Invasão russa levou Ucrânia a exportar crise para o agronegócio global, avaliam especialistas
Os dois anos de guerra entre Rússia e Ucrânia marcado neste 24 de fevereiro de 2024 inundou a imprensa com análises de como foi este período e quais os impactos do conflito, em especial, para os ucranianos. Para o agronegócio - do Brasil e do mundo - o movimento não foi diferente. Desde a ofensiva de Vladimir Putin ao território ucraniano, em 2022, muita coisa mudou, muitos cenários se refizeram, se desfizeram e muitos ainda permanecem completamente incertos. O saldo é, inegavelmente, negativo, como o de qualquer guerra, com severas perdas humanitárias - a pior de todas elas - e financeiras, de infraestrutura e, principalmente, de um futuro promissor, ao menos até agora.
O que se enxerga no dia seguinte em que se avaliou os últimos dois anos deste conflito? Preocupações para alguns, oportunidades para outros, insegurança para todos. Sem data para terminar no horizonte - como apontava os especialistas já dois anos atrás - tal conflito voltou a colocar no centro das discussões o futuro da segurança alimentar não só pelo preço dos alimentos, mas pela capacidade e pelo custo de produzi-los. Na Ucrânia, na Rússia e no mundo. De um lado, um dos celeiros do planeta. De outro, um gigante isolado, mas com potencial espalhado. No centro, desdobramentos que impactam diretamente na produção dos principais países agrícolas do mundo, dos custos à distribuição.
Dois anos depois do primeiro míssil, tudo ainda é névoa e cada passo é repensado uma centena de vezes.
"CHERNOZEM", OS SOLOS PRETOS DA UCRÂNIA
Os solos pretos da Ucrânia - os chamados "chernozem" - são alguns dos mais férteis do mundo, terra de cultivos de importantes volumes de trigo, cevada, girassol, soja e milho. Antes da guerra, o país entregava ao mundo cerca de 80% do óleo de girassol consumido do mundo e elevados volumes de grãos e cereais, se revezando com o Brasil nas primeiras posições de maior exportador mundial de milho.
Dali, estes produtos alcançavam mercados importantes, em especial na Ásia e na África, além da Europa, para nações como China, Indonésia, Turquia e Egito.
Entretanto, os números de hoje são bem mais preocupantes. Estima-se que mais de dois milhões de minas russas estejam espalhadas pelos solos ucranianos em toda parte de seus territórios. Mais do que isso, as estimativas dão conta ainda de que perto de quatro milhões de hectares de terras agrícolas estejam, atualmente, inutilizáveis por conta de contaminações. A retirada das minas e a volta da vida útil destas terras pode levar décadas.
Em entrevista ao portal ucraniano Farmers Weekly, o ministro da Política Agrícola e Alimentar da Ucrânia, Mykola Solskyi, o país europeu perdeu pelo menos 20% de suas terras agrícolas, o que corresponde a uma área do tamanho de países como a Hungria ou a Lituânia.
Se a produção foi duramente comprometida na Ucrânia, a logística foi ainda mais afetada. Os portos nas regiões do Mar Negro e de Azov foram bloqueados e a as áreas foram consideradas como algumas das mais perigosas do mundo para se navegar, com muitas empresas finalizando suas atividades no local - bem como fizeram grandes tradings - obrigando os ucranianos a encontrarem e implementarem rotas alternativas.
Até que estes "novos caminhos" funcionassem efetivamente, as exportações de grãos da Ucrânia apresentaram uma baixa considerável e os preços de seus produtos despencaram. O milho e o trigo da Ucrânia perderam 45% entre janeiro e junho de 2022, ao passo em que os preços globais registraram altas de 15%.
Na sequência, em julho, o mundo recebeu a notícia do Corredor de Grãos Humanitário, uma iniciativa medida pela ONU (Organização das Nações Unidas e da Turquia), no Mar Negro, que permitiu uma retomada do escoamento ucraniano. E a expectativa do ministro da Ucrânia é de certa estabilidade no momento, apesar da fragilidade do cenário.
