ELEIÇÃO HISTÓRICA: Mauricio Macri ganha as eleições e será o novo presidente da Argentina
A Argentina fez uma eleição histórica neste domingo. O oposicionista Mauricio Macri venceu a disputa e será o próximo presidente da Argentina, com posse marcada para o dia 10 de dezembro. Apesar de histórico, o resultado não é uma surpresa. O conservador Macri, da aliança Cambiemos, encerrou a campanha como favorito contra o esquerdista Daniel Scioli, da Frente para a Vitória, apoiada pela presidente Cristina Kirchner.
Ao colocar fim a uma hegemonia de 12 anos de peronismo, Macri obteve 51,5 por cento de votos, ante 48,5 por cento do candidato do partido governista Daniel Scioli. Com a vitória de Macri, a Argentina tomará o caminho da reconciliação com investidores, que vinham desaparecendo fugindo dos controles cambiais, restrições às exportações e outras políticas intervencionistas da presidente Cristina Kirchner, que não pode concorrer a outra reeleição. "Juntos podemos construir a Argentina que sonhamos", disse Macri em seu comitê central de campanha. "É uma mudança de época que tem que nos levar ao futuro, às oportunidades que precisamos para crescer".
Com o triunfo de Macri, é a primeira vez em 100 anos que os eleitores argentinos escolhem um candidato que não pertence nem ao peronismo nem ao radicalismo socialdemocrata. Sua vitória encerra doze anos de hegemonia política do casal Kirchner, primeiro com Néstor, eleito em 2003, e agora com Cristina, eleita pela primeira vez em 2007.
Além disso, é a primeira vez na história que a Argentina, em seus 32 anos consecutivos de democracia, elege um presidente em segundo turno. E deu virada. No primeiro turno, o governista Scioli venceu a disputa com 37% dos votos, três pontos a mais do que Macri. Agora, Macri teve mais sucesso em atrair os votos dos demais derrotados no primeiro turno e virou o jogo a seu favor.
Apesar do tom ácido dos últimos dias de campanha, Scioli admitiu a derrota e foi gentil com o vitorioso, dizendo que seu triunfo era justo. Só depois do telefonema do derrotado, Macri e seus assessores sentiram-se autorizados a comemorar a vitória.
Argentina pode ter aumento radical na produção de grãos após vitória da oposição
BUENOS AIRES (Reuters) - Ao final do mandato de quatro anos do presidente eleito Mauricio Macri, a Argentina deverá ter dobrado as exportações de trigo e ampliado fortemente seus embarques de milho, segundo algumas estimativas, conforme o prometido abandono de restrições ao comércio vigentes há anos abrirá as portas para todo o potencial do cinturão agrícola nos Pampas do país.
O líder de oposição Macri venceu o candidato governista Daniel Scioli na eleição de domingo, efetivamente encerrando uma briga de oito anos entre fazendeiros e a presidente Cristina Kirchner, que minava a produção e que apertou o cerco contra embarques de grãos em uma tentativa de segurar a inflação de dois dígitos.
Macri, que venceu com o apoio do lobby de fazendeiros e com uma plataforma de amplo apoio ao livre mercado, prometeu eliminar taxas de exportação de milho e trigo, e abrir o sistema de cotas que controla os embarques internacionais dos dois produtos. Ele também quer uma taxa de câmbio mais competitiva.
O milho deve ter o mais rápido crescimento na área plantada devido a uma previsão de maior lucratividade sob as políticas de Macri, disse o agrônomo Pablo Adreano, que tem analisado o setor de grãos da Argentina por mais de três décadas.
Ele projeta que os produtores vão ampliar a área plantada de 3 milhões de hectares para 4 milhões de hectares no ano safra de 2016/2017. As exportações de milho da Argentina poderiam crescer em 44 por cento nos próximos três anos para 23 milhões de toneladas.
Já as exportações de trigo poderiam subir de 4,3 milhões de toneladas neste temporada para 11 milhões de toneladas em 2018/2019, o que seria equivalente a cerca de 6,8 por cento do comércio global de trigo, disse Adreani.
Mesmo os embarques de soja e seus derivados poderiam subir de 45 milhões de toneladas para 52 milhões de toneladas em 2018/2019, ele disse.
