O apagão do Nordeste iluminou a face enrugada do governo que já nasceu velho

Publicado em 07/02/2011 14:02
por Augusto Nunes, de Veja.com.br

O Dicionário da Língua Portuguesa/Acordo Ortográfico informa que apagão quer dizer “interrupção provisória do fornecimento de eletricidade a uma dada região”. Na madrugada de sexta-feira, sete Estados do Nordeste atravessaram a madrugada na escuridão. Foi um apagão, certo? Errado, repetiu nesta segunda-feira o ministro Edison Lobão. Cabelos e sapatos engraxados com igual capricho, voz de apresentador de circo, o canastrão maranhense recitou a fala que lhe coube no ato mais recente da ópera dos farsantes: “Não foi apagão. Houve interrupção provisória de energia elétrica”. Quer dizer: embora tenha ocorrido seu significado, o substantivo não aconteceu.

O que ainda esperam os jornalistas para atirar pilhas de dicionários sobre a figura bizarra?, estaria perguntando Nelson Rodrigues. O que há com a imprensa que finge enxergar um ministro de Minas e Energia onde existe o atual capataz do latifúndio mais produtivo da capitania explorada pela Famiglia Sarney? Num país sério, um Lobão seria despejado do gabinete no meio da primeira frase cretina. No Brasil da Era da Mediocridade, é outro reincidente sem medo ─ e cada vez mais atrevido. Já não gagueja quando conta que, entre tantos assombros, o apagão foi expulso por Lula e proibido por Dilma Rousseff de dar as caras por aqui.

Submisso a todos os governos desde que se apaixonou pela ditadura militar, Lobão estreou no papel de doutor em eletricidade em outubro de 2009, escalado por Lula para explicar o blecaute que afetou metade do Brasil. Numa entrevista coletiva inverossímil, procurou tranquilizar a nação com a versão espantosa: ocorrera apenas a paralisação da usina de Itaipu, provocada por trovões que ninguém ouviu e raios que não caíram. Até então preocupada com possíveis estragos na imagem da candidata, Dilma Rousseff, ministra de Minas e Energia entre 2003 e 2005, animou-se a entrar no picadeiro. “Nós também temos uma outra certeza de que não vai ter apagão”, declamou. E o apagão da véspera?, intrigou-se uma jornalista. “Não confunda apagão com blecaute, minha filha”, irritou-se a especialista no assunto. Também merecia uma tempestade de dicionários. Eles ensinam que apagão e blecaute são sinônimos.

“Apagão foi o do Fernando Henrique”, disse Dilma. Errou de novo. Em 2001, o que houve foi racionamento de energia, decretado para evitar um apagão sem prazo para terminar. Ao compreender que a insuficiência de água nos reservatórios, a falta de chuvas e a escassez de investimentos se haviam conjugado para levar o sistema à beira do colapso, FHC fez um corajoso pronunciamento em rede nacional de TV. Reconheceu os erros cometidos pelo governo, não se intimidou com o desgaste político resultante do racionamento, transformou a questão em prioridade absoluta e resolveu o problema. Dilma recebeu na penumbra o país que FHC entregou aceso ao sucessor falastrão.

A escuridão que castigou 46 milhões de nordestinos  iluminou a face enrugada de um governo que já nasceu velho. Ele tem tanto apreço pela verdade quanto Lula, e está ficando ainda mais parecido com Sarney. A exemplo do registrado em outubro de 2009, o apagão deste fevereiro avisou, aos berros, que o sistema elétrico está em decomposição. Os equipamentos são obsoletos, faltam investimentos, sobram administradores ineptos. Se fosse mais que um apêndice de Lula, Dilma já teria internado o paciente na UTI. Em vez disso, ratificou a opção preferencial pela mentira feita pelo padrinho há oito anos. E reencenou o espetáculo da vigarice, protagonizado pelo mesmo ministro que Sarney nomeou,

“O sistema é robusto, é muito bom e é moderno”, fantasiou Lobão. “Não há no mundo nada mais moderno que o sistema brasileiro”. Não pode ser robusto nem muito bom um sistema que, segundo dados oficiais, registrou 91 apagões de menor calibre só em 2010 ─ um aumento de 90% em relação a 2008. Não pode ser moderno um setor controlado pela Famiglia que há 50 anos atormenta o Maranhão com o recorrente assassinato do futuro.

