“É fundamental preservar os pilares das políticas agrícolas do Brasil”, avalia Ivan Wedekin

Publicado em 01/12/2022 16:12
Ex-secretário de Política Agrícola no primeiro governo Lula, o engenheiro agrônomo e consultor Ivan Wedekin fala dos desafios do próximo governo no agronegócio

O engenheiro agrônomo paulista Ivan Wedekin, 69 anos, tem larga experiência em gestão de empresas privadas e organizações públicas no agronegócio. Atuou no mercado financeiro, como diretor da BM&FBovespa e CEO da Bolsa Brasileira de Mercadorias. Foi secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura de 2003 a 2006, durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Deixou o governo antes de Lula disputar a reeleição. “Eu sempre trabalhei no setor privado e não pretendia continuar por muito tempo no governo. Quando Roberto Rodrigues deixou o Ministério da Agricultura, eu também saí logo em seguida”, diz Wedekin, que atualmente dirige sua própria consultoria.

Wedekin afirma que é cedo para prever as possíveis mudanças que podem ocorrer no agronegócio brasileiro no terceiro mandato de Lula. Mas ele ressalta a importância de o próximo governo manter os pilares das políticas agrícolas adotadas no país nos últimos 20 anos, inclusive nas duas passagens anteriores do líder petista na presidência da República. Um desses alicerces é o respeito às regras de mercado. “Ao longo das últimas duas décadas, tivemos diversos momentos de alta de preços de produtos como o arroz e o trigo. Mais recentemente aflorou a inflação mundial de alimentos, durante a pandemia da covid-19 e o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Mas nenhum dos governos interferiu nas regras básicas de funcionamento do mercado”, diz Wedekin.

Além de não interferir no mercado — um receio que surgiu durante a campanha presidencial deste ano, quando o candidato petista usou vagamente o termo “regulação” da produção agrícola em sua proposta de governo —, Wedekin chamou a atenção também para a necessidade de segurança jurídica contra invasões de terras, um tema sensível que foi explorado por Jair Bolsonaro durante a campanha e que é um dos motivos do forte apoio obtido por ele entre os produtores rurais.

Apesar dos desafios que aguardam o novo governo, incluindo a grave crise fiscal no país, Wedekin se diz otimista com as perspectivas para o agronegócio brasileiro nos próximos anos. Para ele, uma das pautas que devem ganhar força com Lula é a do meio ambiente. “O próximo governo, com um novo discurso e com atitudes para enfrentar concretamente o desmatamento ilegal, a grilagem, a mineração realizada em desacordo com a lei, tem condições de reverter a imagem negativa do país e fazer do limão uma limonada”, afirma o consultor.

Confira na entrevista a seguir.

Qual é a sua expectativa em relação ao governo Lula no que diz respeito ao agronegócio? Que tipo de mudanças o sr. prevê em relação à gestão atual?

É uma pergunta difícil de responder, porque, por ora, ainda não vimos nada de objetivo em relação às propostas do novo governo. Mas um conceito básico para ter em mente é que, ao longo dos últimos 20 anos, tivemos uma série de governos de diferentes ideologias e filosofias. Nesse período tivemos os governos de Luiz Inácio Lula da Silva, de Dilma Rousseff, de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. Apesar das diferenças nos modos de encarar a economia e o social, em todos os governos a política agrícola foi tratada como prioridade. E essa política privilegiou o crédito para investimento, que é o crédito que aumenta a produtividade e, portanto, fortalece a competitividade. Além disso, foi uma política que deu prioridade à agricultura familiar, por meio do Pronaf, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, criado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Para ter uma ideia, o crédito concedido ao Pronaf saltou de 2,3 bilhões de reais na safra 2002/2003 para 46 bilhões de reais na safra 2022/2023. No governo Lula, tivemos a implantação do programa de seguro rural, que é um programa de subvenção, ou seja, o governo paga um pedaço do prêmio de seguro que o agricultor contrata para proteger sua lavoura, especialmente de problemas climáticos. Com a lei dos títulos do agronegócio de dezembro de 2004, fizemos a maior revolução capitalista no financiamento da agricultura e do agronegócio. Atualmente, o saldo dos títulos do agronegócio chega a 450 bilhões de reais, ante um saldo de 505 bilhões do crédito rural oficial. Assim, os governos podem priorizar pequenos e médios produtores. Outra característica desse período foi a prevalência de regras de mercado. Tivemos diversos momentos de alta de preços de produtos como o arroz e o trigo. Mais recentemente aflorou a inflação mundial de alimentos, durante a pandemia da covid-19 e o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Mas nenhum dos governos interferiu nas regras básicas de funcionamento do mercado. Da mesma forma, nenhum desses governos fez a tributação das exportações do agronegócio, desoneradas desde a Lei Kandir, de 1996. Vale lembrar também que, em 1999, o Banco Central adotou o sistema de câmbio flutuante, que vigora até hoje. Com a desoneração das exportações e a liberação do câmbio, as exportações do agronegócio brasileiro, que representavam 9% do PIB do agro em 1997, pularam para 27% em 2021. O setor ganhou musculatura e o Brasil tem hoje o maior saldo da balança comercial agrícola do mundo, isso apesar de uma característica que poucos países produtores têm, que é um grande mercado interno. De tudo o que o Brasil produz no campo, 73% ficam no mercado interno. Com isso, as reservas cambiais brasileiras atingiram o nível atual de 350 bilhões de dólares, que representam o nosso maior colchão contra uma crise internacional. Então, eu diria que, no próximo governo Lula, o que se espera é a preservação desses pilares da política agrícola, que são os recursos para o crédito rural e o seguro rural e a manutenção das regras de mercado.