É a primeira vez em 100 anos que argentinos elegem um presidente que não é do partido peronista nem do radical
A mudança chegou à Argentina com uma sensação de normalidade absoluta, sem denúncias de fraude, sem tensões, e com um dia ensolarado na capital. Nada a ver com as primárias de agosto, quando se votou depois de uma das piores inundações de que se tem notícia na província de Buenos Aires e houve todo tipo de denúncias. Tudo apontava então para uma vitória da situação. Mas pouco a pouco Macri foi ganhando terreno e Scioli perdendo, em um ambiente de cansaço do kirchnerismo que as pesquisas não conseguiram detectar.
Macri conseguiu forçar o segundo turno em 25 de outubro com um resultado inesperado —37% a 34% em favor de Scioli— e desde então não parou de crescer, enquanto Scioli e a situação mudavam totalmente de estratégia, em desespero,para tentar estimular o voto anti-Macri e convencer os argentinos, sobretudo das classes populares, de que tinham de ir votar paradefender seus programas sociais e os direitos adquiridos nestes anos.
Toda a campanha se concentrou na ideia de que com Mauricio Macri viria um cataclisma, mas no dia em que realmente se votou, nada aconteceu. Daniel Scioli, que durante três semanas tentou convencer os argentinos de que seu rival é “um perigo”, inclusive se esqueceu ontem dessa guerra e até tentou retomar sua amizade com Macri. Os dois eram amigos há 30 anos, pertencem ao mesmo círculo de filhos de empresários milionários e são da mesma geração, mas nos últimos dias tudo parecia rompido entre eles.
Scioli se encarregou ontem de relembrar que Macri esteve em seu casamento e que esteve com seu rival poucas horas depois de ter sido liberado de um duríssimo sequestro que sofreu em 1991. Tinham uma amizade estreita. Macri insiste que Scioli foi “uma grande decepção” pela campanha duríssima que protagonizou nos últimos dias. “Está lançando a imagem de que sou uma má pessoa que vai prejudicar seu país”, queixava-se na quinta-feira.
Esta batalha entre dois homens da elite econômica do país, que vêm de mundos alheios à política —Macri do futebol, como presidente do Boca Juniors, e Scioli de um esporte para milionários como as lanchas de corrida— chegou a seu fim e Scioli busca a reconciliação e até falou da relação de suas esposas. “Karina conhece Juliana há muitos anos e essas são as coisas que perduram, a política é uma circunstância”, sentenciou. Scioli tentou usar a seu favor a figura do Papa, próximo ao peronismo, e voltou a citar as palavras de Francisco: “Votem com consciência”.
E, no entanto, apesar desta aparente tranquilidade em um país de longa tradição democrática interrompida por várias ditaduras no século XX, a virada que a Argentina dá é notável. Sem solução de continuidade, passou-se de 12 anos de kirchnerismo, nos últimos tempos voltado à esquerda, e com uma política econômica heterodoxa concentrada em um claro protecionismo para manter a indústria local e os empregos e um controle férreo da venda de dólares, a um candidato como Macri, alheio ao peronismo e ao radicalismo que vem da direita e defende posições liberais, ainda que agora se defina como “desenvolvimentista”. O entorno de Macri afirma que ele sabe que país vai enfrentar e não fará uma virada de 180 graus, mas manterá um certo protecionismo e fará as reformas muito devagar, respeitando os sindicatos. Mas a verdade é que no mundo econômico se assume que virão curvas nos próximos meses.
Macri optou neste domingo por sua habitual mensagem otimista sem entrar em muitos detalhes. “É uma enorme alegria, sinto que estamos em um dia histórico, que vai mudar nossas vidas. Espero que comece uma nova fase na Argentina. Viemos com tranquilidade e esperamos que hoje seja uma festa. Quero dizer muito obrigado a todos. Sinto uma enorme alegria e estamos todos sabendo que é um dia histórico que vai mudar nossas vidas”, afirmou pouco depois de votar.
