Agricultura familiar no combate à insegurança alimentar: 400 toneladas de alimentos doados em São Paulo
Era 11 de março quando a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia da Covid-19. No Brasil, o caos ainda parecia distante, mas apenas dez dias depois o Governo do Estado de São Paulo determinou a quarentena e dali em diante começava um grande período de incerteza.
Do campo à mesa, absolutamente ninguém era capaz de dizer o que estava por vir. Comércio, hotelaria, escolas e até mesmo os supermercados passaram a ter certo controle dos clientes. Para os pequenos produtores, a dúvida era ainda maior e se tratando dos agricultores que trabalham com produtos perecíveis, o cenário ficou ainda mais nebuloso.
Foi com esse cenário, ali em Mogi das Cruzes, que nasceu um dos maiores projetos sociais do agronegócio paulista. No Distrito Rural de Quatinga, a 90 quilômetros de São Paulo, e sem ter para quem comercializar a mercadoria, alguns produtores de pequena escala e que se enquadram na agricultura familiar, que se dedicam à horticultura resolveram destinar toda a produção para famílias carentes de São Paulo. O propósito era simples: além de não perder toda a produção, naquele momento o combate à fome de famílias descapitalizadas e ainda mais fragilizadas pela pandemia, se fazia importante.
Simone Silotti, produtora e uma das líderes do movimento que passou a ser conhecido com o nome #FaçaUmBemINCRÍVEL relembra que tudo começou apenas com seis produtores e com o foco de impedir que qualquer alimento fosse para lixo diante da dificuldade de escoamento da produção.
"O projeto começou naquela situação de estar tudo fechado, a nossa produção pronta para a venda, para o consumo e de repente todo mundo cancelando pedido. Aí a Simone Silotti teve a ideia de doar, de chamar atenção e fazer alguma coisa, e de muito certo, tivemos grandes parceiros", comenta Jaqueline Mognon, produtora de cogumelo shimeji, produto altamente perecível, além de trabalhar com a produção de milho e também hortaliças.
Fato é que a pandemia durou mais tempo do que se era imaginado. A dificuldade em combater a proliferação do vírus manteve o comércio fechado mais tempo do que o estipulado anteriormente pelas autoridades, o que fez com as doações por parte dos produtores, assim como a produção em pequena escala continuassem sendo realizadas, impactando positivamente a vida de muitas famílias em São Paulo.
"Passaram três anos, desde o dia 28 de março de 2020, quando seis pequenos produtores decidiram doar toda a produção da Semana Santa, que não seria comercializada em função da quarentena imposta pela Covid-19. Desde então, já foram mais de 400 toneladas doadas para favelas, ONGS, cozinhas solidárias, bancos de alimentos de 17 municípios da Região Metropolitana de São Paulo, beneficiando mais de 350 mil famílias em condição de vulnerabilidade, em condição de fome, insegurança alimentar e desnutrição", disse.
Atualmente, o projeto conta com 23 produtores participantes e resultou na criação da Cooperativa Agrícola de Quatinga e Região - CAQ, que tem quase dois anos de atuação. Ademir Siqueira, produtor da região que faz parte da CAQ participa das ações do projeto desde 2021, apesar de poder contar com vendas fechadas e ter um volume pequeno de desperdício.
“O que tem a mais a gente destina ao Bem Incrível também e dessa forma não perdemos nada também. Tem a venda, mas o que sobra na hora a gente costuma destinar para o Bem Incrível. A visão de cooperado e de poder estar ajudando as pessoas, ajudando a si próprio a continuar produzindo, trabalhando na roça, isso que a gente tem conseguido. E também satisfação como pessoa de poder estar trabalhando para mais pessoas, saber que está ajudando mais gente a diminuir as necessidades e instabilidade”, comenta. Ademir é um dos produtores responsáveis por ajudar a levar os alimentos e fazer a distribuição entre as famílias.
ALÉM DO CAMPO E DA COMIDA NO PRATO
O projeto bem-sucedido, além de ter alcançado metas antes inimagináveis para os produtores envolvidos, conquistou também oito premiações, inclusive do IICA – Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura comprovando que além de ser uma peça fundamental para o combate à fome e insegurança alimentar no estado de São Paulo, também é uma importante ferramenta para atender as demandas da agenda 2030. Inclusive, para as ações que valorizem o próprio produtor rural, minimizem os impactos ambientais, o êxodo rural e garanta também a valorização da mulher do campo.
“Isso reconhece o #FaçaUmBemINCRÍVEL como uma solução visionária, concreta, responsiva, estruturante no combate às desigualdades sociais, apoio ao pequeno produtor, à mulher rural. O #FaçaUmBemINCRÍVEL contribui para mitigar as mudanças climáticas. O desperdício de alimentos orgânicos correspondem de 8 a 10% das emissões dos gases do efeito estufa, é sem dúvida um projeto que promove um círculo virtuoso, com uma forte pegada ESG”, complementa Simone.