Quais são os pontos de atenção no próximo governo?

Um ponto de atenção envolve a tributação. O estado de Goiás, por exemplo, aprovou recentemente uma taxa sobre as exportações do agronegócio com o objetivo de criar um fundo para investimento em infraestrutura. Coerente, o Paraná desistiu dessa tributação. Esse é um erro que já cometemos no passado. Qualquer forma de intervenção nos mercados gera ineficiência, distorções, favorecimentos e perda de competitividade. Basta ver a Argentina. Há ali uma transferência de renda da agricultura para os demais setores econômicos da ordem de 24% do valor da produção da agropecuária, porque o país tem esses impostos de exportação. A OCDE tem um indicador chamado Producer Support Estimate (PSE, ou estimativa de apoio ao produtor), que mede quanto da receita dos produtores vem do apoio da política agrícola. O Brasil é um dos países que menos subsidiam a agricultura no mundo. Por aqui esse índice é de 1,5%, na média de 2018 a 2020, enquanto na China está em 12% e na União Europeia chega a 19%. Na Argentina o PSE é de -24%, ou seja, não há subsídio e sim penalização da agricultura por causa dessa interferência nas regras de mercado.

Outro ponto de atenção é o orçamento da política agrícola. O próximo governo está discutindo atualmente a PEC da Transição para viabilizar os gastos na área social fora do teto fiscal. Seja como for, o que não pode é o governo fazer o ajuste fiscal em cima da agricultura, pois os gastos com a política agrícola já são pequenos, tendo custado menos de 9,5 bilhões de reais em 2021. A título de comparação, em 2019, antes da pandemia, o programa Bolsa Família mobilizou 32 bilhões de reais.

Por fim, eu citaria a questão das ameaças de invasão de terras. No passado, o presidente Lula chegou a usar um boné do MST. Atitudes desse tipo não são recomendáveis neste momento. Durante a campanha presidencial deste ano, um dos motivos do apoio do agronegócio à candidatura de Jair Bolsonaro se deveu a essa visão de que ele reduziu a invasão de terras. O presidente fez uma política de titulação dos assentamentos de reforma agrária, entregando os títulos para pessoas que estavam em posse da terra e ainda não tinham a propriedade. Essa questão da segurança jurídica será um ponto de grande relevância durante o governo Lula.

Um mês depois da eleição de Lula, ainda se veem bloqueios em algumas estradas em protesto contra o resultado das urnas, inclusive com o apoio de produtores agrícolas. Como o sr. imagina que será o relacionamento do próximo governo com o setor?