Terceiro na disputa, o peronista dissidente Sergio Massa, que ficou fora do segundo turno e cujos 5,2 milhões de votos eram cobiçados por todos, também quis ser otimista, ainda que claramente oposto a Macri: “Para além do resultado, hoje termina uma etapa e começa uma nova. Será preciso arregaçar as mangas e trabalhar por uma Argentina melhor”. O país entra assim em uma nova etapa que nunca tinha explorado, um governo alheio ao radicalismo e ao peronismo que dominaram os últimos 70 anos, apesar de Macri ter alguns componentes de ambos em sua equipe.
Cristina e Lula perdem, e Macri vence na Argentina; sinal de alento na América do Sul (por REINALDO AZEVEDO)
E Luiz Inácio Lula da Silva, hein? Atravessou a fronteira, foi fazer campanha eleitoral na Argentina e foi derrotado. O populismo mixuruca e troglodita teve a sua primeira derrota importante. No dia 6 de dezembro, será a vez de Nicolás Maduro levar uma surra nas eleições parlamentares da Venezuela. Sim, a onda chegará aqui. Vamos ver quando. Ou melhor: a onda já está aí. Vamos lá.
Maurício Macri, da “Mudemos”, uma coligação de centro-direita, venceu as eleições e toma posse como o novo presidente da Argentina no dia 10 de dezembro. Com quase 99% dos votos apurados, ele obteve 51,46% das preferências, contra 48,54% do peronista Daniel Scioli. Chegam ao fim 12 anos do reinado do kirchnerismo, liderado primeiro por Néstor Kirchner, que governou de 2003 a 2007 — morreu em 2010 — e, depois, por sua mulher, Cristina.
A economia argentina enfrenta severas dificuldades, e a tarefa de Macri não será nada fácil. Não custa lembrar como o casal Kirchner ascendeu ao topo do poder. Carlos Menem, que comandou por 10 anos (1989-1999), havia destruído a economia do país. Foi sucedido por Fernando De la Rua, da União Cívica Radical, que ficou apenas dois anos no poder. Foi deposto em dezembro de 2001.
O país chegou a ter cinco presidentes em janeiro de 2002, até que assumisse Eduardo Duhalde, que entregou o poder para Néstor Kirchner, em maio de 2003. Um desses presidentes ficou apenas uma semana no cargo — Adolfo Rodríguez Saá —, mas entrou para a memória nacional como aquele que deu, até então, o maior calote da história na dívida externa: US$ 102 bilhões. A dívida só voltou a ser renegociada a partir de 2005.
Dos estertores do governo Menem até a saída de De La Rua, o país viveu o que se chama o período da “Tragédia”. O PIB despencou 20%, e a renda per capita, em dólares, caiu 68%.
Isso explica a ascensão do casal Kirchner. A legalidade havia chegado ao seu grau zero, e Néstor acabou obtendo carta branca da sociedade para pôr ordem na bagunça. A economia, mesmo com as dificuldades enfrentadas pelo calote, teve uma notável recuperação.
Cristina não era uma outsider da política. Não era apenas “a esposa”. Tinha a sua própria trajetória, e havia quem dissesse que ela era muito mais articulada intelectualmente do que o marido. Mas é evidente que ao fazer da mulher a candidata à sua sucessão, Néstor e família passavam a tratar a política como um assunto doméstico, privado.
Ela venceu a disputa e se reelegeu em 2011. Uma concepção autoritária de poder, intolerante com a oposição e avessa à liberdade de imprensa — que se percebia já em seu primeiro mandato de maneira, vamos dizer, larvar — se manifestou com força nos últimos quatro anos.
No período, a economia do país começou a patinar, mas a presidente investiu pesado nos chamados “programas sociais”, incluindo a sua própria versão do Bolsa Família, manipulou escancaradamente os índices de inflação e, ora vejam, passou a atacar as ditas “elites do país”, aproximando-se dos governos bolivarianos da América do Sul. Ou por outra: o assistencialismo agressivo servia a um projeto autoritário de poder.
O Kirchnerismo resolveu criar a sua própria corrente dentro do peronismo. Em 2006, surge um movimento com características francamente fascitoides chamado “La Cámpora”, destinado a intimidar os adversários nas ruas, nos sindicatos, nas redes sociais, em todo lugar. O grupo tem características de milícia mesmo.
