O muro da casa da minha irmã, POR LUIZ RUFFATO (no EL PAÍS)

Publicado em 05/02/2015 04:42
E também: 'A violência mais perigosa', por JUAN ARIAS

Todos os sábados converso por telefone com minha irmã, que vive num bairro operário de Cataguases, interior de Minas Gerais. Percebi que, pouco a pouco, nosso assunto foi se modificando até que, há cerca de dois anos, o diálogo tornou-se quase monotemático: ela passou a me relatar a aproximação inevitável da violência, como se aguardam incêndios, epidemias, enchentes. Assaltos mensais ao pequeno comércio, furtos cotidianos na escola, roubos à mão armada, tráfico de drogas à luz do dia. Ela vinha resistindo à paranoia da insegurança, até que afinal teve de se render: substituiu por um muro alto a pequena mureta que separava a casa da rua.

Agora, as pessoas que caminham pela calçada não podem mais contemplar o jardim bem cuidado com seus jasmineiros e hibiscos, a ampla varanda com seus vasos de antúrios, samambaias, avencas e violetas; quando chegar uma visita, ela não caminhará até a porta e baterá palmas, Ô de casa!, numa demonstração de íntima amizade, mas terá que tocar a campainha, anunciando-se no portão, como se anunciam os vendedores de quinquilharias, os portadores de desesperanças. E a varanda, onde reuníamo-nos fim de tarde para repassar os acontecimentos do dia, cedeu lugar a uma garagem, porque tornou-se perigoso deixar o carro estacionado junto ao meio-fio.

Lembro que, quando menino, atravessava sozinho a cidade, ponta a ponta, sem que passasse pela cabeça de meus pais qualquer preocupação em relação ao meu bem-estar. Nas fábricas de tecido, base da economia local, as bicicletas permaneciam descansando do lado de fora, sem trava ou tranca. Os homicídios eram tão raros que, quando ocorriam, tornavam-se referências temporais. Dizia-se: Fulano nasceu na época em que mataram o Dr. B; ou: Beltrano casou um ano depois que assassinaram o senhor F. Os roubos limitavam-se a galinhas e frutas, e crimes praticavam os bicheiros, os agiotas, as prostitutas. Minha mãe me despachava, nas férias, para a casa dos meus avós, em Rodeiro, colocando-me no ônibus e recomendando-me ao motorista. Muitas vezes, percorri a pé, sozinho, a légua e meia que separava a fazendola do núcleo urbano e o que me causava apreensão eram apenas os cães, os bois, as cobras...

Poderia historiar o momento exato em que perdemos a fé uns nos outros. Ainda em 1979, os estudantes aglomeravam-se no trevo de Juiz de Fora, na antiga rodovia União e Indústria, no aguardo de uma carona que os conduziria para a Rio-Bahia, estrada comum para chegar em casa. Fossem dezenas e todos alcançariam seu destino, cedo ou tarde. No ano seguinte, começaram a escassear os caroneiros, porque, como uma enxurrada, avolumava-se o receio em relação aos estranhos. Em 1981, já praticamente estava extinta essa forma de generosa acolhida.

Alguém pode argumentar queencontrávamo-nos em plena ditadura e que o regime de força impunha essa sensação, talvez falsa, de tranquilidade. Eu posso concordar com essa objeção, mas por outro lado recordo que segurança pública é um dos itens básicos da satisfação social a ser garantida aos cidadãos: basta pensarmos como vivem as pessoas nos países da Europa ou nos Estados Unidos. Por isso, acredito que o muro levantado por minha irmã é a demonstração concreta da nossa incompetência no processo de construção de uma democracia plena.Não podemos falar em democracia plena se não conseguimos afiançar educação de qualidade para todos; se não oferecemos um bom sistema de saúde para o conjunto da população; se não possuímos isonomia jurídica (só vão para a cadeia pretos, pobres e prostitutas); se a corrupção tornou-se parte essencial do brasileiro; se há um fosso intransponível separando as classes sociais; se não compreendemos a ideia de bem público como bem comum. E se não temos sequer o direito de ir e vir. A nossa democracia se limita – e temos nos contentado com isso – ao exercício da escolha periódica dos governantes.

