não sente vergonha. Nunca sentiu. A seu (dele) favor é preciso que se diga: age às claras. Sem nunca se importar com miudezas como honestidade, decência e um mínimo de vergonha na cara!
O consultor-de-era-da-mediocridade, bandido condenado, capitão de um time de batedores de carteira, chefe dos trombadinhas, o orgulhoso ladrão que se assume com tal, encontrou a saída da cadeia: um HOTEL.
O pedido é um escárnio. A sentença transformou-se em hospedagem. Fará no hotel o que sempre fez. Continuará cometendo os crimes que o levaram para trás das grades.
No país dos escadinhas ─ o Brasil deles ─ a terra encantada transforma presídio em hotel e bandidos condenados em bandidos em atuação.
Era uma vez…
‘Dois Josés e um Amarildo’, de Eliane Brum
Publicado no site brasileiro do El País
ELIANE BRUM
Havia algo de melancólico no braço erguido dos dois Josés, Genoino e Dirceu, ao serem presos por corrupção. E na afirmação: “Sou preso político”. O punho cerrado é o gesto de resistência de uma geração que lutou contra a ditadura, pegou em armas, foi presa, torturada e assumiu o poder na redemocratização do país. É também o gesto que não mais encontra destinatário para além de seus pares e de parte da militância do PT. É, principalmente, o gesto que não ecoa na juventude que se tornou protagonista dos protestos que mudaram o país. No Brasil que reconheceu Amarildo, o pedreiro, como mártir da democracia, a evocação vinda de José Genoino e de José Dirceu para ocupar esse lugar não encontra ressonância. Desde as manifestações de junho, os presos políticos são os comuns. Para um partido tão hábil em esgrimir simbologias, não compreender o Brasil forjado no ano que não terminou é uma tragédia talvez maior do que a prisão por corrupção de duas de suas estrelas históricas.
Mártir político é Amarildo de Souza. Favelado, negro, analfabeto, 43 anos, o ajudante de pedreiro conhecido como “boi” pela sua capacidade de carregar sacas de cimento desapareceu em 14 de julho ao ser levado a uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha, no Rio de Janeiro. Amarildo, o homem comum vítima da política de criminalizar, torturar e executar os pobres. Uma política que atravessa a história do Brasil, persiste na redemocratização e se manteve nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Não era o primeiro a desaparecer depois de entrar num posto policial, não foi o último. Mas, pela primeira vez, um homem comum, carregando em si todas as marcas da abissal desigualdade do Brasil, foi reconhecido como um desaparecido político da democracia, lugar destinado a ele pela convulsão das ruas. Esta pode ter sido a maior transformação colocada em curso pelos protestos.
Preso político é Rafael Braga Vieira, 26 anos, catador de latas, morador de rua, negro. Ele foi preso em 20 de junho, durante uma manifestação na Avenida Presidente Vargas, no Rio. Já tinha sido preso por roubo em duas outras ocasiões e cumprido as penas completas. Desta vez, está encarcerado, sem julgamento, há cinco meses no presídio de Japeri. Seu crime: carregar uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária. E uma vassoura, mas esta não foi considerada suspeita. Seu caso foi relatado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humano
Desaparecido político é Antônio Pereira, 32 anos, auxiliar de serviços gerais, negro. Sumiu em 26 de maio, em Planaltina, no Distrito Federal. Há suspeita do envolvimento de policiais militares no seu desaparecimento. Manifestantes marcharam até o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios para protestar pelo seu sumiço. A Comissão de Direitos Humanos do Senado passou a investigar o caso.
Morto político é Douglas Rodrigues, 17 anos, estudante do terceiro ano do ensino médio e atendente de lanchonete. Levou um tiro no peito de um policial numa tarde de domingo, 27 de outubro, quando estava diante de um bar com o irmão de 13 anos, na Vila Medeiros, em São Paulo. Só teve tempo de dizer uma frase, que se transformou num símbolo contra o genocídio de gerações de jovens negros e pobres das periferias do Brasil. Douglas fez sua última pergunta, um conjunto de vogais e consoantes onde cabia uma vida inteira, antes de cair morto: “Por que o senhor atirou em mim?”. Em protesto pela sua morte a população incendiou ônibus, carros e caminhões e depredou agências bancárias.