Cristina chegou a testar a hipótese de mudar a Constituição para tentar um terceiro mandato, mas a reação da sociedade argentina foi bastante negativa. Ficou claro que ela não conseguiria realizar o seu intento. A campanha eleitoral por lá seguiu o padrão terrorista a que se assistiu no Brasil: o candidato oficial, Daniel Scioli, acusava Macri de pretender destruir os programas sociais se eleito.
Cristina deixa o poder com uma sombra terrível a se projetar sobre a sua biografia. Atende pelo nome de Alberto Nisman, o promotor. Ele apareceu morto um dia antes de depor no Congresso e acusar a presidente de envolvimento numa operação para esconder a responsabilidade do Irã num atentando terrorista que, em 1994, matou 85 pessoas numa entidade judaica (AMIA). Na Argentina, a começar da própria promotoria, ninguém acredita em suicídio.
Vamos ver. Surge uma nova esperança na Argentina. Macri não é peronista nem pertence à tradicional União Cívica Radical, de perfil mais social-democrata. O presidente eleito da Argentina está mais próximo do pensamento liberal. Terá uma pedreira pela frente. O peronismo, com suas múltiplas frentes e faces, indo da extrema direita à extrema esquerda, é um adversário sempre perigoso.
Que a América do Sul continua a mudar e aposente outros populismos mixurucas. No Brasil de 2014, o medo venceu a esperança. Na Argentina de 2015, a esperança venceu o medo. E Lula perdeu junto com Cristina.
Crispação cansou a Argentina (por CLÓVIS ROSSI, na FOLHA)
Não foi exatamente um modelo inteiro que ruiu nas urnas argentinas deste domingo, 22, mas, acima de tudo, a maneira rude de exercê-lo.
Que o modelo não foi inteiramente derrotado prova-o o fato de que seu antagonista, o vencedor Mauricio Macri, empenhou-se durante toda a campanha em jurar que não mexeria nos programas sociais que deram popularidade primeiro a Néstor Kircher e depois à Cristina Kirchner.
Natacha Pisarenko-29.out.15/Associated Press | ||
Cristina Kirchner acena a simpatizantes ao lado de um retrato do marido e antecessor, Néstor, em Buenos Aires |
Essa fatia do modelo —o esforço de de inclusão social, sincero ou demagógico, a juízo de cada leitor— é um ativo que veio para ficar e não só na Argentina.
No Brasil, por exemplo, não houve, em 2014, e não haverá em 2018 ou depois qualquer candidato, por mais reacionário que seja, capaz de pôr em dúvida a permanência do Bolsa Família, para citar apenas um dos símbolos dos governos do PT, como o foi na Argentina, ainda que com outro nome (Asignación Universal por Hijo).
Outros aspectos do modelo, como o excesso de intervenção do Estado, podem ter sido rejeitados nas urnas deste domingo, mas é algo que só dirão as análises sociológicas que o tempo do jornalismo dificulta.
O que, sim, do meu ponto de vista, pode se afirmar com segurança que perdeu foi a maneira imperial de exercer a Presidência, a crispação permanente que Cristina, muito mais que Néstor, impôs ao país.
Produziu um estado de ânimo que só é adequadamente descrito por uma palavra espanhola, "hartazgo". Em português, é cansaço, esgotamento, mas "hartazgo", ainda mais com o forte acento portenho, soa definitivo.
Constata para "El País", por exemplo, o intelectual Enrique Valiente Noailles: "A Argentina se fartou de si mesma, de viver em um ambiente que produz seu próprio monóxido de carbono".
Reforça Ricardo Kirschbaum, que, como editor-chefe do "Clarín", foi um dos alvos permanentes da crispação: "Hoje se acaba um ciclo político que fez do antagonismo sua razão de ser".
Até Daniel Scioli, o candidato (a contragosto) de Cristina, admitiu na antevéspera da votação: "Talvez estejam [os eleitores] irritados com as brigas, mas comigo é diferente. Sou um homem de diálogo, como já demonstrou a minha vida".
É bom ressaltar que outros regimes que se dizem de esquerda na América do Sul, Brasil inclusive, adotaram o mesmo mecanismo de satanizar os adversários, tratando-os como inimigos da pátria.
