A Argentina vive a maldição do dólar (por CLÓVIS ROSSI, na FOLHA)

Publicado em 06/05/2018 05:57
Para domar a moeda americana, governo Macri reduz o crescimento... (Leia também, "de olho nos juros americanos") editorial do Estadão

Como um dos raríssimos brasileiros que gostam da Argentina e dos argentinos, bateu um frio na espinha ao ler, na sexta-feira (4), a avaliação que o governo argentino fez, segundo o jornal Clarín, a respeito da forte turbulência no mercado cambial na semana passada.

Depois que, na mesma sexta, o banco central aumentou (de novo) os juros, para escandalosos 40%, a cotação da moeda americana teria atingido um ponto de equilíbrio. E teria ficado demonstrado “o poder de fogo” que o governo acha ter para controlar o câmbio.

Voltei 37 anos no tempo. Em 1981, a Argentina trocou um general-presidente (Jorge Rafael Videla) por outro (Roberto Viola). Despachou o então ministro da Economia, José Alfredo Martínez de Hoz, que mantivera o câmbio praticamente congelado, e entronizou um burocrata chamado Lorenzo Sigaut.

Sigaut pronunciou então uma frase que se tornou famosa: “Quem apostar no dólar vai perder”.

Eu era correspondente em Buenos Aires e estava presente no dia em que o mesmo Sigaut deu uma entrevista coletiva para anunciar uma desvalorização de 30% do peso. Equivalia, pois, a dar de saída um ganho de 30% em quem tivesse apostado no dólar.

Depois dessa desvalorização inicial, vieram dezenas de outras. O peso é que passou a não valer nada.

Não estou dizendo que o poder de fogo que o governo de Maurício Macri apregoa será tão ilusório quanto a derrota da aposta no dólar, proclamada há 37 anos. Mas é evidente que a Argentina continua prisioneira da desconfiança em sua moeda e, por isso, fascinada pelo refúgio seguro representado pelo dólar.


É uma situação que atravessou a ditadura e a democracia, um governo mais ou menos de esquerda como os dos Kirchner e um governo de direita como o de Macri.

Essa anomalia ajuda a entender por que o peso está sofrendo mais do que quase todas as moedas de emergentes nesta hora de turbulência.

É como escreveu o jornalista Gustavo Bazzan para o Clarín: “Demonstra-se outra vez que, quando as dúvidas invadem os mercados, a Argentina é a primeira a sofrer as consequências”, porque “a economia local é a que parece mais vulnerável por sua forte dependência de capitais externos que financiem o gradualismo [no ajuste das contas públicas]”.

Presa nessa armadilha, a Argentina jogou os juros lá para cima e anunciou um corte de despesas de cerca de US$ 3 bilhões (R$ 10,5 bilhões) no gasto público.

Entra, assim, em outra armadilha: para tranquilizar os investidores sobre o déficit, mina as chances de crescimento econômico, ao tornar o dinheiro mais caro e ao reduzir as despesas públicas.

Como o crescimento previsto pelo FMI (2%) já é dos mais baixos na América Latina e, assim mesmo, a inflação se mantém elevada (19,2%, prevê o Fundo Monetário Internacional), cai-se na conhecida situação de se correr, o bicho pega, se ficar, o bicho come.

A mediocridade no crescimento, com suas sequelas sociais inevitáveis, é uma característica de quase toda a América Latina, sem que apareça alguém capaz de encontrar um caminho para desarmar essas bombas de tempo que periodicamente explodem.

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha. É vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

De olho nos juros americanos (editorial do ESTADÃO)

Se os EUA elevarem seus juros, um ajuste dos mercados poderá ser muito custoso tanto para empresas como para economia de países vulneráveis

A decisão de frear a alta dos juros mais importantes do mundo, anunciada há poucos dias pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano), é só uma trégua. Quanto mais lento o aperto monetário nos Estados Unidos, melhor para o Brasil, porque menores serão as pressões sobre o financiamento internacional e o câmbio. Mas ninguém deve iludir-se. Esses juros, mantidos entre 1,50% e 1,75% ao ano, continuarão a subir, talvez a partir de junho, na próxima reunião do comitê de política monetária do Fed. A economia americana segue em recuperação, o emprego cresce e a cada dia o ambiente é mais propício ao avanço da inflação para a meta de 2% ao ano.