"Esperamos que a situação continue a mesma. Estamos a fazer tudo para garantir que esta rota de exportação continue a ser a principal para os agricultores ucranianos", diz Mykola Solskyi.
O total dos danos diretos aos edifícios e infra-estruturas em todos os setores é estimado em, aproximadamente, US$ 152 bilhões, de acordo com um levantamento feito pelo Banco Mundial. Deste total, US$ 10 bilhões referem-se à agricultura. Afinal, inúmeros armazéns, elevadores, portos fluviais e outras estruturas ligadas ao setor foram atacadas pelas tropas russas.
O ministério estima ainda que para este ano espera-se uma redução de 9% na área de milho, ao passo em que podem aumentar as áreas de soja - em 21% - e de beterraba (matéria-prima importante para a produção de açúcar na Europa) em 17%. A área total cultivada com culturas de primavera poderá diminuir 500 mil hectares, ou 3,7%, em comparação a anterior.
IMPACTOS NA EUROPA, ALÉM DA UCRÂNIA
"Assim como os brasileiros, muitos produtores americanos não acreditavam nesta queda acentuada de Chicago. A soja e o milho dos EUA estão muito caros no mercado internacional, reflexo, é bem verdade, da guerra da Ucrânia. A invasão russa forçou os ucranianos a liquidarem, a venderem o que tinham de grãos em estoque a qualquer preço. Basta observarmos a crise na agricultura que está sendo causada na Europa não só por questões ambientais (de agendas impostas aos produtores), mas por essa liquidação de grãos da Ucrânia, que derrubou o preço de vários grãos e cereais na Romênia, Polônia, Alemanha, e vários países", explica o analista de mercado Marcos Araújo, da Agrinvest Commodities.
Iniciados no começo de 2024, os protestos entre produtores rurais vêm se intensificando, com pleitos duros aos seus líderes políticos e o atendimento urgente às suas necessidades, inclusive, a manutenção de alguns subsídios e a interrupção de importação de produtos agrícolas mais baratos, em especial da Ucrânia, mas também do Brasil. Atualmente, as manifestações acontecem em 17 países da Europa.
"Essa será uma conta para frente, 2025, 2026 que, com a limitação da produção da Ucrânia, a limitação logística imposta pela Rússia, isso tudo em um futuro não muito distante vai trazer para o mundo a questão da segurança alimentar e aí teremos altas de preços mais consistentes", complementa.
O professor da ESPM de São Paulo, Leonardo Trevisan, especialista em geopolítica e economia internacional, explica que este é um ano politicamente importante e desafiador para a Europa.
"Neste momento de crise, temos que adicionar às decisões econômicas, ações políticas. De 6 a 9 de junho há eleições para o Parlamento Europeu, os políticos estão absolutamente assustados com o crescimento de posições mais radicalizadas. O mais assustado é Macron. O mundo francês é diretamente atingido por essa pressão nos preços agrícolas e por uma decisão que estão tomando de tentar mexer na questão ambiental e tentar pressionar os agricultores com isso. É neste contexto que temos que olhar o acordo União Europeia-Mercosul. O Brasil se transformou, infelizmente, em um bode expiatório. Somos um escudo para o gravíssimo político que enfrente Macron", detalha.
GUERRA X AGRO GLOBAL
Para o sócio-diretor da Markestrat e cofundador da Harven Agribusiness School, José Carlos de Lima Júnior, os impactos da guerra ainda podem ser sentidos em três grandes frentes, com inúmeros desdobramentos. E uma delas é a dos atuais protestos dos produtores europeus que, nesta segunda-feira (26), chegaram à sede da União Europeia, em Bruxelas, na Bélgica. O local está, inclusive, cercado por barreiras de concreto e arame farpado.