Pode-se, por extensão, supor que o cansaço dessa confrontação permanente estender-se-á além da Argentina, quando houver eleições.
Aliás, Jorge Fontevecchia, diretor do grupo Perfil, outro alvo da crispação do kirchnerismo, dizia à Folha ainda antes da eleição:
"Creio que vivemos [Brasil e Argentina] ciclos parecidos. Essa mudança aqui [na Argentina] talvez tivesse ocorrido também na última eleição brasileira, caso ocorresse alguns meses depois".
O palpite parece correto: Dilma Rousseff ganhou a eleição com pequena diferença, mas depois dela sua popularidade mergulhou num infernal tobogã.
Como a Argentina, o Brasil parece cansado desse perene "nós contra eles/eles contra nós".
FIM DE FESTA PARA O POPULISMO NA AMÉRICA DO SUL
Os populismos que governam Argentina, Brasil e Venezuela atravessam uma profunda crise. Macri sinaliza guinada geopolítica na América do Sul. (por Julio Maria Sanguinetti, ex-presidente do Uruguai, no EL PAÍS)
O kirchnerismo argentino entrou no em seu ocaso. Seja qual for o resultado da eleição deste domingo, a onipotência dessa vertente pessoal do peronismo chegou ao final. Só a derrota da eleição para governador da província de Buenos Aires, que representa 38% do eleitorado nacional e seu bastião histórico, é um sinal de uma nova era.
A condição de favorito que o governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, tinha até recentemente, mudou de sinal. Com a mesma firmeza com que as pesquisas davam sua vitória como certa, agora preveem a de Mauricio Macri, que parece abençoado pelos deuses quando até o Boca Juniors, a equipe que presidiu por 12 anos, voltou a vencer o campeonato de futebol argentino.
Paradoxalmente, Scioli, com a primeira maioria (36,8%) parece derrotado, enquanto Macri (com 34,3%) e Sergio Massa (21,3%) parecem vitoriosos. Acontece que esses números expressam umarejeição clara ao continuísmo. É possível sentir um cansaço das 46 intermináveis redes nacionais que a presidenta ocupou este ano com sua retórica tensa e barroca; da forma autoritária de lidar seu partido como um absolutismo monárquico; sua agressividade constante contra a imprensa e uma situação econômica que já não tem a possibilidade esbanjar o que o comércio exterior fornecia até recentemente, com os melhores preços da história em produtos agrícolas. No segundo turno que se aproxima, Macri é a esperança de uma mudança; Scioli é uma dupla resignação: da presidenta, que o aceitou como candidato sem querer e do eleitorado kirchnerista que não o considera um dos seus.
A outra eleição que se aproxima, a de 6 de dezembro na Venezuela, também marca outro formidável fracasso dos regimes populistas. A Venezuela vive hoje a maior crise de sua história. Seu PIB caiu da 4ª para a 7ª posição na América Latina, com o anúncio de outro declínio acentuado este ano. A inflação, muito difícil de estimar, é a maior do mundo, e se o Governo fala em 85%, economistas independentes estimam em 200%, com uma perspectiva hiperinflacionária. O desabastecimento é generalizado e o autoritarismo já é exibido sem pudor, a tal ponto que o Governo nem sequer reconhece que a Corte Interamericana de Direitos Humanos sentenciou o Governo a devolver aos proprietários a Radio Caracas Televisión. No meio desse panorama, o promotor no julgamento ao líder da oposição Leopoldo López, condenado a 13 anos de prisão, foi para os EUA, escapando da “imensa pressão” que era vítima para validar as “provas falsas” que o Governo exibia.
Frente a essas circunstâncias, o presidente Maduro mostra grosseiramente sua intenção e anuncia que, no caso de uma derrota parlamentar, “não vai entregar a Revolução” e “que vai governar com o povo”, em uma “união cívico-militar” (a mesma expressão que, naquele momento, usou a ditadura uruguaia). Mais que uma ameaça é uma expressão de que haverá fraudes, a qualquer custo.