Os novos dados do emprego nos Estados Unidos, divulgados ontem, confirmam a ascensão dos negócios e o otimismo dos empresários. Foram criados em abril 164 mil postos de trabalho – admissões menos demissões. As contratações líquidas haviam sido de 135 mil em março e de 324 mil em fevereiro. Segundo o Departamento do Trabalho, a desocupação caiu de 4,1% para 3,9% no mês passado, menor nível desde dezembro de 2000.

Abril foi o 91.º mês consecutivo de abertura de vagas. A recuperação começou no primeiro mandato do presidente Barack Obama. Os Estados Unidos saíram da recessão bem antes da maior parte do mundo rico e têm sido um poderoso motor da recuperação global. No primeiro trimestre seu Produto Interno Bruto (PIB) cresceu em ritmo equivalente a 2,3% ao ano, menor que o do trimestre final de 2017 (2,9%), mas superior às estimativas do mercado (entre 1,8% e 2%).

O vigor da economia do país, mencionado em comunicado do comitê de política monetária, reforça as previsões de pelo menos mais duas altas dos juros básicos neste ano (a primeira ocorreu em março). Não há por que imaginar um avanço muito mais lento na chamada normalização monetária. A pausa anunciada na última reunião, há poucos dias, é apenas mais uma demonstração da cautela do comitê. Não é um sinal de mudança de rumo.

A elevação das taxas, embora sujeita a pausas ocasionais, permanece como um dado importante para a formulação de políticas em todo o mundo. Isso vale especialmente para economias emergentes e em desenvolvimento com finanças públicas frágeis. Vale também para empresas muito endividadas. O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Instituto Internacional de Finanças e outras instituições especializadas têm chamado a atenção para os perigos. Juros básicos mais altos mexem nos fluxos de financiamento e de investimento. A aversão ao risco aumenta e fica mais apertada a oferta de crédito e de capitais de risco.

O quadro se torna mais preocupante quando se consideram alguns efeitos do crédito farto e barato disponível nos últimos anos. O acesso fácil ao dinheiro favoreceu tanto o endividamento como a valorização provavelmente excessiva de vários tipos de ativos. Um ajuste dos mercados poderá ser muito custoso tanto para empresas como para governos vulneráveis. Num e noutro caso os danos poderão atingir enorme número de pessoas.

Os efeitos serão mais penosos se o comitê de política monetária dos Estados Unidos apressar a elevação dos juros. Mais de uma vez ondas de preocupação se espalharam pelos mercados, especialmente de um ano para cá. Sinais de rápido aquecimento da economia americana e, de modo particular, de forte elevação dos salários foram interpretados como prenúncios de aperto mais rápido da política do Fed. Em todas essas ocasiões houve instabilidade nos mercados e sustos em relação ao câmbio. Houve forte valorização do dólar diante do real e de várias moedas. Nos últimos dias, o Banco Central do Brasil voltou a intervir no mercado, depois de longo intervalo, ampliando a oferta de moeda americana para conter a volatilidade.

A defesa contra choques cambiais e turbulências no mercado financeiro exige bons fundamentos econômicos. Não haverá fundamentos sólidos sem contas públicas em ordem, mas, no Brasil, os ajustes são conduzidos com pouco apoio político e a pauta de reformas está paralisada.

O resultado da eleição afetará a recuperação econômica, podendo até mesmo revertê-la (por BOLIVAR LAMOUNIER)

Para mim, a quantidade de sandices, disparates e aberrações que vemos e ouvimos diariamente sobre a vida pública brasileira só tem uma explicação: a maioria das pessoas não consegue imaginar o quanto a situação atual pode piorar. 

Quando digo “as pessoas” não me refiro a toda a sociedade e certamente não às camadas de menor renda e escolaridade. Estas padecem de severas limitações no tocante à compreensão das informações que recebem. Desse ponto de vista, não existe e nunca existiu uma sociedade homogênea e é por isso que as camadas médias e altas têm de arcar com uma parcela maior de responsabilidade no que diz respeito à manutenção de padrões razoáveis de racionalidade social. Afirmar o contrário, como diuturnamente fazem aqueles que se arvoram em críticos do “elitismo”, é mera demagogia. Mesmo os cidadãos mais informados e lúcidos às vezes se esquecem de que a destruição do que acabamos de construir pode ser rápida, mormente quando causada por erros palmares na condução da economia e dos negócios do Estado, como ocorreu no período de governo da sra. Dilma Rousseff.

