A 2a. agrofalácia, por Marcos Yank (hoje, sobre Agricultura e Agricultores), na FOLHA DE S. PAULO

Publicado em 04/02/2017 03:47
Leia também: Glúten, lactose e outras modas (por DRÁUZIO VARELLA, na FOLHA)

Falsas dicotomias prosperaram no Brasil dividido dos últimos anos. Professores do ensino médio chegam a dividir as classes, com metade dos alunos argumentando a favor do "agronegócio" e a outra metade a favor da "agricultura familiar". Esse mesmo anacronismo é visto na mídia e na política.

No segundo texto da série "agrofalácias", quero tratar da taxonomia de agriculturas e agricultores que proliferou no país sem nenhum rigor analítico: agronegócio versus agricultores familiares, grandes versus pequenos produtores.

No artigo anterior, procurei mostrar que agronegócio é apenas uma delimitação do conjunto de cadeias de valor formadas a partir de produtos agropecuários: indústrias de máquinas e insumos, agricultores de todos os tipos e tamanhos, agroindústrias processadoras, distribuidores, varejistas etc.

Nesse contexto, tamanho físico não é documento para participar ou não do agronegócio. Pequenos produtores integrados às indústrias de frangos e suínos são parte do agronegócio, assim como os que vendem hortaliças, flores, cachaça e queijos artesanais.

Já os pequenos que vivem apenas para a subsistência ou as grandes propriedades que não geram excedentes comercializáveis não fazem parte do agronegócio.

Ocorre que 99% dos agricultores brasileiros têm gestão familiar. E o conceito básico para separar agriculturas e agricultores não deveria ser o tamanho da propriedade ou o número de pessoas que ela emprega, como na atual definição de "agricultura familiar". Deveria, sim, ser a rentabilidade e a capacidade de inserção de cada agricultor nas cadeias de valor do agronegócio.

Em outras palavras, o que interessa não é se o agricultor é grande ou pequeno, se emprega ou não, mas a sua capacidade de empreender, de gerar excedentes e lucros, de se inserir nos mercados.

No excelente livro "História do Brasil com Empreendedores", Jorge Caldeira mostra o papel do empreendedor no desenvolvimento do Brasil, com uma abordagem inovadora em relação à historiografia tradicional, pautada pelo latifúndio escravocrata exportador, da casa grande versus senzala, da metrópole versus colônia.

Caldeira mostra que tivemos um mercado interno bem robusto no Brasil colonial, sustentado por uma grande quantidade de pequenos, médios e grandes empreendedores independentes, na maior parte do tempo lutando contra a ação deletéria do governo.

Na agricultura do século 20, acontece o mesmo: imigrantes viraram "colonos" no Sul e no Sudeste do país e mais tarde migraram para o Centro-Oeste em busca de escala para sobreviver. A pequena propriedade do colono no Sul vira a grande plantação de hoje no Centro-Oeste.

O migrante italiano que veio colher café vai produzir cachaça em alambique próprio e depois constrói as grandes usinas sucroenergéticas de hoje.

Pode parecer chocante, mas a história recente da agricultura brasileira pouco tem a ver com as capitanias hereditárias e os velhos barões do açúcar e do café. Sua gênese reside na migração, na inovação tecnológica do último meio século, no empreendedorismo e na integração das cadeias produtivas.

São esses os fatores que construíram a revolução agrícola tropical brasileira. Os que fizeram parte dela cresceram e se tornaram globais. Os ineficientes já saíram ou vão sair do (agro)negócio, sejam eles grandes ou pequenos, barões ou agricultores de subsistência, latifundiários ou assentados.

Foi o empreendedorismo que permitiu aos agricultores brasileiros sobreviver no mercado global, ainda que o Brasil nunca tenha reconhecido o seu papel histórico e social.

A história brasileira é contada pelo lado dos coronéis, dos governantes corruptos, dos escravos e dos índios. Raramente se fala dos italianos, dos japoneses, dos gaúchos e dos paranaenses que cresceram, desbravaram e se tornaram globais.

Glúten, lactose e outras modas (por DRÁUZIO VARELLA, na FOLHA)

Nunca houve tantos modismos na dieta. Dieta sem glúten, sem lactose, sem gordura, sem carboidratos, sem nada que venha dos animais e até dietas sem alimentos que contenham DNA (pedras, talvez).