No Brasil, por sua vez, a situação continua piorando. A economia está indo para outro ano recessivo e os escândalos de corrupção ligados à Petrobras são inigualáveis. Os números são tão grandes quanto o território brasileiro e estão presos os principais empresários da construção e as principais figuras do Governo de Lula. A presidenta Dilma Rousseff administra o país sem o menor consenso nacional, em meio a um clima de descrédito moral que envolve seu partido e o governo.
É muito significativo que isso ocorra simultaneamente em três países muito importantes que até recentemente eram vistos como bem-sucedidos, conduzidos por líderes populares acima do bem e do mal. A estrela de Lula é eclipsada pelos escândalos de seu Governo, a de Maduro desce para uma exposição grosseira de arbitrariedade e Cristina Kirchner sofreu o colapso de seu projeto de continuidade hegemônica.
Como o Brasil vai terminar não está claro, mas – como disse Fernando Henrique Cardoso – se a presidenta não agir com grandeza, seu regime vai se desgastar até chegar à paralisia. No caso da Venezuela, a pergunta é até onde e quando continuarão resistindo os civis e militares aos que impõe sobre eles os pesados deveres da arbitrariedade. Somente na Argentina parece se abrir o panorama esperançoso iluminado pelo triunfo de Macri.
O que está claro é que a festa populista está em seu ocaso. Na América do Sul, o sol não sai só para o Pacífico.
(por Julio Maria Sanguinetti, ex-presidente do Uruguai).
ELEIÇÕES NA ARGENTINA - EL PAÍS
Argentina vota neste domingo a intensidade da mudança política
Quase tudo é volátil na Argentina. Se há poucos meses se discutia qual seria a força mantida pelo kirchnerismo depois de 12 anos, agora ninguém contesta que sua época passou, que os argentinos apostaram na mudança e que, quem quer que ganhe as eleições deste domingo, o liberal Mauricio Macri (da aliança Cambiemos) ou o peronista Daniel Scioli (da Frente para a Vitória), a guinada vai ser evidente. O voto de 32 milhões de argentinos decidirá a intensidade dessa mudança, não apenas pelo vencedor –todas as pesquisas indicam Macri–, mas também pela distância entre ambos.
Toda a discussão política, cultural e social na Argentina gira em torno de uma ideia: o que ela é e o que pode ser. O país está tomado por uma espécie de nostalgia do futuro, de um destino de grandeza que nunca chega. A ideia de que um país de 40 milhões de habitantes que produz alimentos para 400 milhões poderia estar muito melhor dá munição aos antikirchneristas. Mas os kirchneristas argumentam que a Argentina nunca esteve tão bem como agora, com maior presença do Estado, com melhor redistribuição, com mais emprego.
Na Argentina se discute sem dados sobre o presente –todas as estatísticas são contestadas–, sobre o futuro –por motivos óbvios– e sobre o passado, que alguns mitificam e outros rejeitam. Alguns dos intelectuais e artistas de maior prestígio do país, entrevistados pelo EL PAÍS para estas eleições, fornecem pistas sobre o estado de ânimo de um país que não para de se questionar sobre seu lugar no mundo, para chegar a uma conclusão sobre a qual quase todos estão de acordo: a Argentina é plena de individualidades brilhantes, mas não consegue se organizar para trabalhá-las em conjunto. Mais ou menos o que acontece com sua seleção de futebol.
“A Argentina que conhecemos nos anos sessenta se perdeu”, afirma Beatriz Sarlo, uma das intelectuais mais respeitadas do país, muito crítica em relação ao kirchnerismo, com visão de esquerda. “Era caracterizada pelo pleno emprego, por baixos índices de pobreza. A Argentina dos anos sessenta proporcionava na escola primária um nível de alfabetização que permitia encarar o mundo do trabalho sem problemas e uma relativa ascensão social. Os argentinos de mais de 40 anos não conheciam um país com 20% ou 30% de pobreza”, diz.
Outros, como Aldo Ferrer, que foi ministro da Economia no início da década de setenta e apoiou o kirchnerismo, são mais otimistas. “O país saiu da pior crise da história econômica argentina, a de 2001, recuperou a governabilidade, a solvência fiscal, desendividou-se, construiu um sistema bancário sólido. É preciso considerar que o país teve seis golpes de Estado entre 1930 e 1983. Isso é coisa do passado. Estamos no melhor momento de nossa experiência histórica”, declara.