Se derrubamos a ditadura militar, não alcançamos recuperar integralmente a liberdade um dia perdida. Temos independência para votar, para opinar, para comprar, mas não para ir e vir – o que certifica a qualidade de vida de um povo. O tráfico de drogas, o sistema carcerário falido, a sensação de impunidade, a corrupção na polícia e no Judiciário, a pressão da sociedade consumista, a injustiça social, o contrabando de armas, o péssimo exemplo das autoridades, a impotência da população, tudo nos empurra para o encastelamento em edifícios superprotegidos, em casas-fortaleza, em condomínios fechados, onde, acreditando viver em cidadelas inexpugnáveis, apenas nos enredamos em solidão e egoísmo, apenas nos afastamos mais e mais das soluções para uma destinação coletiva.

 

A violência mais perigosa (por JUAN ÁRIAS)

O mais grave da violência é que nos acostumemos a conviver com ela como se fosse uma triste fatalidade

 

Já não é segredo para ninguém que o Brasil é hoje um dos países mais violentos do mundo. Os meios de comunicação se encarregam de dar os números que crescem a cada dia. Os assassinatos já superam os 53.000 anuais, a maioria de jovens negros ou mulatos e pouco escolarizados. Por isso chamam menos a atenção?

Há, no entanto, uma violência ainda pior: que nos acostumemos a conviver com ela como se fosse uma fatalidade.

Nos ônibus que levam as pessoas dos subúrbios às praias nobres do Rio, a polícia está agindo de surpresa para deter suspeitos que poderiam ir até elas para assaltar os turistas. Os mais vigiados continuam sendo os mais pobres, identificados como violentos potenciais.Os cidadãos percebem a violência na pele, em seu cotidiano. No Rio, em oito dias, as balas perdidas causaram sete mortes, principalmente de crianças. Na mítica praia de Copacabana, as autoridades tiveram de levantar torres de observação para vigiar a formação de arrastões, bandos de jovens que chegam para assaltar os banhistas.

As pessoas de bem da nobre zona sul das praias cariocas chegaram a pensar em isolar essas praias, obrigando a pagar para poder desfrutar delas, em uma tentativa de afastar as classes mais baixas.

E não só no Rio. Hoje, mesmo em balneários até ontem tranquilos no nordeste do país, em praias paradisíacas e isoladas, a violência está chegando. Como em Búzios, meca do turismo internacional, onde aumentam os assaltos a pessoas e residências e onde a polícia agora vigia praias nas quais até agora parecia impossível pensar em ser assaltado.

A violência é contagiosa e qualquer um pode receber dois tiros mortais de um policial como resultado de uma simples discussão na rua.

Se a violência física (sobretudo nas grandes metrópoles) continua crescendo, existe no entanto uma violência mais perigosa, que é a de considerá-la parte da vida dos cidadãos, quase sem assombro, até com resignação. “Só espero que não chegue até mim”, dizia uma senhora bem de vida de São Paulo. É como uma loteria ao contrário. Jogamos todo dia para que não nos alcance.

Nenhum presente melhor para os que governam o país do que essa espécie de vacina contra a indignação diante de tanta violência gratuita.

Conversava sobre o assunto com um flanelinha da pequena localidade praiana de Saquarema, na região dos Lagos (Rio de Janeiro) e ele me dizia: “É que a gente é assim. Para esquecer não só da violência, mas também de tanta corrupção política, a gente se esconde em nossas cervejas e churrascos”. O rapaz sabia, no entanto, que em outros países, como a Argentina, as pessoas sabem protestar mais. “Aqui não estamos acostumados”, destacou.

E é esse acostumar-se com a violência cotidiana, que começa a não ser quase notícia nem nos meios de comunicação, o mais grave do fenômeno. É isso o que no fim leva os responsáveis pela defesa da vida dos cidadãos a também ver a violência como algo normal ou difícil de solucionar. São eles, no entanto, os que deveriam estar na primeira fila, para garantir aos cidadãos o poder de levar uma vida normal sem ter de sair às ruas obcecados pelo que possa lhes acontecer.