Nas ciências humanas, uma constatação central na evolução do conhecimento histórico durante o século 20 foi a de que qualquer país, mesmo os mais adiantados, pode sucumbir a retrocessos gravíssimos (preciso lembrar o caso alemão?). Nos países que ainda se debatem com o desafio de criar condições aceitáveis de renda para a maioria da população, essa constatação assumiu um sentido simétrico: nada garante que progrediremos de forma natural e indefinida. Não chegaremos ao patamar social que almejamos nem mediante um sistema de planificação macroeconômico nem por obra e graça de uma mão invisível infinitamente benigna. Não há um bom porto previamente construído, pronto para nos dar as boas-vindas; haverá, talvez, se o soubermos construir, passo a passo, ou seja, operando para que a sociedade em que vivemos não se afaste demasiadamente de um padrão médio de racionalidade. Para nos convencermos disso, como antecipei, precisamos não só aspirar a um futuro melhor, mas também a aprender a temê-lo, quando começamos a perder até os elementos básicos da comunicação social, a linguagem da política, e todo senso de realidade.

Nosso poeta maior, Carlos Drummond, escreveu que no meio do caminho havia uma pedra. O Brasil não tem uma, tem muitas pedras, e pelo menos três delas deveriam estar bem nítidas em nosso radar coletivo: o impacto da corrupção no sistema político e os consequentes embates entre a Lava Jato e o STF; a natureza do PT e do lulismo como entidades políticas, responsáveis principais pelo rancor que vem corroendo até os fundamentos linguísticos do debate público; e, não menos importante, os ventos malignos que a caixa de Pandora da eleição presidencial tem o potencial de liberar.

Além de sua escala espantosa, a teia de corrupção desvendada nos últimos anos evidenciou, acima de qualquer dúvida, dois aspectos de nossa estrutura institucional que percebíamos, mas talvez não quiséssemos identificar em toda a sua crueza. De um lado, a desagregação praticamente total da organização partidária, que a esta altura não cumpre papel algum, nem mesmo o de prover ao público uma elementar sinalização das posições que se manifestarão na eleição de outubro. Há pesquisas indicando que metade do eleitorado não se dispõe a votar e a outra metade votará muito mais com os pés que com a cabeça, procurando o candidato ou candidata que melhor expresse sua cólera sobre tudo o que tem acontecido. E dado que a política abomina o vácuo, a “judicialização da política” atingiu níveis virtualmente impensáveis. Não só pela debilidade dos partidos e do Legislativo, claro, também pelo impacto da Lava Jato; mas como desgraça pouca é bobagem, o que estamos a presenciar diariamente é um STF ao mesmo tempo intervencionista e causticamente dividido internamente. Quatro ou cinco ministros parecem menos interessados em colocar a instituição na altitude arbitral que a Constituição lhe atribui do que em bloquear os avanços logrados no combate à corrupção.

O segundo ponto a considerar é a natureza do PT e do lulismo dentro de nossa história democrática e de nossa presente engrenagem institucional. Não se requer mais que um simples retrospecto dos 37 anos de existência do partido para concluir que ele se alimenta de uma ambiguidade constitutiva em relação à democracia representativa. Põe um pé dentro dela e outro fora, trocando-os conforme suas táticas e conveniências. Carece por completo de uma fundamentação doutrinária inteligível: tanto podemos qualificá-lo de marxista como de anarcossindicalista (segundo as Reflexões sobre a Violência, de Georges Sorel), como de uma agremiação que cultiva a política na forma dual recomendada pelo teórico pré-nazista Carl Schmitt: o “nós” contra “eles”, ou o amigo contra o inimigo. Esses traços já seriam graves, mas é preciso acrescentar que a inspiração soreliana implica uma paixão incontível pela ação direta, pelo desrespeito às instituições, na contestação das normas constitucionais vigentes, como temos visto seguidamente nos bloqueios de vias públicas e estradas e num persistente esforço de erosão das normas do convívio social.

Por último, mas não menos importante, a eleição de outubro, cujos contornos se apresentam nebulosos. O resultado, qualquer que seja o presidente escolhido, afetará profundamente o processo de recuperação econômica, podendo mesmo (queira Deus que não!) revertê-lo. Os melhores prognósticos que os economistas têm aventado para o quatriênio indicam um crescimento anual medíocre do PIB (2% talvez) e a dívida bruta do setor público chegando a 90% do PIB em 2021. E esse, entendamo-nos, é o mínimo necessário para podermos pensar num desempenho aceitável a partir daquela data.

Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciência.

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Fonte:
Folha/Estadão/OAntagonista

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