A presidência da instituição afirma que reconhece as preocupações dos agricultores, incluindo os efeitos indesejados do conflito entre Rússia e Ucrânia. "É necessário enviar sinais imediatos para dizer aos agricultores que algo está mudando, não apenas a curto prazo, mas também a médio e longo prazo". Já o ministro da Irlanda, Charlie McConalogue, afirmou que "as políticas sejam "diretas, proporcionais e o mais simples possível para os agricultores implementarem".
Lima destacou ainda as eleiçõesno Parlamento Europeu que acontecem nos próximos meses e dos impactos que isso deve ter não só nas manifestações, mas também no futuro das exportações ucranianas, bem como no futuro das relações com a Rússia. O atual cenário geopolítico, afinal, é bastante marcado por uma intensa polarização política e por um crescimento do protecionismo comercial. “O mundo está dividido entre os amigos dos amigos (a favor da Ucrânia) e os inimigos dos amigos (alinhados à Rússia)”, e essa polaridade está direcionando, ao lado de outros fatores, o caminhar da economia global, das operações do agronegócio mundo afora, em especial na Europa.
Além das eleições para o Parlamento Europeu, também como explica Lima Junior, há outros pleitos que exigem a mesma atenção, em especial a corrida presidencial nos Estados Unidos e com a grande chance de que Donald Trump retorne à Casa Branca. Os resultados vão, de qualquer forma, alimentar tanto o protecionismo, quanto a polaridade.
E para os produtores brasileiros, os sinais de alerta são bastante importantes. Os protestos, como explica ainda o diretor da Markestrat, já que este protecionismo crescente limita a competitividade dos produtos do Brasil que chegam a países com subsídios tão elevados aos produtores locais. “Países como os europeus e os Estados Unidos têm mais ‘gordura’ para queimar com subsídios do que o Brasil. E isso fica mais evidente em anos eleitorais”.
O diretor da Markestrat destacou ainda que o movimento de empresas instaladas em países como a Rússia e a China também está no radar dos mercados, uma vez que estão sendo obrigadas a deixar as nações por questões políticas - onde os custos de produção são melhores e alimentando ainda mais os processos inflacionários. “A inflação é um processo com o qual teremos que conviver, porque este reordenamento gera dois custos adicionais, sendo um político e um financeiro”.
CUSTOS SUBINDO x DEMANDA
Os dois anos de guerra também conduziram o mercado de fertilizantes, depois dos picos agressivos de preços durante os momentos iniciais do conflito, a um cenário de normalidade neste início de 2024. Assim, da ótica deste mercado, o Brasil escolheu bons caminhos - diversificando seus fornecedores e garantindo bons estoques - dando boa sequência e fazendo bons investimentos nas safras que vieram na sequência. “A insegurança não se manteve e o fluxo voltou à normalidade”, afirma Lima Junior.
O gráfico abaix mostra as principais origens fornecedoras de ureia para o Brasil. Os três primeiros lugares são do Catar, Omã e Irã.
Quem compartilha desta opinião é o analista de fertilizantes da Agrinvest Commodities, Jeferson Souza, que relata que os preços dos suprimentos têm registrado, em alguns casos, níveis até mesmo pré-pandemia. “Estamos 100% de volta ao normal. No começo não sabíamos como seria, importamos em 2023 mais do que importamos em 2022. E hoje estamos blindados. Para que algo relacionado à guerra volte a impactar este mercado teria que ser algo grande e novo. Isso já não é mais novidade”, diz o especialista.
O fertilizante que mais caiu neste período foi cloreto de potássio, estando em suas mínimas desde 2021. No início da guerra entre Rússia e Ucrânia, a tonelada do KCl estava em US$ 1100,00, contra US$ 280,00 custo e frete dos momento atual.
A ureia, por sua vez, subiu na comparação entre junho e agora. Todavia, ainda de acordo com Souza, “a ureia sobe por outros motivos”, mas tem um mercado onde o Brasil também diversificou suas origens e garantiu bons estoques. Em 16 de junho, o valor da tonelada do nitrogenado era de US$ 270,00 e hoje, em média, testa os US$ 370,00.