A história de nossos antepassados é a da miséria. Dos 6 milhões de anos de nossa espécie, pelo menos 99,9% do tempo caçávamos, pescávamos, coletávamos frutos e raízes e disputávamos carcaças de animais com outros carnívoros famintos.

Há insignificantes 10 mil anos, o surgimento da agricultura criou a oportunidade de abandonarmos a vida nômade e armazenarmos víveres para a época das vacas magras.

Ainda assim, as epidemias de fome e a desnutrição chegaram até os dias atuais. Na metade do século passado havia fome coletiva na França, Inglaterra, Alemanha e demais países da Europa deflagrada.

  Líbero/Libero/Editoria de Arte/Folhapress  
Líber de 04.FEV de 2017
 

Comida farta só chegou à mesa de grandes massas populacionais depois da Segunda Guerra Mundial, graças à mecanização e aos avanços da agricultura e da tecnologia de conservação de alimentos. Hoje, um brasileiro de classe média tem acesso a refeições mais variadas e nutritivas do que as dos nobres nos castelos medievais.

A fartura trouxe o exagero. Um cérebro com circuitos de neurônios moldados em tempos de penúria não desenvolveu mecanismos de saciedade, capazes de frear os impulsos viscerais despertados pela fome, antes de nos empanturrarmos até passar mal de tanto comer.

Essencial à sobrevivência quando precisávamos acumular reservas para os longos períodos de jejum que se sucediam, essa estratégia se voltou contra nós.

Ao mesmo tempo, vão distantes os dias em que gastávamos energia para alimentar a família. Pela primeira vez na história da humanidade, desfrutamos o privilégio de ganhar o sustento sentados em cadeiras confortáveis. A um toque de celular o disque-pizza nos entrega 5.000 calorias à porta, sem sairmos do sofá.

Fartura e sedentarismo, gula e preguiça, criaram as raízes da epidemia de obesidade que assola o mundo. Novembro de 2016 foi o primeiro mês dos tempos modernos em que a expectativa de vida diminuiu em relação à do mês anterior, nos Estados Unidos.

Seguimos pelo mesmo caminho. A continuar nesse passo, a obesidade e a vida sedentária farão nossos filhos viverem menos do que nós.

Sem disposição nem coragem para encarar a realidade de que comemos mais do que o necessário e andamos menos do que deveríamos, procuramos uma saída mágica que nos mantenha saudáveis.

Inventamos teorias mirabolantes que a internet divulga com tal velocidade que se transformam em ideologias com manadas de defensores ardorosos: carne é veneno, nenhum animal adulto toma leite, glúten engorda e incha, suco de berinjela reduz colesterol, e tantas outras.

É desperdício de tempo e risco de perder amigos questionar essas crenças. Não adianta dizer que nossos antepassados não teriam sobrevivido não fosse a carne, que alimentos com glúten costumam conter carboidratos simples com índices glicêmicos elevados, que a coitada da berinjela jamais teve a pretensão de proteger alguém contra o ataque cardíaco e que onças adultas não tomam leite pela mesma razão que não bebem chope nem água encanada.

Para confundir ainda mais, estudos com resultados que exigiriam interpretações estatísticas cautelosas e confirmação em pesquisas mais elaboradas ganham destaque nas mídias como se apresentassem conclusões definitivas. Num dia, o ovo é uma bomba de colesterol prestes a explodir as coronárias; no outro, asseguram que tem alto valor nutritivo. A carne de porco que já foi a mãe de todos os males está reabilitada, a de boi enfrenta suspeitas.

A confusão acontece porque esses estudos costumam ser observacionais. Neles, são analisadas as características dietéticas de uma população e as enfermidades que a afligem. Em ciência, publicações desse tipo são consideradas apenas geradoras de hipóteses. Para confirmá-las são fundamentais os estudos prospectivos, randomizados, muito mais complexos, dispendiosos e demorados.

Perdido na selva de informações desencontradas, o que você deve fazer, leitor? Coma frutas, saladas e verduras com liberalidade; do resto, de tudo um pouco. Procure comer o que sua avó considerava comida.

 

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Fonte:
Folha de S. Paulo

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2 comentários

  • Joacir A. Stedile Passo Fundo - RS

    Os animais adultos não tomam leite por duas razões:

    Primeira: Porque não tem dinheiro para comprar!

    Segunda: Porque ninguem dá à êles!

    1
  • José Carlos Pereira Junior Jacareí - SP

    Muito boa esta matéria, adorei a última frase : "Coma o que sua avó considerava Comida".

    Parabéns ...

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