O casamento inevitável entre Brasil e China no agronegócio (por Marcos Sawaya Jank*)
“Para cruzar um rio, é preciso sentir cada pedra” - Deng Xiaoping
O magnífico ensaio “O que o Brasil quer da China?” de Philip Yang, publicado no Valor, mostra com precisão e incrível profundidade porque em apenas quatro décadas a China deslanchou, enquanto o Brasil manteve um crescimento pífio. Na sequência, Rubens Ricupero, Tiago Cavalcanti, Roberto Giannetti e Marcos Caramuru trouxeram diferentes facetas que complementam a explicação sobre o desenvolvimento desigual dos dois países.
O Brasil se tornou globalmente competitivo em agricultura e alimentos em boa parte graças à demanda chinesa. Se o Brasil não sabe bem o que quer da China, o setor privado do agronegócio entende perfeitamente que o seu futuro está umbilicalmente ligado ao gigante asiático.
Essa relação tem grande importância num momento em que figuras importantes do Executivo e do Legislativo brasileiro, em vez de se esforçarem para reduzir os efeitos econômicos e viróticos da pandemia, optam por criar um pandemônio desnecessário com a China. Ao atacarem a China com falácias e teorias conspiratórias, essas pessoas podem estar alvejando um dos setores mais centrais para que o país saia da recessão que se avizinha.
Brasil e China estão entre os quatro maiores produtores e exportadores mundiais de produtos agropecuários e alimentos. China e Hong Kong ocupam, juntos, a primeira posição no ranking das importações mundiais do agronegócio. São, também, o destino principal das nossas exportações neste setor (US$ 34 bilhões ao ano, ou 33% do total exportado), com um volume de exportações quatro vezes superior ao dirigido para os Estados Unidos.
O Brasil é o principal fornecedor de produtos agroalimentares para a China, respondendo por quase 20% das importações daquele país. A China responderá por um quarto do aumento do consumo de proteínas animais do mundo até 2030. Por isso, não é para menos que a China se tornou uma das principais fontes de investimento estrangeiro no agronegócio brasileiro.
A recente guerra comercial levou a China a elevar as suas tarifas de importação sobre produtos americanos. Em 2018/19 houve ainda a eclosão de uma terrível epidemia de peste suína africana, que dizimou quase metade do rebanho suíno chinês. Tais fatores fizeram com que as exportações brasileiras de algodão e carnes avícolas e bovinas disparassem, tornando o Brasil o principal supridor da China nesses produtos, além de liderar as exportações de soja em grãos.
O fato é que uma parcela significativa da oferta brasileira de produtos agropecuários e alimentos está “casada” com a demanda chinesa, sendo que não há cônjuge alternativo no mercado. Trata-se de um “casamento inevitável”, queiramos ou não, e ainda mais em tempos de Coronavirus, que desestabilizou o abastecimento doméstico chinês.
Para ficar bem claro aos sinofóbicos: os Estados Unidos não são alternativa de casamento para o agro brasileiro, mas sim um “noivo” concorrente e poderoso, turbinado por subsídios na veia de quase US$ 50 bilhões, se somarmos os dois pacotes de apoio que os agricultores americanos receberam para compensar a guerra comercial e a crise da Covid-19.
É interessante notar que o Brasil e a China reformaram profundamente os seus setores de agricultura e alimentos a partir dos anos 1970. Deng Xiaoping liderou o maior movimento de migração da história, no qual cerca de 300 milhões de chineses deixaram o campo para atender a imensa demanda de mão-de-obra da sua indústria manufatureira, que se integrava às cadeias globais de valor.
Esse movimento do governo chinês permitiu a modernização de parte da agricultura chinesa, com destaque para os setores de frutas, legumes e verduras e, mais recentemente, a explosão da chamada Agricultura 5.0, com seus drones, estufas, tecnologias digitais etc. Ao mesmo tempo, a China identifica a impossibilidade de atingir a autossuficiência em alguns setores e abre, de forma pontual e pragmática, o seu mercado doméstico para importações de grãos de soja, celulose, algodão e carnes.
Em paralelo, os anos 1970 no Brasil marcam o início do movimento de “tropicalização da agricultura” em direção aos cerrados do centro-oeste. Do lado da tecnologia, vieram novas variedades, correção de solos, plantio direto, duas safras no mesmo ano agrícola e o incrível fenômeno da integração lavoura-pecuária. Do lado das pessoas, uma nova geração de agricultores jovens, dinâmicos, motivados e tomadores de risco migra para as novas fronteiras com ganhos de gestão, escala e sustentabilidade.