Por outro lado, entre os fertilizantes, os fosfatados agora são os que mais chamam a atenção. O MAP, como explica o analista da Agrinvest, é o único que segue acima dos US$ 500,00 por tonelada, deixando os compradores bastante distantes de novos negócios com este insumo.
Todo este cenário traz também sinais importantes para os produtores brasileiros, embora sinais preocupantes. “Os insumos estão voltando, estão caindo, mas os custos ainda não. E isso precisa de atenção”, afirma Jeferson Souza. E ao mesmo tempo em que este quadro vai se redesenhando - depois de um período de 2020 a 2023 de anos atípicos - a demanda também vai assumindo um ritmo mais contido de crescimento. E assim, todos os demais fatores se ligam, novamente, com origem no 24 de fevereiro de 2022. A atenção, dessa vez, é para a volta à normalidade.
Um outro alerta trazido pelo diretor da Markestar e cofundador da Harven é para o Plano Nacional de Fertilizantes (PNF), lançado durante o início da guerra e visando a diminuição da independência brasileira das importações destes produtos, acabou perdendo força, diante da volta a certa normalidade e do abastecimento adequado do país. Entretanto, o plano é forte, necessário e ainda pode garantir bons resultados e boas oportunidades ao agro brasileiro.
VOLATILIDADE E INCERTEZA: TRIGO AINDA NO CORAÇÃO DO CONFLITO
"Desde a invasão russa à Ucrânia, temos um cenário de incerteza e muita volatilidade. Nas bolsas norte-americanas, oscilações de 1% a 2% diariamente se tornaram quase que normais dentro do mercado de trigo", afirma o analista de mercado Élcio Bento, da Safras & Mercado, sobre este que é um dos mercados agrícolas que mais sentiu os efeitos do clima. "Estamos em entressafra no Hemisfério Norte - que produz quase 90% de todo o trigo do mundo - então, em tese, seria um momento de preços mais altos, mas o que vemos são cotações muito achatadas. E isso deve-se, basicamente, a um agente internacional cada vez mais forte neste mercado que é a Rússia. A Rússia vem de safras recordes, significativos volumes de exportação e um potencial de exportar 51 milhões de toneladas, superando em mais que o dobro o segundo maior que é a União Europeia, com potencial de 24 milhões".
Mais uma vez vem o alerta sobre a "volta à normalidade". Bento complementa dizendo que o mercado do trigo continua passando por um momento de ajustes após ter "exagerado na alta quando do início da guerra. Era normal essa acomodação, só não tão normal para este período".
Dessa forma, a volatilidade intensa neste mercado - já que dois dos maiores fornecedores mundiais do grão estão no conflito - é alimentada por esta incerteza que teima a permanecer entre os negócios. "Há a possilidade sanções americanas à Rússia, possibilidade de conflito na região do Mar Negro (...) mas agora há uma incerteza mais precificada. Não tem, na minhaa percepção, como voltarmos - durante o conflito Rússia x Ucrânia - termos cotações semelhantes ao início da guerra, quando passaram dos US$ 12,00 em Chicago".
0 comentário
Mensurar pegada de carbono é primeiro passo para descarbonizar a agricultura
Após queda nas exportações de carne de frango por embargos, RS deve ver estabilização em 2025, diz liderança
Ministério da Agricultura publica ato normativo que garante isonomia regulatória em processo de reavaliação de defensivos agrícolas
Caso Carrefour: para Ricardo Santin, falas problemáticas estão no contexto da possibilidade de acordo entre União Europeia e Mercosul
Uso do DDG na avicultura de corte é vantajoso, segundo especialista, mas ainda incipiente
Parceria entre empresas digitaliza 100% das suas operações de Barter, promovendo eficiência e transparência no agronegócio