Estes – e muitos outros – tornaram-se os presos políticos, os desaparecidos políticos e os mortos políticos da democracia desde que os brasileiros redescobriram as ruas e deslocaram a política para fora dos partidos e das instituições. Por isso o braço erguido, o punho cerrado, dos dois Josés, Genoino e Dirceu, é tão melancólico. É o gesto que não se completa ao não encontrar o presente. Lula, o PT e a cúpula do governo concentram sua preocupação e seus esforços para reduzir o impacto das prisões de figuras históricas na eleição de 2014, na qual Dilma Rousseff é a favorita para um segundo mandato. Talvez devessem se dedicar mais a escutar as novas simbologias forjadas nos protestos.
Foi justamente Lula, com a enorme força simbólica de ser o primeiro homem comum a chegar ao poder no Brasil, que em 2009 compactuou com a desigualdade histórica e a política arcaica, em uma frase: “Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”. Ao pronunciá-la, protegeu o político oligarca que há décadas colabora para promover a miséria de milhões de homens, mulheres e crianças comuns no Maranhão, um dos estados mais pobres do país, e mostrou, como na frase famosa do clássico de George Orwell, hoje um clichê, que, quando convém, compartilha da ideia de que existem aqueles que são mais iguais que outros, tão iguais que merecem tratamento diferenciado.
A reivindicação de “preso político” por Genoino e Dirceu aponta para um cálculo que visa à biografia pessoal de cada um e à do próprio PT, assim como à disputa na construção da memória do país e do imaginário imediato. É também um apartar-se, na linguagem, do preso comum, uma impossibilidade de igualar-se a todos os outros detentos, que também declaram-se, em sua maioria, “inocentes”. Nos dias que antecederam à prisão, José Dirceu, aquele que anunciaria ser um “preso político da democracia por pressão das elites”, descansava num resort de luxo na Bahia que só as elites têm dinheiro para frequentar. Na primeira semana de prisão, foi citado, como exemplo de maus tratos, que Genoino estava tomando “água da torneira”. Isso num país em que “água da torneira”, mesmo depois de dois mandatos de FHC, dois de Lula e três anos do governo de Dilma Roussef, é sonho distante para muitos, uma realidade que o sertanejo Genoino conhece bem. Familiares de presos – estes comuns –, condenados sem crime e sem pena a noites de espera e humilhações para conseguir visitar pais, maridos e filhos na prisão da Papuda, em Brasília, revoltarem-se com o que definiram como “privilégio” daqueles que reivindicam o status de “presos políticos”.
Na prisão, a estrela do PT, que simbolizou – e ainda simboliza para muitos – tanta esperança de igualdade, foi reduzida ao sentido original do jargão publicitário: os presos do “mensalão” ganharam na prática e no imaginário da população o status de gente diferenciada. Esta é uma perda importante para o patrimônio simbólico construído pelo partido a qual seus líderes parecem estar dando pouco valor. O espetáculo promovido pelo ministro Joaquim Barbosa, ao levar os presos algemados para Brasília no feriado da Proclamação da República, foi um excesso em um momento histórico que exigia serenidade e contenção. Deixar presos de regime semiaberto em regime fechado foi um abuso, a que milhares são submetidos por falta de vagas no cotidiano do sistema prisional. A saúde e a vida de José Genoino devem ser protegidas. Não por conta de sua história, mas porque é dever do Estado proteger todos os presos sob sua tutela.