O ser humano é um animal de hábitos. Adapta-se a tudo no esforço de sobreviver. E no entanto há momentos na vida e na história de um país em que justamente o modo de sobreviver sem ser ameaçado pela espada de Dâmocles da violência, que se espalha como lepra, é se mexer, reagir para não se acostumar a ela.

Toda vez que os jornais diminuem o espaço dado à violência que inferniza os brasileiros, considerando-a como algo que já não é notícia, ela fica mais perto de nossa porta.

Os estudantes de jornalismo são ensinados que um cachorro morder um homem não é notícia. Notícia seria que uma pessoa mordesse um animal. Assim, pode chegar o dia em que nem a maior das violências seja considerada notícia. A notícia seria, ao contrário, quando se pudesse escrever: “Hoje ninguém foi assassinado, nem estuprado, nem assaltado, nem sequestrado, nem ferido no Brasil”.

Eu, que amo este país como o meu, gostaria, como jornalista, de poder dar essa notícia, ainda que fosse uma vez só.

Sei que é pedir o impossível. Sofremos 146 assassinatos diários. O que não deveria ser impossível é que todo esse dinheiro que deságua da corrupção política fosse usado para proteger quem não pode ir trabalhar com escolta ou em carros blindados. Onde, como acontece quando a vida transcorre sem privilégios, “se sai de casa sem saber se voltaremos vivos”, como dizia um líder comunitário de uma favela do Rio ainda não pacificada. Ninguém pode se acostumar a isso, sob pena de transformar a violência em um objeto a mais, quase indispensável, que devemos arrastar como uma triste fatalidade na já pesada bagagem de nosso dia a dia.

 

Fanatismo e ideologia, as batalhas do marketing

POR ROBERTO ROMANO - EM O ESTADO DE S.PAULO

 

Dilma Rousseff, na primeira reunião ministerial, afastou questões complexas da sociedade brasileira. Cito apenas a situação indígena, que preocupa defensores nacionais e internacionais dos direitos humanos. O silêncio da presidente sobre a substância é compensado por adjetivos próprios à persuasão de massas. Trata-se de ganhar a mente pública para esconder os "malfeitos" gestados no seu mandato. Os apelos ao povo mostram esquizofrenia, porque o País não se recuperou do espanto pela contradição entre a última campanha e planos da nova equipe econômica. O paraíso, promessa da candidata, contrapunha-se ao inferno atribuído à oposição. Hoje o Averno ameaça os contribuintes e a chefe de Estado retoma a propaganda. Nenhuma novidade. No século 18 Frederico da Prússia foi mais franco: organizou um concurso para saber se "é útil enganar o povo" (Ist der Volksbetrug von Nutzen?). Os governos brasileiros responderiam positivamente. Eles seguem o dito de P. Bayle: "Como o povo quer ser enganado, assim seja".

A prática de iludir multidões tem sua gênese no próprio regime democrático. Em Atenas, Sócrates ironiza: ao construir casas ou navios as pessoas escolhem técnicos competentes, mas o Estado é entregue a qualquer um! O povo, adverte ele, é como um tribunal de crianças que julgam entre o médico e o mestre-cuca. O cozinheiro acusa o esculápio que prescreve regimes, remédios amargos, disciplina. Mas ele, o cuca amigo, oferece aos juízes infantis doces e folguedos. Condenar o clínico "cruel" é certeza. (Górgias, 521e). O marketing político engrossa a receita do mestre-cuca. Com a lisonja ele enreda os que, supostamente, dominam o poder estatal. A plateia é eterno alvo dos adulões na teatrocracia (termo de Platão) política.

A lisonja e a demagogia têm dois lados, hoje e no mundo antigo. Primeiro vem o demagogo (ou seus técnicos na arte de ludibriar) e depois o anônimo povo. Na modernidade foi dada atenção às massas, como em Elias Canetti (Massa e Poder). Mas os teóricos do Estado já afirmam ser perigoso entregar o poder decisório à plebe. O povo, com sua imprudência - assassinatos, sacrilégios, etc. -, se guiado por crenças (hoje diríamos "ideologias") é perigoso. Ele serve como "joguete dos agitadores, oradores, políticos. (G. Naudé, Considerações sobre o Golpe de Estado, 1640). As multidões apaixonadas por Hitler, Stalin e outros comprovam o enunciado de Naudé.