Em 2009, ao cumprimentar-se pela erradicação dos apagões, Dilma resumiu o segredo do milagre. “É que nós, hoje, voltamos a fazer planejamento”. Na sexta-feira, ela consumou o que vinha planejando faz tempo. Depois de prometer valer-se do critério do mérito para compor o primeiro e o segundo escalões, resolveu afastar do setor elétrico o que restava da turma do deputado Eduardo Cunha. E entregou ao bando de José Sarney o controle completo do Ministério de Minas de Energia.

Foi como trocar o Comando Vermelho pelo PCC.

Dilma visita uma estante de livros em companhia de Fernando Pimentel

Por Celso Arnaldo Araújo

Um recorte de jornal me assombra desde o dia 26 de dezembro, quando saiu no caderno Poder, da Folha, matéria do competente Fernando Rodrigues com o título “Dilmoteca básica”. Seis dias antes da posse, o jornal pretendia contrapor o perfil da presidente eleita ao do padrinho, sobretudo em termos culturais.

Há textos que você começa a ler e não consegue mais parar. Outros que você não consegue deixar de largar. Este tem o dom de inverter as forças de atração: é ele que não me larga desde a primeira leitura, há mais de um mês. O recorte correspondente me acompanha, como um miasma, obrigando a releituras diárias, a cada dia mais espantosas. Deve ser guardado como prova de um contraste histórico que jamais se repetirá: o presidente que se gaba de nunca ter lido um livro foi sucedido por alguém que se jacta de ter lido todos os livros que nunca leu. Se leu, não assimilou. Se assimilou, nunca demonstrou. Naquele célebre vídeo do guru Marcelo Branco, Dilma levou constrangedores segundos para lembrar o livro que estava lendo, só o fazendo, penosamente, após o sopro amigo da assessora. Por isso, a tal “Dilmoteca básica” é uma coleção extraordinária de embustes transformados em gênero literário.

A tese central da matéria da Folha ─ “De todas as diferenças entre a presidente eleita e seu antecessor, uma das mais marcantes é a sólida formação literária da próxima ocupante do Palácio do Planalto” ─ é desmentida a cada linha do texto. Mas as paixões literárias da presidente são tantas e tamanhas que, a certa altura, ela diz que chegou a pensar em comprar uma casa só para guardar seu “acervo”.José Mindlin era mais modesto: o maior bibliófilo do país morava na própria casa onde mantinha seus 30 mil livros.

Não era intenção de Fernando conversar com a “bibliófila” Dilma Rousseff, mas compor seu perfil biográfico. Primeiro falou a fã de esportes, que de pronto recordou-se de sua “primeira vez” no Maracanã, em 1969. (Teria sido um jogo do Flamengo, mas ela não lembra contra quem. Detalhe que deixa essa história muito estranha: Dilma/Stella estava na clandestinidade – que tipo de guerrilheira com a cabeça a prêmio, ainda por cima mineira, se arriscaria a ir ao Maracanã à toa, naquela época duríssima? O pessoal do MR-8 esteve na porta do estádio no dia 7 de setembro daquele mesmo ano, mas para desovar o embaixador Charles Elbrick (jogavam Fluminense e Cruzeiro). Dilma se expôs para ver a festa da torcida do Flamengo: “Eu fiquei assim abestalhada com as bandeiras. É de perder o fôlego”. De perder o fôlego é o amor de Dilma pelos livros, desde cedo.