FUTURO PROMISSOR, MAS DE DESAFIOS DO CAMPO À MESA
A potência da produção agrícola do Brasil não é segredo mundo afora. O país está inserido nos principais mercados, mas chama atenção que além de um dos maiores produtores do mundo está também entre os 10 que mais desperdiçam alimentos, de acordo com dados recentes da Organização das Nações Unidas (ONU).
“É um contrassenso e que nós precisamos agir de forma contundente e são soluções simples como a do #FaçaUmBemINCRÍVEL. Por outro lado, é importante que a gente leve essa solução para todas as vilas rurais do Brasil. Eu espero esse futuro muito em breve, é importante que se torne um programa de política pública”, complementa Simone.
Outro grande desafio é o êxodo rural. Neste momento, é importante que se olhe também para os pequenos produtores rurais, esses que abastecem o mercado interno, se dedicam à horticultura, estão no cinturão verde - no entorno das regiões metropolitanas.
“O IBGE já apontou, antes da pandemia, no último censo em 2017, que reduziu em 9,5% o número de propriedades intituladas como propriedade familiar. A especulação imobiliária cresceu significativamente no campo, sobretudo em áreas próximas das regiões metropolitanas”, complementa.
Para Simone, entre os principais fatores que podem comprometer a atividade agrícola de pequeno porte na região estão a dificuldade de repassar as altas nos custos de produção.
FAO: EVITAR PERDA DE ALIMENTOS SIGNIFICA ALCANÇAR VITÓRIA DO CAMPO À MESA
Se tratando de insegurança alimentar, Gustavo Chianca, representante da Alimentação e da Agricultura (FAO) no Brasil, destaca que o último relatório da ONU mostrou que 29,6% da população global não tiveram acesso constante a alimentos em 2022. O número equivale a 2,4 bilhões de pessoas, o que de acordo com a ONU caracteriza insegurança alimentar moderada ou grave.
Em relação ao Brasil, o relatório faz uma média trianual, e mostra que entre 2020 e 2022, o número de pessoas vivendo a fome era de 10,1 milhões, cerca de 4,7% da população. Já em relação à insegurança alimentar, mais de 21 milhões de brasileiros enfrentam insegurança alimentar grave, e cerca de 70,3 milhões de brasileiros não têm acesso constante a alimentos.
"Enfrentar a perda e o desperdício de alimentos representa uma oportunidade para alcançar uma vitória no campo do clima, da segurança alimentar e da sustentabilidade dos nossos sistemas agroalimentares. Não pode ser deixada de lado em um momento de aumento da fome global e de aumento dos preços dos alimentos", afirma.
Para Chianca algumas medidas importantes do campo à mesa podem ser tomadas para ajudar no combate do desperdício de alimentos e da insegurança alimentar. Entre eles, a informação mais clara e objetiva entre campo e cidade sobre como reduzir o desperdício de alimentos, investimento na infraestrutura da cadeia de abastecimento, treinamento dos agricultores em melhores práticas e apoio à agricultura familiar com programas de inovação e infraestrutura em pós-colheita, adotar estratégias de circularidade e bioeconomia, onde os excedentes da cadeia de abastecimento possam ser reavaliados, reduzindo o impacto ambiental das perdas e desperdícios de alimentos, são alguns exemplos de medidas que podem ter impactos importantes e positivos.
"No processo de recuperação da crise global causada pela covid-19, pelos choques econômicos e ambientais, e pela guerra na Ucrânia, a redução das perdas e desperdícios é um tema que deve estar presente na agenda governamental de todos os países. As chaves estão na tomada de decisões baseadas em informações e dados de qualidade, nas alianças entre os atores do sistema alimentar, na aplicação de programas que promovam o consumo local, que apoiem os pequenos agricultores, e sensibilizem os consumidores para adquirirem hábitos e práticas mais sustentáveis", diz.
A FAO acredita ainda que no Brasil ainda é possível alcançar a fome zero, sobretudo porque o Brasil já fez uma vez e conta com um histórico positivo e sabe quais são as instituições capazes de atuar nacionalmente e cooperar internacionalmente para que isso aconteça. O representante citou programas do Governo Federal como Programa de Aquisição de Alimentos, lançou o programa Brasil Sem Fome e recriou ministérios importantes, como o Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar.
"A nível estadual e municipal, o país também conta com políticas importantes como a promoção de sistemas agroalimentares de circuito curto, restaurantes populares, aquisição de alimentos para a alimentação escolar provenientes da agricultura familiar, entre outros. O Brasil tem boas experiências de políticas públicas que podem ser retomadas e ampliadas. Estamos vivendo um momento ímpar da história, onde é preciso traçar novas rotas para a erradicação da fome em todo o mundo", finaliza.
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