Meu trabalho sempre foi muito técnico e não sou um analista político, mas as coisas parecem estar encaminhando para Lula “abraçar parte do Congresso, e vice-versa”, ou seja, para a construção de uma base de apoio parlamentar. Nos 3,5 anos em que fui secretário da Política Agrícola, há quase 20 anos, 90% das decisões do Congresso vinham do Executivo. Hoje, 90% das decisões do Congresso são dos próprios parlamentares. O peso do Executivo diminuiu muito, até exageradamente, na questão da formulação das políticas e do próprio encaminhamento do Orçamento. Além disso, temos uma Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), uma Frente Parlamentar do Cooperativismo (Frencoop) e uma Frente Parlamentar da Agricultura Familiar bem organizadas e atuantes no Congresso, assim como um setor privado muito bem representando, com entidades como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), entre outras. Eu presumo então que haverá uma orquestração entre a presidência da República e o Congresso Nacional, e essa fumaça pós-eleitoral vai se dissipar em favor da construção de um entendimento, mesmo porque é inconcebível imaginar que o governo federal vai “jogar bola nas costas” e atrapalhar o desenvolvimento do agronegócio, o setor mais competitivo do país e que tem hoje um papel fundamental na segurança alimentar mundial.

Lula esteve recentemente na COP27, a conferência do clima no Egito, e fez uma palestra em que se comprometeu com a redução do desmatamento e das emissões. A pauta ambiental deverá ganhar força no próximo governo e qual vai ser o impacto disso para o agronegócio?

Essa é uma pauta muito importante porque, no fundo, os produtores agrícolas profissionais são os grandes parceiros e aliados do meio ambiente. O Brasil tem a maior parte do seu território protegido com floresta natural, inclusive dentro das propriedades rurais. No estado de São Paulo, por exemplo, o produtor precisa preservar 20% de sua área. Em regiões da Amazônia, são 80%. Enfim, temos boas políticas, e o que precisamos ter também é uma vigilância eficiente contra o desmatamento, principalmente combatendo a ilegalidade. Nesse aspecto, a imagem do Brasil piorou nestes últimos anos, até pela postura um tanto agressiva do atual presidente da República. Com o novo governo, a Noruega, por exemplo, já anunciou que vai destravar os recursos do Fundo da Amazônia, que estavam congelados. O Brasil está no holofote internacional por causa do meio ambiente e da Amazônia. Obviamente, existem pressões por conta de concorrentes brasileiros que querem colocar uma pedra no nosso caminho. Mas o próximo governo, com um novo discurso e com atitudes para enfrentar o desmatamento ilegal, a grilagem, a mineração realizada em desacordo com a lei, tem condições de reverter essa imagem negativa e fazer do limão uma limonada.

Como avalia o atual cenário global, com a alta dos preços de alimentos por fatores como a pandemia da covid-19 e a guerra entre a Ucrânia e a Rússia? O sr. vê o agronegócio brasileiro com otimismo para os próximos anos?

Sim, eu vejo o futuro com otimismo. Estamos caminhando para a maior safra da história do Brasil. Temos essa responsabilidade social, esse compromisso com a segurança alimentar global. A inflação de alimentos já dá sinais de recuo. Temos o risco fiscal, que deixa o Banco Central mais cauteloso, mas o mundo está precisando ampliar a produção de alimentos. O mundo precisa colher duas safras grandes para reverter o processo inflacionário. E o agro brasileiro está respondendo porque tem mercado e é competitivo. A China agora está começando a abrir as importações de milho do Brasil, algo que era impensável até alguns anos atrás. Temos cadeias produtivas muito competitivas na área de grãos, como soja e milho, que são o lastro para a produção de proteínas, de leite, de carne bovina, de aves e suínos. Nossa matriz produtiva do agronegócio é um reflexo dos setores mais dinâmicos, em termos de demanda, do agronegócio mundial. E nós já temos aqui também uma matriz energética muito mais limpa do que as da Europa, que atualmente enfrenta problemas por causa da interrupção no fornecimento de gás pela Rússia. No Brasil temos o biodiesel, temos o etanol de cana e temos agora o etanol de milho. Portanto, dispomos de uma matriz produtiva tanto de alimentos quanto de energia renovável, que fazem com que tenhamos boas perspectivas de continuidade no desenvolvimento do agronegócio brasileiro. O que não podemos é criar atritos desnecessários. Daí a importância dessa concertação política entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Temos grandes desafios pela frente, mas tenho a esperança de que o novo governo poderá reunir condições para um encaminhamento positivo. O agronegócio é gigante e global, mas tem raízes fincadas no interior. É preciso regá-las com boas políticas e um bom ambiente de negócios.

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Fonte:
Insper

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