A transição de assuntos ─ domingo no Maracanã para hábitos de leitura ─ foi meio brusca. Ela desanda a falar: “Sobre a memória, quem tem razão era o Proust. Ele falava do sabor e do odor, dois sentidos primitivos que suportam um edifício imenso da recordação”. Esse Proust da Dilma, que “falava” do sabor e do odor, parece um enófilo, não o célebre escritor homônimo. Mas para provar que leu o monumental “Em busca do tempo perdido”, ela faz referência às… às madeleines, única coisa que quem nunca leu Proust sabe sobre Proust.

Depois de revelar que, “em matéria de poesia”, gosta de João Cabral, Cecilia Meirelles e Fernando Pessoa (de quem Dilma, numa entrevista célebre antes da eleição, surrupiou o célebre “navegar é preciso”, atribuindo-o a Ulysses Guimarães), entra mais um olhinho puxado na história: “Eu consigo além disso gostar do Bashô, sabe quem é Bashô?”, pergunta ela ao colunista, para em seguida responder e mostrar autoridade: “Um monge japonês que inventou o haicai”. Bem, Bashô não era monge e quem diz que ele “inventou” o haicai não é propriamente um leitor de haicais, escola poética que exige precisão formal absoluta.

Para demonstrar que não tem “um” gosto, Dilma vai então do Japão medieval de Bashô à Nova Inglaterra. “Gosto apaixonadamente de uma mulher chamada Emily Dickinson, a senhora de Amherst”. De novo, a leitora de fachada ou de orelha se trai com epítetos esquisitos – “senhora de Amherst”? Quem se refere assim a “uma mulher chamada” Emily Dickinson é para mostrar que sabe em que lugar dos Estados Unidos a autora nasceu, apenas isso. Gostaria de ouvir Dilma discorrendo sobre a obra de Emily. Bastaria um livro.

Espere: a coisa está ficando melhor. Ela retorna a Proust, o das madeleines. “Gostei do Proust para mais de metro”, diz a bibliófila métrica. Mas, eclética, vai logo de Paris a Ilhéus, das madeleines ao cacau: “Também adorei, aos 13 anos, quando meu pai me deu o Jorge Amado”. Como assim, “o Jorge Amado”? Ela explica: “Foi Capitães da Areia, São Jorge dos Ilhéus, todos os outros”. Ou seja: a obra toda do autor. Imagine o cenário: Belo Horizonte, 1960 ─ Dilma tinha 13 anos, ainda usava laçarotes na cabeça e Jorge Amado já tinha escrito 11 títulos. Petar Roussev chega em casa equilibrando-se atrás de um pacote de livros. Dilma adorou “o Jorge Amado”.

Era uma menina de paixões literárias arrebatadoras, ecléticas. “Amei de paixão o Machado de Assis (“o” Machado significando, claro, toda a obra dele), mas também o Monteiro Lobato.” Para não deixar dúvida sobre o Lobato a que se referia, explicou: “A Emília, o Pedrinho, a Narizinho, o Visconde, a Cuca”, a turma toda.

Pois bem: a menina que se entregava a obras completas de autores seminais deu lugar à moça idealista que pegou em armas e esteve na clandestinidade ou presa por muitos anos ─ e a biblioteca do DOPS não era exatamente a do Congresso americano. Depois, à “economista” que logo entraria para o serviço público e não largou mais o osso, sempre absorta em relatórios enormes sobre kilowatts/hora e, mais recentemente, o Minha Casa, Minha Vida. A leitura “literária” naturalmente ficou em segundo plano, não? Errado. “Eu compro muito livro, sempre mais do que consigo ler. Tenho aquela teoria de que estou fazendo um estoque (…) Vai que aconteça alguma coisa e eu não tenha condição de ficar comprando livro? Então, eu estoco”.

O melhor do estoque foi guardado para o final. O texto relata que Dilma, em viagem à China com Lula, fez uma demanda sui generis: “Enchi a paciência do embaixador para me dizer qual era o romance chinês equivalente aos romances nossos. Qual é o Charles Dickens deles. Qual era o Balzac, o Flaubert, o Shakespeare”.