Defender a proteção da vida em nome da “dignidade da biografia” é uma distorção. Só colabora para justificar atrocidades cometidas fora e dentro do sistema prisional contra aqueles cuja história é reduzida ao termo encobridor de “bandido”. Os mesmos que, com frequência escandalosa, são executados sem julgamento num país que não tem pena de morte. Crimes cometidos, por exemplo, por polícias como a Rota, a brutal tropa de elite da PM paulista, há quase duas décadas sob o comando dos sucessivos governos do PSDB. Mas é preciso lembrar que também faz parte da biografia de Genoino tê-la defendido em 2002, ao se candidatar ao governo de São Paulo, numa frase que obedecia ao pragmatismo eleitoreiro: “Uma política de direitos humanos não deve impedir a Rota de agir com energia e com força”.
O fato é que Genoino só teve seu direito assegurado por ser um preso privilegiado. Mas a distorção não é a de ele ter recebido assistência, mas a de que todos os outros presos continuem sem ela, a de que é preciso ser um preso “diferenciado” para ter seus direitos básicos garantidos pelo Estado. As vozes que se ergueram para denunciar os maus tratos a que ele era submetido jamais foram tão fortes para defender os presos comuns que adoecem de tuberculose e Aids no cárcere e morrem sem tratamento. É um passo atrás no processo civilizatório quando as pessoas gozam com o sofrimento de Genoino, como ficou explícito nos comentários das redes sociais, alguns torcendo até mesmo pela sua morte, como se não fosse de um ser humano que se tratasse. Mas é preciso escutar também os “bárbaros” para compreender que os mais pobres, sem nenhum problema com a lei, com frequência criminosa não encontram tratamento digno – ou mesmo tratamento algum – no Sistema Único de Saúde (SUS). E que cada vez mais é claro para todos que o dinheiro que se esvai na corrupção é também o que falta na saúde.
Do partido que diz falar em nome do homem comum esperava-se a grandeza de declarar que mártires são todos os outros. E que direitos de todos não podem ser privilégios de um. Ao demonstrar preocupação por Genoino, Dilma Rousseff demonstrou também omissão por todos os outros presos que vivem uma rotina de ilegalidades e desrespeitos aos direitos humanos mais básicos nas prisões do país que o PT governa há mais de uma década e que tem a quarta maior população carcerária do mundo. Sem esquecer que é dos estados o encargo de construir e administrar os presídios, assim como proteger os presos, obrigação em que todos, de diferentes partidos, falham. A responsabilidade ao perpetuar o que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso chamou de “masmorras medievais” é compartilhada. São mais de meio milhão de presos encarcerados em situação tão brutal que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, chegou a dizer que preferiria morrer a cumprir pena.
Assumir-se como preso comum teria sido um gesto simbólico mais forte para quem estreou na vida pública como preso político de uma ditadura, daquela vez sim sem julgamento. Aqueles forjados na luta armada contra um regime de exceção, ao assumirem o poder, lutaram menos do que deveriam pelos presos comuns que continuaram e continuam sendo torturados e mortos nas delegacias, cadeias e prisões do país. Ainda hoje a tortura dos presos políticos na ditadura, a maioria deles de classe média, recebe muito mais atenção do que a tortura sistemática dos presos comuns que perdura na democracia. Sem esquecer que a maioria dos presos torturados e confinados no sistema carcerário brasileiro é composta por negros e pobres.
É também de classe social que se trata. Não é um acaso que Manoel Fiel Filho, o operário assassinado pela ditadura, tenha muito menos ressonância na democracia do que Vladimir Herzog, o jornalista assassinado pela ditadura, embora a morte de ambos tenha impulsionado o movimento da sociedade pelo fim do regime militar. Quando Dirceu e Genoino levantam o braço e cerram o punho, declarando-se “presos políticos”, não estão denunciando apenas o que consideram um “julgamento de exceção”, mas colocando-se diante de todos os outros presos como “exceção”. É como dizer: “Eu estou aqui, mas sou melhor do que vocês”.