Juan José Sebreli, um dos intelectuais mais conhecidos, fala em decadência. “Começa logo após a Segunda Guerra Mundial, por razões econômicas, políticas e sociais e várias outras. Depois de 50 anos, não é crise, é decadência. Um estado falido que chega ao ápice com o kirchnerismo”. Sebreli recomendou votar em Macri, o que também fez o escritor Marcos Aguinis, que explica a ideia do individualismo: “A Argentina não apenas tem muitos recursos naturais como continua a ter uma grande quantidade de pessoas capacitadas, mas que se manifestam de forma individual. Temos até um Papa. Mas como conjunto é difícil fazermos funcionar”. “Macri não é um político, não tem carisma, e talvez esses defeitos possam ser um benefício, porque o político é alguém que está acostumado a mentir, buscar o poder para enriquecer”, diz Aguinis.
Até pessoas que apoiam Macri, como Rodolfo Terragno, veterano político e intelectual da União Cívica Radical, confessam que ele não é a opção ideal, mas a única forma de derrotar o kirchnerismo. “Estamos diante de uma eleição que, fazendo comparação com a comida servida nos aviões, é em boa parte massa ou frango. Não se pode dizer que não, que quer outro prato. Muita gente não gosta, mas é preciso se conformar.”
Ricardo Forster, intelectual de referência da situação e membro do Governo, afirma que “o kirchnerismo não desaparecerá” e ainda confia na vitória de Scioli, mas admite, com surpresa, o sucesso do rival: “Macri conseguiu passar o teto da centro-direita argentina. O Cambiemos conquistou setores da classe média baixa, e até setores populares. Conseguiu que esses setores escolham um modelo de sociedade que provavelmente lhes trará enorme prejuízo”.
O escritor Mempo Giardinelli, próximo ao kircherismo, nega a decadência: “Essa nostalgia do passado só é sentida pelos setores mais privilegiados. Mas a verdade é que a Argentina de quase todo o século XX foi um país muito injusto e desigual. Hoje, em termos de equidade social, e ainda com tudo que há por fazer, não tenho dúvida de que estamos num dos melhores momentos de nossa história. Outro intelectual kirchnerista, Alejandro Dolina, faz a mesma desmitificação do passado: “Estamos em bom momento, mas na verdade nunca tivemos o melhor momento. Talvez a história argentina não registre senão lágrimas em todas as suas páginas. Nem mesmo o pior dos opositores acha que estamos afundando, embora diga isso. Não é assim. Comparar com o passado real, o passado de varíola, de pessoas que morriam de tuberculose aos 40 anos, que não aprendiam a ler ou que andavam sem sapatos, talvez não seja tão romântico”.
Diante da provável vitória de Macri, a reação é muito diversa. Intelectuais como Enrique Valiente Noailles se animam e creem que o país decidiu mudar: “A Argentina se fartou de si mesma, de viver num ambiente que produz seu próprio monóxido de carbono. Há uma sensação de paralisação profunda do destino da Argentina. Cansou-se dessa fenda que não se fecha nunca entre o que a Argentina é e o que pode ser”.
O mundo da cultura esteve muito próximo do kirchnerismo. Um dos atores mais conhecidos e respeitados, Leonardo Sbaraglia, está muito preocupado com a chegada de Macri e faz uma autocrítica: “Não se construiu um substituto à altura do que foram Néstor e Cristina. Não digo que do lado do kirchnerismo tudo sejam rosas, mas é possível continuar lutando. Macri é um lobo em pele de cordeiro”. Sbaraglia já pensa na estrutura de resistência ao macrismo: “Todo o tecido social, solidário, de luta ideológica, foi reconstruído desde 2001. Não acredito que o povo argentino deixe por isso mesmo, como fez com o menemismo nos anos 90”.
O historiador Felipe Pigna também fala sobre essa resistência: “Note o cuidado que o candidato da direita tem de dizer que não vai mexer nos planos. Isso é uma vitória do povo, os argentinos conseguiram isso. Como dizia Maquiavel, a única forma para os políticos fazerem o que têm que fazer é meter medo no povo. Não há segredo, eu que me canso de ler a história mundial, é sempre o mesmo. Que os candidatos em todo o arco político tenham medo do povo me parece muito interessante”.