Não sei se o senhor embaixador chegou a apontar o “Shakespeare chinês”, mas deve ter indicado alguma coisa: Dilma contou a Rodrigues que trouxe para o Brasil um catatau local traduzido para o inglês. Três volumes. “Mas o diabo não era isso. Eram os nomes dos personagens”. Dilma estranhou aqueles nomes esquisitos: “Temos uma baixíssima familiaridade com nomes chineses”, surpreende-se ela, sem levar em conta que os chineses também não têm muita familiaridade com nomes como Rousseff, Carvalho ou Eustáquio. Mas Dilma, que leu o Balzac chinês de cabo a rabo, não se apertou, porque tinha uma estratégia: “Você anota todos os nomes num papel para não se perder totalmente”.

Esse pedaço de papel — com os nomes chineses caprichosamente anotados pela presidente Dilma — sem dúvida valeria mais no mercado de obras raras do que os originais dos Pergaminhos do Mar Morto ou dos Protocolos dos Sábios de Sião.

Durante a campanha, a candidata Dilma Rousseff reiterou a promessa em todos os comícios, entrevistas, debates e programas no horário eleitoral: em quatro anos de governo, construiria 6 mil creches e 2 milhões de casas populares. Incluindo sábados, domingos e feriados, são quatro creches e 1.370 casas por dia. Como seria operado tamanho milagre?, intrigaram-se os que sabem fazer contas. Dilma sugeriu aos incrédulos que esperassem para ver. Melhor que esperem sentados, sugere o balanço de janeiro. Como não inaugurou sequer um pedra fundamental em 31 dias, Dilma já ficou devendo 124 creches e 41.100 casas.

Fora as 6 mil que prometeu aos brasileiros cujas moradias foram engolidas pelas enchentes na Região Serrana. A julgar pelo ritmo das obras do Programa Minha Casa, Minha Vida, os mais de 20 mil flagelados vão continuar por muito tempo amontoados em acampamentos improvisados. Terão de aguardar a entrega das chaves com a mesma paciência exibida pelos baianos de Feira de Santana contemplados pelo primeiro empreendimento do programa ─ o Residencial Nova Conceição.

Os 440 apartamentos distribuídos por 22 blocos demoraram 18 meses para ficar prontos. As 6 mil casas em Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis correspondem a quase 14 condomínios como o Residencial Nova Conceição. Se todos os 14 forem construídos simultaneamente, ainda assim os flagelados só terão onde morar daqui a um ano e meio.

Como o governo decidiu que a culpa foi da natureza, e que mais de mil brasileiros morreram de tempestade, a tragédia no Rio não impediu que Dilma ficasse satisfeita com a largada. “Foi um bom começo de governo”, cumprimentou-se nesta sexta-feira. Depende da posição de quem olha. Os governantes não têm do que se queixar. A oposição oficial continua de férias. Para os governados, só melhorou o som: o sumiço da voz de Lula é tão agradável quanto uma sinfonia de Beethoven. Mas a contemplação da paisagem informa que tão cedo não há nenhum perigo de melhorar.

Em janeiro, enquanto a oposição oficial continuava de férias, Dilma matou a saudade de Erenice Guerra na festa da posse, apresentou ao país o mais bisonho ministério da história, renovou o contrato de aluguel com o PMDB, providenciou a chuva de verbas do Orçamento que garantiu a submissão do Congresso ao Planalto, avisou que a pobreza que Lula erradicou vai acabar em 2014, aperfeiçoou o sorriso de aeromoça de Tupolev e lançou em Buenos Aires, durante uma simbiose com Cristina Kirchner, o besteirol em conta-gotas. Janeiro de 2011 foi apenas o 1° mês do 9° ano da Era da Mediocridade.

No Brasil que Lula inventou e Dilma só precisa enfeitar, como sabemos, o que está péssimo sempre pode piorar. E fevereiro começou com um tremendo apagão no Nordeste.

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Fonte:
Blog Augusto Nunes (Revista Veja

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