O espetáculo promovido por Joaquim Barbosa para o que chegou a ser interpretado, com um tanto de exagero, como uma “refundação da República” revelou mais do que estava programado. Mostrou esse lapso, esse corte no tempo, em que o braço erguido, o punho cerrado, se alienou das ruas. Quando as manifestações de junho começaram, a classe média conheceu a truculência da polícia sem perceber que estava diante de seu espelho. Nas quebradas de São Paulo, o poeta Sérgio Vaz ironizou: “Aqui na periferia as balas continuam sendo de chumbo. Estamos reivindicando um upgrade para balas de borracha”. E logo as balas de chumbo acertaram dez (nove moradores e um policial), no complexo de favelas da Maré, no Rio, na sequência de um protesto. E então, em 14 de julho, ao desaparecer, Amarildo de Souza apareceu diante do Brasil.
Para a juventude que protestou – e em vários momentos expulsou das ruas os militantes de partidos, incluindo os do PT –, os presos políticos passaram a ser os manifestantes levados para a cadeia pela polícia do Estado democrático. Nesta apropriação simbólica – que se inicia antes, mas se consolida a partir dos protestos –, ao mesmo tempo retoma-se o conceito de preso político da geração de Genoino e Dirceu, forjado nos atos contra a ditadura, mas com um sentido próprio, na medida em que a democracia traz uma nova complexidade para as questões que envolvem o termo. No mesmo movimento, assume-se o nome e o rosto das vítimas anônimas e despolitizadas da violência racial e de classe e se dá a elas um conteúdo político. Como aconteceu com Amarildo – mas não só. Vale a pena lembrar que o estopim dos protestos foram 20 centavos – que muitos, em especial a classe média, acharam pouco para tamanha comoção, mas que se tratava da dor de milhões de invisíveis cuja vida é mastigada dia após dia em horas perdidas dentro de ônibus superlotados. Era uma escolha pelo homem comum – incorporando-o em cada um.
É importante perceber ainda que, para uma parte significativa dos manifestantes, os presos políticos são aqueles que a maioria dos partidos, assim como grande parte da imprensa, chamam de “vândalos”. Se os Black Blocs têm vários motivos para cobrir a face, há neste ato também uma escolha pelo anonimato, um fundir-se na multidão. Apoiando ou não suas ações, é preciso reconhecer que escolher se mostrar “sem rosto” é um gesto político de grande significado.
A cara desses movimentos sem líderes anunciados e com causas múltiplas é a da multidão. Mas, a cada momento, a multidão pode assumir a face de um anônimo, para lhe dar coletivamente um nome e uma história. Na hashtag do Twitter, #SomosTodosAmarildo. Ou somos todos aquele que é torturado, violado, morto. #SomosTodosUm. Esta é uma mudança profunda que os homens que levantaram o braço e cerraram o punho parecem não ter compreendido. Se ela parte dos protestos nas ruas, também os transcende para ocupar outros redutos. Enquanto a pequena saga de Genoino se desenrolava, na semana passada, Caetano Veloso e Marisa Monte cantavam no Circo Voador, no Rio, para levantar fundos para a família de Amarildo. A certa altura, a cantora pediu à plateia que vestissem a máscara de Amarildo que haviam recebido na entrada: “Vamos deixar registrado para a posteridade esse momento onde a gente incorpora o Amarildo e graças a isso consegue transformar tantas coisas. É assim que a gente consegue mudar esse país”. A máscara é a possibilidade de ser um e, ao mesmo tempo, todos os outros.
A mudança é um momento agudo de um processo histórico no qual Lula e o PT tiveram, mais do que qualquer outro político e partido, uma contribuição decisiva, no concreto e no simbólico de sua ascensão ao poder. Apartaram-se, porém, e parecem estar bem menos preocupados do que deveriam com seu divórcio com as ruas. O braço erguido, o punho cerrado, é um capítulo melancólico de um partido que parou de escutar. Em parte porque acredita conseguir manter o voto dos homens e mulheres comuns que recebem o Bolsa Família e ainda se contentam com o que, se por um lado é enorme, ao reduzir a miséria e a fome, também é pouco para a potência contida numa vida humana.
A tragédia dos dois Josés do PT não é apenas terem sido presos por corrupção, mas a impossibilidade de dizer #SomosTodosOsPresos.
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