Passemos aos mestres da lisonja. Os atuais "soberanos" são iludidos por agências que asseguram eleições e cobram muito, incluindo recursos de fonte corrupta, dos partidos. O marketing não tem ideologia. Ele trabalha para qualquer candidato desde que o metal apareça. Em O Grande Gatsby, de uma ricaça diz o autor que sua voz "soava dinheiro". Tal é a língua das eleições. A liberdade some quando líderes geram certezas para adeptos. Tal fato lembra W. Lippmann e a tática de "fabricar o consenso" à socapa (Public Opinion, 1922). Bernays (sobrinho de Freud, inspirador de Goebbels, que dele usa o livro Cristalizando a Opinião Pública, de 1923) nega toda eficácia democrática à sociedade de massas. A cidadania forma um rebanho que não decide com o próprio cérebro (Propaganda, 1928).

Na Revolução Francesa os líderes fizeram propaganda da laicidade para ganhar a opinião pública e impedir lutas sectárias. Católicos e protestantes tinham duas tarefas: salvar a República e a própria alma. Mas, para os descristianizadores, Salus populi significa destruir a religião. Para eles, só o ateu seria patriota. Os demais? Supersticiosos inimigos do povo. Resultado desastroso, porque banidos os crentes "a Revolução congelou"(Saint-Just). O radicalismo foi corrigido pelo culto do Ser Supremo, no fim da República. Ainda em 1793 a Convenção coíbe o fanatismo dos ateus que destruía os vínculos políticos.

A língua chula dos descristianizadores os denuncia. Ao comentar o decreto contra as procissões (1792) o Père Duchesne ataca os crentes como cafards (baratas) e foutus cagots (gente sem valor), bougres de bêtes e outros mimos. A denúncia, no jornal, conduz à guilhotina. Os convencionais, apesar de tudo, exigem deter os sacrilégios "em nome da paz civil". Eles reiteram que "não se manda nas consciências". No decreto de 21/2/1795, "nenhum signo particular a um culto pode ser posto em lugar público (...) mas quem usar da violência contra um culto qualquer, ou ultrajar os seus objetos, será punido segundo a lei de 1791 sobre a polícia correcional". O texto prova que o elo entre descristianizadores e racionalidade é falso. O fanatismo da razão gera a propaganda do Terror. Assassinar suspeitos? Um baile ao som alegre do Ça ira... O Charlie Hebdo nasceu dos descristianizadores.

O insulto às crenças está incluído no gênero "intolerância". Seu escárnio contra a religião vem do medo - ou desprezo - de algo temido ou odiado (Spinoza, Ética, 3, prop. 52). Se reduzo o próximo à idiotia, rebaixo a humanidade em mim. O terrorismo, inclusive a ridicularização alheia, é inaceitável e obsceno.

A propaganda serve aos governos e seus bajuladores, radicaliza o fanatismo incivil. Nos espaços da internet reservados aos "leitores" vigora o escárnio contra quem recusa a horda. A linguagem apodrecida é ali usada contra os adversários, promovidos a inimigos que se deve matar, primeiro moral, depois fisicamente. Calúnias espalham fétida propaganda intimidatória. Militantes emulam Rousseff: urge, com a virulência de Trasímaco, vencer a batalha da comunicação na qual o marqueteiro é um avatar do sofista. Os linchadores da rede exalam ódios que levam à ruptura civil. Neles, à direita e à esquerda, falam a ideologia e a sarjeta. "Os celerados de Shakespeare se detinham na dezena de cadáveres porque ignoravam a ideologia"(Soljenitsyn). Em vez de cosmopólis, a "rede social" - um oxímoro - é uma cacopólis, barbárie que se delicia na perversidade. Já declarava seu inspirador: "Queremos ser bárbaros. É um título honroso" (Hitler).

*Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de Razão de Estado e outros estados da razão (Perspectiva)

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EL PAÍS

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