Aquisição de imóvel rural por estrangeiro, por Stefano Ferri
Tramita no Congresso Nacional, o projeto de Lei nº 2.963/2019, que regulamenta a aquisição, posse e o cadastro de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira.
Trata-se de matéria muito relevante para o agronegócio brasileiro, setor que sustenta a economia do país, e até hoje não conta com a segurança jurídica necessária para seu pleno desenvolvimento.
Na década de setenta, foi sancionada a Lei nº 5.709/71, primeiro diploma legal disciplinando a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país, ou pessoa jurídica autorizada a funcionar no Brasil, sujeitando, no § 1º do artigo 1º, a “pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas, que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior”.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (“CF/88”), existe uma insegurança jurídica quanto à recepção do § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709/71, supramencionado.
Em 1994, o Poder Executivo solicitou um posicionamento da Advocacia Geral da União (“AGU”) sobre a questão, sendo emitido o Parecer GQ 22/94, concluindo pela recepção da Lei nº 5.709/71, ressalvando o § 1º do art. 1º, sob o fundamento de haver incompatibilidade material com o art. 171, I, da CF/88, que não admitia restrições à empresa brasileira, ainda que controlada por capital estrangeiro.
Através da Emenda Constitucional nº 6/95, foi revogado o art. 171 da CF/88. Com isso, a AGU realizou reexame do quanto estabelecido no Parecer de 1994, decidindo, no Parecer GQ 181/97, que a revogação do dispositivo constitucional, por si só, não teria o condão de repristinar o § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709/71, pois, pela teoria da recepção, quando normas anteriores à vigência de certa ordem constitucional conflitam materialmente com a mesma, são tidas como revogadas.
Verificando a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“LINDB”), Lei nº 4. 657/42, vemos que foi acertado o entendimento, considerando seu art. 2º, § 3º, in verbis:
“§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”.
Em meados de 2004, considerando as alterações do cenário econômico nacional, inflação de preços agrícolas e aumento do interesse mundial no cultivo de áreas rurais brasileiras, o Governo Federal passou a olhar com maior cuidado para os problemas advindos da revogação do art. 171 da CF, pensando em alternativas que proporcionassem restrições ao capital estrangeiro, como estratégia para defesa da soberania nacional.
Nesse sentido, a AGU emitiu, em 2010, o Parecer LA-01, se posicionando de forma completamente contraria aos pareceres anteriores, sustentando que o §1º do art. 1º da Lei nº 5.709/71 teria sido recepcionado pela CF/88, não tendo perdido sua vigência.
Com isso, temos que a pessoa jurídica brasileira, da qual participem no capital social pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas, que residam ou tenham sede no exterior, submetem-se ao quanto disposto na referida lei, equiparando-se, desse modo, à pessoa jurídica estrangeira, autorizada a funcionar no Brasil.
Ao nosso ver, considerando que os investimentos estrangeiros na agricultura brasileira vêm crescendo de forma exponencial, desde a criação do plano real, em 1994, e que o capital externo tem participação intensa nos processos de expansão de setores importantíssimos para o agronegócio, como o sucroalcooleiro, papel e celulose, grãos e algodão, essa tentativa de impor restrições para a aquisição de terras rurais veio como um banho de água fria.
É compreensível o argumento de que se deve ter uma salvaguarda em relação à soberania nacional e à defesa da segurança nacional, porém, deve-se buscar sempre a segurança jurídica, observar a função social dos imóveis rurais, incentivo a investimentos estrangeiros e o respeito ao princípio do pacta sunt servanda.
A celeuma ganhou força, quando o Supremo Tribunal Federal foi provocado para se posicionar acerca da questão, através da Ação Originária de nº 2463, e ainda não o fez.
A carência de revogação expressa do § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709/71, e a falta de posicionamento da nossa corte suprema, ocasiona um cenário de grande insegurança jurídica a respeito da aquisição de imóveis rurais por empresas brasileiras, controladas por estrangeiros.
No cenário econômico atual, é comum que sociedades empresárias sejam constituídas no Brasil, e tenham ações adquiridas por estrangeiros, sejam estes pessoas físicas ou jurídicas, ou mesmo fundos de investimentos.
Sendo assim, levando em conta a relevante participação do agronegócio para o PIB brasileiro, sendo considerado o motor da economia nacional, é necessário que o tema seja tratado de forma séria, não sendo pautado por pareceres da AGU, mas sim de Lei.
Com isso, aguarda-se a tramitação do Projeto de Lei nº 2.963/19 que disciplina a aquisição, todas as modalidades de posse, inclusive o arrendamento, e o cadastro de imóvel rural em todo o território nacional por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras, sendo as constituídas fora do território nacional.
O Projeto de Lei deve ser visto com bons olhos, principalmente porque estabelece, em seu art. 1º, § 2º, que as restrições estabelecidas na Lei não se aplicam às pessoas jurídicas brasileiras, ainda que constituídas ou controladas direta ou indiretamente por pessoas privadas, físicas ou jurídicas estrangeiras.
Trata-se de medida extremamente relevante para o setor, que busca a liberdade econômica e incentivo ao desenvolvimento nacional. Não se pode deixar uma matéria de tamanha relevância, nas mãos de pareceres que, nem mesmo, tem força de Lei, mas apenas visam orientar a interpretação de certos dispositivos legais. A aprovação do Projeto de Lei significará bilhões em investimentos para o agronegócio, além de estabelecer a tão esperada segurança jurídica, colocando uma pá de cal na controvérsia.