Sistema portátil monitora a qualidade do leite cru em segundos no local de produção
Em fase experimental de validação, uma tecnologia desenvolvida pela Embrapa, com o apoio da iniciativa privada, é uma alternativa à carência de técnicas rápidas e confiáveis para avaliar a qualidade do leite cru no local de produção. O sistema digital permite acesso aos dados da análise de forma remota via conexão de rede sem fio (Wi-fi). Chamada de SondaLeite, a inovação foi capaz de detectar com precisão e em segundos um problema multifatorial que traz grandes prejuízos à cadeia produtiva brasileira, a incidência do leite instável não ácido (Lina).
Desenvolvido pela Embrapa Instrumentação (SP) em parceria com a Embrapa Clima Temperado (RS), com o apoio da Dairy Equipamentos, com sede em Curitiba (PR), o SondaLeite utiliza feixes de luzes para constatar em 25 segundos as diferentes condições do leite cru, se normal, Lina ou ácido.
Com os resultados obtidos na fase experimental de validação, a tecnologia entra no processo de licenciamento para a iniciativa privada, a fim de que seja realizada a produção em escala e disponibilizada ao setor leiteiro uma maneira confiável de detectar a estabilidade do produto.
O caso mais crítico de identificação é o Lina, uma alteração na qualidade do leite devido à perda de estabilidade da caseína, principal proteína do leite. A instabilidade ocorre quando o leite submetido ao teste de álcool, também conhecido como Alizarol, talha. Ao coagular na presença da solução alcoólica é confundido com o leite ácido sem, no entanto, haver acidez elevada.
Apresentação na Agrishow
A tecnologia, com patente já concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) desde 2021, está sendo apresentada no estande da Embrapa na Feira Internacional de Tecnologia Agrícola em Ação (Agrishow), que começou em 1º de maio e vai até o dia 5, em Ribeirão Preto (SP).
Mas o teste de álcool, utilizado há mais de cem anos, apresenta resultados subjetivos assim como outros falsos positivos ou falsos negativos para a acidez. Ele é realizado em cerca de três minutos, momentos antes da coleta do leite nas fazendas. Esse teste é realizado por determinação do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), para avaliar a qualidade do produto quanto à acidez e à estabilidade térmica, conforme preconiza a Instrução Normativa 76, de 26/11/2018.
Conforme a norma, antes da coleta nas unidades de produção, o leite deve ser agitado e passar pela prova do álcool na concentração mínima de 72 ºGL. O leite deve estar estável diante do teste, ou seja, não apresentar precipitação. Para que o leite seja aceito nas indústrias, é preciso uma composição química mínima de 3% de gordura, 2,9% de proteína e 8,4% de extrato desengordurado, e o produto deve ser estável ao álcool ou alizarol a 72%.
Os testes usados tradicionalmente estão sujeitos a falhas humanas por serem de decisão conforme a capacidade e experiência do analisador. Também apresentam pouca confiabilidade para estimar a estabilidade térmica do leite. Mesmo assim, são utilizados e empregados como critério para a tomada de decisão de captação ou não do leite antes mesmo de sair da propriedade rural.
Diante da necessidade de um teste rápido que identifique as diferentes condições do leite cru – normal, Lina e ácido –, adequado ao processamento térmico, o SondaLeite é uma ferramenta com potencialidade para eliminar a interferência humana, incertezas, minimizar os prejuízos da cadeia leiteira, especialmente aos pequenos produtores, e suprir a carência do mercado para detecção rápida do Lina.
O Lina tem sido um desafio para a bovinocultura de leite e não tem causa totalmente esclarecida. Muitos estudos associam o Lina a fatores nutricionais, deficiência nutricional, restrição alimentar, deficiência de energia, excesso de proteína associado à deficiência energética, excesso de proteína degradável no rúmen, deficiência de proteína metabolizável, acidose metabólica, acidose ruminal, alterações na dieta, vacas em estágio inicial ou final de lactação.
Direto no campo
O projeto de desenvolvimento do SondaLeite teve início em 2019, mas sofreu interrupção por causa da pandemia da Covid-19. No final do ano passado, as pesquisas foram retomadas com a realização de novos testes de detecção da estabilidade do leite cru.
O sistema portátil, robusto, rápido nos resultados e de fácil manuseio poderá ser utilizado diretamente no campo, acoplado em caminhões de coleta a granel, bem como no laboratório e até mesmo instalado nos tanques de resfriamento, em laticínios e cooperativas.
Além de monitorar a qualidade do leite, com resultados confiáveis, pode ser incrementado para múltiplas funções, como detectar mastite e também adulterações. As novas funcionalidades podem ser incluídas com incrementos na instrumentação do aparelho, o que aumentará o seu leque de aplicações.
Equipamento usa luz para avaliar o leite
O pesquisador da Embrapa Washington Luiz de Barros Melo explica que, para eliminar a interferência humana no processo de análise da acidez do leite cru, ele pensou em um instrumento espectroscópico computadorizado associado a um método estatístico de análise.
Trata-se de uma sonda dedicada à avaliação de amostras líquidas nos locais de produção e coleta, por meio de uso da luz emitida e captada por componentes semicondutores que fazem parte do sistema sensor. O aparelho é composto por partes: câmera de medição; sistema óptico com diodo emissor de luz (LED, na sigla em inglês) e computador embarcado.
A tecnologia, desenvolvida no Laboratório de Fototérmica da Embrapa Instrumentação, pode ser operada por qualquer sistema operacional de computador, celular ou tablet. “O SondaLeite funciona como qualquer espectrofotômetro, porém, como a iluminação é em comprimento de onda discreto, o tempo de aquisição de dados ocorre em alguns segundos”, diz ele.