Esses dois movimentos sacramentam o casamento entre o Brasil e a China no agronegócio, que prosperou a despeito das falhas de infraestrutura do primeiro e das dificuldades de acesso aos mercados do segundo. Trata-se de um movimento que se origina da demanda exponencial chinesa por alimentos e da alta produtividade alcançada pela tecnologia agrícola tropical. Definitivamente, ela não nasce de “visão estratégica” dos governos e da sua capacidade de planejamento.
Neste momento um novo desafio se apresenta para os dois países: o risco das zoonoses e seus impactos na qualidade e sanidade dos alimentos. Nos últimos 30 anos nos acostumamos a qualificar o aquecimento global, a desigualdade e o desemprego como os maiores problemas da humanidade. Não nos demos conta de que um inimigo invisível, que esteve sempre à espreita, ganhou enorme musculatura com a globalização: as pandemias originadas de zoonoses.
A Covid-19 não foi a primeira, e tampouco será a última epidemia que vem de animais domésticos e silvestres. Antes dela tivemos Aids, Ebola, Sars, Mers, gripe aviária e gripe suína. Nenhuma, porém, com capacidade de frear bruscamente a economia mundial.
Se a mudança do clima prometia matar paulatinamente o ser humano pela sua inação em relação ao planeta, a Covid-19 chega, sem aviso, para matar pessoas em hospitais despreparados para lidar com pandemias e na depressão causada pela parada da economia.
Estou convencido que segurança do alimento pode ser um dos principais itens de cooperação Brasil-China, países que sempre estiveram entre os líderes da produção, do consumo e do comércio de proteínas de origem animal e vegetal no mundo.
Comércio e investimentos dominam a pauta Brasil-China. Contudo, outros temas vêm ganhando importância na agenda bilateral do agronegócio, como por exemplo inovação, infraestrutura e sustentabilidade. A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e a China Agricultural University (CAU), classificadas entre as cinco melhores escolas de agricultura do mundo, lançarão em junho o livro “China-Brazil partnership in agriculture and food security”, uma obra que reúne artigos de duas dezenas de especialistas chineses e brasileiros sobre os temas apontados neste artigo.
Para finalizar, precisamos reconhecer que no casamento Brasil-China os noivos sempre serão muito diferentes. A China tem uma homogeneidade socioeconômica e cultural milenar, construída em torno da ética do confucionismo, que gerou um governo único e estável. O Brasil tem uma imensa diversidade étnica e cultural e órgãos de governo fragmentados e desorganizados, onde a insegurança jurídica torna até o passado incerto.
A China tem uma visão estratégica de longo prazo sobre o seu futuro, tendo realizado investimentos coletivos em educação e infraestrutura. O Brasil não consegue olhar além das emergências de curto prazo, campo que, no entanto, demonstramos uma combinação única de criatividade, improvisação e resiliência.
No campo comercial a China promoveu as suas exportações injetando doses cavalares de competitividade e inovação na sua indústria. Já o Brasil optou por proteger a sua indústria e substituir importações, isolando-se das cadeias globais de valor, exceto no agronegócio.
Finalizo afirmando que as relações Brasil-China no agronegócio sobreviveram apesar das visões preconcebidas e ideológicas dos sucessivos governos. Lula e Dilma privilegiaram a África e os países bolivarianos. Bolsonaro quer privilegiar o mundo rico ocidental, e principalmente os Estados Unidos.
Enquanto isso, seguimos ignorando que o mundo voltou a ser asiacêntrico, e particularmente sinocêntrico, do ponto de vista demográfico, econômico e de segurança alimentar. A relação Brasil-China no agronegócio não foi planejada ou construída. Mas se tornou um fato inexorável. E não adianta lutar contra os fatos. É melhor aceitá-los com objetividade e estratégia, como fazem os chineses, há milênios.
A frase de Deng Xiaoping que abre esse texto ilustra a essência do pragmatismo chinês. De nada serve alimentar ataques insanos a uma potência global que quer se aliar ao Brasil para garantir a sua segurança alimentar. De nada serve atacar pessoas que estão construindo as nossas pontes com o mundo, como a Ministra da Agricultura Tereza Cristina.
A resposta para a pergunta “o que a agricultura brasileira quer da China” é simples: queremos construir confiança e cooperação para atravessarmos juntos o rio turbulento da segurança alimentar, sem posições apriorísticas ou ideológicas.
(*) Marcos Sawaya Jank é professor de agronegócio global do Insper e titular da Cátedra Luiz de Queiroz da Esalq-USP. (Artigo publicado originalmente no Jornal “Valor Econômico”, Suplemento Eu & Fim de Semana, 24/04/2020).
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