Acordo EUA-China – impacto e inconsistências legais (por Marcos S. Jank (*) e Renata Amaral (**)

Publicado em 01/02/2020 08:57
Frágil, incompleto, ele pode implodir a qualquer momento e causar estrago global. (Artigo publicado no Estadão, editoria de Opinião, em co-autoria com a Renata Amaral da American University).

O mundo está instável e perigoso. Epidemias, migrações descontroladas, conflitos étnicos e religiosos, protestos de rua, terrorismo e nacionalismos exacerbados são fatos diários neste período turbulento que vivemos.

Nos últimos seis meses vimos a China ser abatida por uma epidemia de peste suína africana, que dizimou a produção doméstica da proteína preferida da culinária chinesa. Na sequência, a guerra comercial com os Estados Unidos parece estar se transformando num grande acordo que pode impactar o acesso dos demais competidores. A epidemia de coronavírus, nas últimas semanas, pode afetar o crescimento e o comércio chineses.

Durante mais de 70 anos os Estados Unidos lideraram um louvável esforço para criar regras multilaterais de comércio no sistema Gatt-OMC. A China aderiu ao sistema em 2001, beneficiando-se fortemente da corrente de abertura comercial e globalização que foi criada. É nesse contexto que temos de analisar o impacto da primeira fase do acordo econômico e comercial entre EUA e China, assinado em 15 de janeiro.

O endosso das duas maiores economias do planeta a um acordo explícito de facilitação de comércio em favor dos EUA (na linha “America first”) pode representar um golpe profundo na Organização Mundial do Comércio (OMC), além de causar mudanças importantes na geopolítica do comércio global.

Acordos comerciais típicos normalmente tratam de liberalização do comércio entre dois ou mais países. Diferentemente, este acordo comercial é uma versão extrema de uma nova e perigosa forma de “comércio administrado”, com a China concordando em comprar um adicional US$ 200 bilhões em bens e serviços dos EUA “com base nas condições do mercado”, segundo o texto do acordo. Isso quase dobraria as exportações dos EUA para a China em 2021, em relação ao ano-base de 2017.

Duas questões fundamentais emergem desse contexto: 1) pode a China forçar suas empresas domésticas a comprarem esse imenso volume dos EUA, em detrimento de outros parceiros comerciais? 2) Essa nova prática de “comércio administrado” é consistente com as regras multilaterais da OMC?

O capítulo do acordo que trata de agricultura impõe à China uma série de obrigações para conceder melhores condições de acesso a mercado para as importações dos EUA de grãos, lácteos, aves, carne bovina e suína, carne processada e arroz, entre outros. Chama a atenção a criação de uma espécie de fast track regulatório para os EUA em questões sanitárias, administração de cotas de importação e trocas de informação para o comércio de produtos de biotecnologia agrícola entre os países (variedades transgênicas de soja, por exemplo).

Dependendo das mercadorias envolvidas, as obrigações da China variam entre a remoção de certas restrições de importação, o relaxamento de alguns requisitos substantivos e procedimentais na inspeção sanitária, a concordância com padrões de produtos e requisitos de rotulagem e o acesso facilitado a importações originárias de plantas fabris norte-americanas qualificadas.

A menos que a China estenda esses compromissos a outros membros da OMC, a implementação desse acordo com os EUA soa fortemente discriminatória. A chamada cláusula da “nação mais favorecida” estabelece que os membros da Organização devem estender os mesmos benefícios e conceder tratamento não discriminatório a todos os demais membros (artigo I.1. do Acordo Geral de Tarifas e Comércio – Gatt 1994).

No mesmo tom, o artigo 2.3 do acordo SPS da OMC estabelece que medidas sanitárias não podem ser fonte de discriminações arbitrárias e injustificadas entre os membros. O que vale para um vale para todos, salvo no caso da existência de acordos preferenciais de comércio, o que não é o caso entre EUA e China.

Outro capítulo que chama a atenção nesse acordo é o que trata de “expansão de comércio” por meio de compromissos não recíprocos de importação. Na agricultura, as importações da China oriundas dos EUA teriam de saltar de US$ 16 bilhões no ano passado para US$ 36,5 bilhões este ano e US$ 44,5 bilhões em 2021.

Administrar quantitativamente o comércio é um erro crasso, que vai desviar comércio, em vez de aumentá-lo. O mecanismo para isso permanece secreto, mas se aplicado de forma discriminatória a outros países – por meio de cotas, por exemplo – estaria potencialmente violando os artigos XI e XIII do Gatt.

O acordo entre Pequim e Washington marca o nascimento de uma nova era nas relações comerciais internacionais, mas faz um desserviço ao sistema multilateral de comércio, já abalado pelo bloqueio dos EUA à nomeação de juízes para o Órgão de Apelação da OMC – que por isso deixou de funcionar em dezembro último.

Em que pese a trégua temporária entre as duas potências, em vez de aprimorar regras comerciais globais e horizontais, caminhamos a passos largos na direção do comércio bipolar e administrado, que certamente ajudará a reeleger Donald Trump no final deste ano. Mas o pior é que, sem segurança jurídica, incompleto e com pouca previsibilidade, o acordo EUA-China é frágil, inconsistente e pode implodir a qualquer momento, causando grande estrago no cenário global.

(*) Marcos Sawaya Jank é professor de agronegócio global do Insper e titular da Cátedra Luiz de Queiroz da Esalq-USP.

(**) Renata Vargas Amaral é doutora em direito do comércio internacional e professora adjunta da American University, em Washington, DC.

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Fonte: Notícias Agrícolas/Estadão

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