De acordo com Melo, a amostra de 100 mililitros de leite dentro do equipamento recebe luzes em diferentes comprimentos de onda, que incluem infravermelho próximo (NIR), passando pelo visível (Vis) até o ultravioleta próximo (UVA).
“Ao incidir sobre o leite, partes destas luzes são absorvidas e partes refletidas. As luzes refletidas são detectadas e convertidas em sinais elétricos, que são armazenados na memória do computador embarcado no SondaLeite. Estes dados coletados formam o espectro do leite, que é submetido à análise estatística. O resultado indica, então, a condição de estabilidade do leite”, conta o pesquisador.
Segundo Melo, os testes com o SondaLeite estão sendo realizados em leites de animais de diferentes raças, entre elas Holandês e Jersey, e em rebanhos com procedências de diferentes laticínios do Sul do País. A composição do leite – gordura, proteínas, açúcares, minerais –, pode influenciar nos resultados espectrais; assim, é necessário o estudo estatístico dos casos.
“As amostras foram avaliadas também quanto à acidez titulável (°Dornic); pH; estabilidade ao álcool/alizarol em diferentes graduações e ocorrência de Lina”, relata o responsável pelo projeto.
Amostras de leite de diferentes raças e rebanhos foram encaminhadas para o Laboratório de Qualidade do Leite da Embrapa Clima Temperado (Lableite), certificado pela Rede Brasileira de Qualidade do Leite (RBQL) para a análise da composição química (teores de gordura, proteína bruta, lactose e sólidos totais) por infravermelho; contagem de células somáticas (CCS) e contagem bacteriana total (CBT) por citometria de fluxo. Os resultados estão sendo comparados com os espectros de refletância do SondaLeite.
SondaLeite no Sul
A pesquisadora Maira Balbinotti Zanela, médica-veterinária à frente das atividades na Embrapa Clima Temperado, conta que o SondaLeite está sendo avaliado para uso no desenvolvimento da metodologia de diagnóstico diferencial, a fim de identificar o leite normal, o leite ácido e o Lina.
Para esta identificação, ela relata que são realizadas diversas análises: o teste do álcool em diferentes graduações, o teste de acidez titulável em graus Dornic, o teste do pH, indicando a ocorrência de Lina. Estes resultados são comparados com aqueles obtidos pelo SondaLeite.
“A pretensão é que o SondaLeite consiga diferenciar o Lina, o leite normal e o leite ácido. Assim, pode-se oferecer uma nova forma de avaliação da qualidade do produto nas unidades de produção de leite, evitando a condenação do Lina”, diz a pesquisadora.
Segundo ela, os resultados preliminares indicaram que existem boas possibilidades de diferenciação, mas devido à interrupção dos testes por causa da pandemia de Covid-19, é necessária uma amostragem mais ampla para concluir a validação da metodologia, considerando a diversidade de raças, manejo e sazonalidade.
“Buscamos com o SondaLeite um outro teste, que substitua o teste do álcool ou alizarol, para que se possa ter um diagnóstico diferencial. O Lina terá outro destino do que simplesmente ser descartado pelo produtor rural. Esse descarte, além de trazer prejuízos a toda a cadeia produtiva e redução da matéria-prima para a indústria e consumidor, também pode resultar em um passivo ambiental pelo descarte de matéria orgânica”, expõe.
A Embrapa Clima Temperado atua há duas décadas no Projeto Lina, a partir de queixas de produtores leiteiros da Região Sul, que questionavam os motivos dos resultados obtidos com o teste de álcool.
“Como essa prova não diferencia o leite ácido e o Lina, está sendo desenvolvido um novo método de diagnóstico para a qualidade do leite nas propriedades com o auxílio do SondaLeite. O teste do álcool faz com que toda a cadeia produtiva tenha prejuízo: produtor que perde o produto e a renda; a indústria que recebe um volume menor de leite; e o consumidor que tem menos oferta do produto à sua disposição”, lembra a pesquisadora Maira Zanela.
De acordo com ela, as estimativas de perdas do produto variam muito; entre as causas estão o descarte do leite por falsa acidez elevada e por resultado positivo ao teste do álcool – considerando-se produção de leite média de 213 litros por unidade de produção leiteira (UPL) e ocorrência em torno de dez dias, estima-se uma perda média de 2,13 mil litros/UPL em caso de Lina.
“Além disso, ocorre prejuízo aos produtores de leite por condenação da matéria-prima – considerando-se dois reais por litro de leite, estima-se uma perda de 4.260 reais por UPL”, calcula Zanela.
Diagnóstico evita problemas
O diagnóstico do Lina soluciona problemas entre produtores e laticínios que refletem em toda a cadeia produtiva. Entre eles, o diagnóstico equivocado da qualidade do produto nas propriedades; as próprias perdas de leite e da renda; atritos entre produtores e indústria e a redução dos derivados lácteos ao consumidor.
Zanela lembra que o Lina pode ser pasteurizado (processo que dá garantia de segurança alimentar), o que resolveria o problema do descarte do leite, que poderia ser beneficiado em produtos lácteos pasteurizados (queijo, iogurte, bebida láctea, requeijão, entre outros).
Cadeia do leite
De acordo com dados do Mapa, o Brasil tem mais de um milhão de propriedades produtoras de leite e é o terceiro maior produtor mundial, com mais de 34 bilhões de litros por ano. A produção é concentrada em 98% dos municípios brasileiros, com predominância de pequenas e médias propriedades. O setor emprega perto de 4 milhões de pessoas.
A Secretaria de Política Agrícola (SPA), do Ministério da Agricultura, estima que, para 2030, irão permanecer no campo os produtores mais eficientes, que se adaptarem à nova realidade de adoção de tecnologia, melhorias na gestão e maior eficiência técnica e econômica.
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