O kirchnerismo entrou na fase autocrítica com a aproximação da derrota. “Se há alguma falha está na inteligência de Cristina Kirchner, que é tão inteligente que considera que não precisa de assessoramento nem formar quadros, e não soube formar um sucessor”, afirma José Pablo Feinmann, filósofo de referência do Governo. Ele acredita que Scioli e Macri são “duas caras do capitalismo, uma das quais [Scioli] se apresenta como uma cara do capitalismo humanitário, distribucionista e latino-americanista”, e por isso o apoia. Os cientistas também têm estado muito próximos do kirchnerismo, que investiu muito em ciência. Um dos mais reconhecidos, o biólogo molecular Alberto Kornblilhtt, diz que “não foi a revolução socialista ou o fim da pobreza”, mas foram governos muito bons que “estiveram à esquerda da média dos argentinos”.
Outros são muito mais críticos. O intelectual José Nun, que foi ministro da Cultura da primeira fase do kirchnerismo, agora é muito duro: “A pobreza é similar à que antecedeu a crise de 2001, as reservas do Banco Central são similares às dessa crise. As medidas que vêm sendo tomadas deixam uma carga tamanha a quem assuma a Presidência que, de um modo ou de outro, vai haver ajuste e desvalorização, com características distintas”.
Dante Caputo, ex-ministro das Relações Exteriores de Alfonsín, resume os últimos anos de seu país: “A história da Argentina se escreve com um Governo que gera ilusões, e depois frustrações, e que leva a governos que são opostos ao que defraudou a ilusão. Isso vai e volta, esse movimento pendular, essa obsessão por Foucault que a Argentina tem é desesperadora.”
O prêmio Nobel da Paz em 1980 e membro fundador da teologia da libertação, Adolfo Pérez Esquivel, também é crítico, apesar de ter anunciado que votará em Scioli porque o prefere a Macri: “Nós não lutamos para isso. Lutamos por uma sociedade livre, mais justa, uma democracia participativa. Não para governos autoritários, onde a pobreza, a marginalidade e a falta de respeito ao direito das pessoas e dos povos aumentam. Arriscamos nossas vidas, nossas famílias, passamos pelas prisões e pelas torturas, e não foi para chegar a uma situação de mediocridade como a que temos agora”, afirma.
O neurologista Facundo Manes fala, inclusive, de um “cérebro argentino”, uma forma de pensar que impede o país de progredir: “Nós argentinos somos pessoas resilientes, superpreparadas para enfrentar as crises, criativos, mas nos falta mais trabalho em equipe. Temos que mudar a inclinação mental que temos, o ‘roubam mas fazem’, o ‘só o peronismo pode governar’, o ‘só importa o que é urgente’. Acho que a educação é parte de uma sociedade que precisa se reinventar”, diz.
O cantor Andrés Calamaro fala dessa sensação do que poderia ter sido: “A Argentina era uma economia promissora no mundo, havia as condições internas e internacionais para exportar produção agropecuária, mas estamos falando de anos anteriores à Segunda Guerra Mundial. Existe uma sensação de destino desperdiçado, quase uma maldição argentina. Talvez não tenhamos aprendido com os nossos erros porque são funcionais para o benefício de alguns poucos”.
Apesar de tudo, tanto os de um lado como os do outro acreditam que a Argentina está melhor do que em 2001, sua última grande crise, e de alguma forma confiam que seguirá em frente, um sentimento muito presente entre os argentinos. O humorista Liniers, autor deMacanudo, umas das tiras cômicas mais seguidas do país, resume esse otimismo cético característico de seus compatriotas: “A Argentina é tão generosa em descontroles... nos últimos 50 anos teve crises econômicas, golpes ditatoriais, violência de todos os pontos de vista, e nos agarramos ao humor. Sim, sou hiperotimista. Porqueacho que aprendemos a lição importante, que era a da democracia. O povo que vive aqui é simpático, desopilante, diferente, às vezes generoso, às vezes raivoso, mas interessante”. Esses argentinos que tanto debatem sobre si mesmos decidem hoje o futuro de seu país.
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