Não pode! (grita José Nêumanne, alertando a Nação...). Todos são iguais perante a lei ou não?

Publicado em 07/02/2018 05:41
Não está em jogo a coerência de Lula, mas a existência de exceções ao direito à igualdade (José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor)

No Brasil, discute-se hoje a validade da cláusula mais pétrea da ordem constitucional de um Estado de Direito que se preze, a de que todos são iguais perante a lei. Como se fosse algo banal, que possa ser abandonado sempre que algum potentado se sentir prejudicado por ela. O princípio, que já não é respeitado a rigor agora, pode ser definitivamente jogado no lixo caso Lula não possa ser preso após a condenação em segunda instância e seja autorizado a disputar a Presidência da República, como se fosse inocente e elegível. Não pode!

É público e notório que o petista foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo juiz Sergio Moro, da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba, a nove anos e seis meses de cadeia. Até aí, morreu o Neves, pois as ruas brasileiras estão cheias de condenados desfilando impunes para que se atenda a outro preceito sagrado, do Direito Penal: a presunção de inocência.

Só que o panorama visto da ponte mudou desde o dia 24 de janeiro, quando o acusado de ter trocado um apartamento triplex na Praia das Astúrias, no Guarujá, por favores prestados com dinheiro público à empreiteira OAS, acusada de pagar propinas a figurões da política e da máquina pública, teve essa condenação confirmada. A confirmação foi por decisão unânime (3 a 0) da 8.ª turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre. Os desembargadores acharam por bem aumentar sua pena para 12 anos e um mês e com isso o ex-presidente se tornou inelegível por dispositivo da Lei da Ficha Limpa, norma eleitoral de iniciativa popular, aprovada no Congresso e sancionada pelo próprio condenado, em 2010.

Não se cobra coerência do signatário, nem ao populismo que ele professa, ou do Partido dos Trabalhadores (PT), que esperneia pelo fato de Dilma Rousseff ter sido deposta da Presidência por decisão do Congresso, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro do STF Gilmar Mendes diz que a inelegibilidade de Lula é “matemática”.

Matemática também é a decisão do TRF-4 ao negar presunção de inocência ao condenado. Qualquer calouro de Direito sabe que a decisão – em especial quando unânime, como é o caso – em segunda instância interrompe a discussão sobre a materialidade (o fato) do crime. As fartas provas contra Lula, aceitas pela unanimidade dos julgadores, encerram a discussão do ponto de vista factual. Só por isso, é possível definir neste texto impresso, com responsabilidade legal, que Lula é criminoso por corrupção e lavagem de dinheiro. Ponto final. Ficam em aberto discussões de natureza apenas de Direito, que podem ser levadas ao próprio TRF-4, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, em último caso, ao STF.

Com o açodamento de rotina, a politicamente histérica e juridicamente ineficaz defesa do criminoso lança mão de recursos possíveis e chicanas suspeitas para empurrar a discussão da inelegibilidade, tornar sua candidatura à Presidência possível e evitar sua prisão, ou seja, a execução da pena. Não se persegue a perfeição, da qual, como se sabe, a pressa é inimiga figadal, mas se investe no reino da fantasia e, sobretudo, da confusão retórica para ganhar tempo e resgatar o que reste de salvados do incêndio.

Entre mortos e feridos, o PT quer dar fôlego à legenda e evitar que se fine. Para tanto conta com a ferocidade de seus dirigentes e militantes e a passividade, mais do que compreensiva, cúmplice dos bandos de suspeitos que contam com a prerrogativa de função, mais do que com a presunção de inocência, para evitar condenação similar à de Lula. Por isso, até agora é de duvidar que a cúpula do Judiciário confirme que há magistrados independentes em Brasília, repetindo o moleiro prussiano que contava com juízes em Berlim para impedir o arbítrio de seu soberano ao tentar desapropriar o moinho dele e atender a interesses exclusivos de sua majestade. Haverá juízes na capital? A ver...

Logo após a confirmação da condenação de Lula, a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann (PR), e o líder da bancada petista no Senado, Lindbergh Farias (RJ), misturaram o lema pacifista de Gandhi (resistência passiva) com as palavras de ordem nazi-fascistas de “rebelião cidadã” e da “luta nas ruas” para ameaçar não as autoridades, mas o Estado de Direito. Gleisi, cuja batata está assando no Judiciário, disse que “mexeram num vespeiro”, sem que haja evidência de picadas de vespas pelo País afora. Escudados no foro privilegiado, eles têm podido blefar à vontade, sem que os responsáveis pela manutenção da lei e pela higidez da democracia reajam à altura. Lula, que acusou a Suprema Corte de “acovardada”, agora promete combater as instâncias inferiores, sem fazer mossa nos ministros do STF e do STJ. O que dirá a presidente do STF, Cármen Lúcia, tão ciosa da defesa corporativa da magistratura?

É que Lula e o PT não estão isolados nessa luta. Torquato Jardim, ministro da Justiça do governo do “não investigável” Temer, já fez suas contas e pontificou que relativa é a verdade aritmética inamovível de que os seis votos que derrotaram cinco no STF representam maioria a ser respeitada na decisão sobre prisão após segunda instância. Não é que ele despreze a tabuada, mas entrou na fila de quem tenta garantir privilégio e imunidade (com pê no meio) com a aplicação da regra do “quem pode mais chora menos” em terra de Cabral e Cunha. Repete a lição que o próprio Lula lhe deu quando tentou retirar o ex-inimigo e agora aliadíssimo Sarney da vala dos cidadãos ordinários sem mandatos nem cargos comissionados. Valha-nos Deus!

Não se engane com lorotas de cúmplices e falsos oponentes. O pretexto mais fascistoide desta pátria de desigualdades, “eleição sem Lula é fraude”, que pelo menos é sincero e apaixonado, é irmão siamês dessa canalhice do “prefiro derrotar Lula nas urnas”. Está aí o lema que melhor define e mais confirma que, na verdade, está é a República dos canalhas. 

As formas do péssimo (por MARCELO COELHO), uma mensagem de amor ao próximo...

O ator e cineasta Tommy Wiseau podia não ser muito inteligente, mas tinha sua visão de como construir um mundo ideal. Bastaria, explica ele a seu único amigo, Gregg Sestero, "que todas as pessoas se amassem".

Num ato de confiança e pedagogia, ele dá a Gregg uma pequena lembrança: um lápis com um globo azul na extremidade, onde em letras brancas se pode ler "Tommy's World".

A cena aparece no início de "O Artista do Desastre", filme do ator e diretor James Franco indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado.

Trata-se de uma história real. Milionário e com baixíssimo QI, Tommy Wiseau se achava capaz de escrever, dirigir e estrelar uma obra-prima cinematográfica.

O filme, "The Room", terminou sendo lançado em 2003, e é considerado por muitos a pior coisa já rodada em toda a história do cinema.

Como assim? Estava certo que o título de maior droga da história cabia a "Plano 9 do Espaço Sideral" (1959), do diretor trash Ed Wood.

A vida de Ed Wood tinha sido filmada por Tim Burton em 1993. Com "O Artista do Desastre", James Franco segue o mesmo caminho, atualizando a lista dos grandes fracassados do cinema americano.

Há inúmeras formas de ser péssimo, e as diferenças entre Ed Wood e Tommy Wiseau são tantas quanto as que existam entre um deles e Orson Welles ou Alfred Hitchcock.

Ed Wood, no inesquecível filme do mesmo nome, dedica-se à ficção científica, com monstros atômicos feitos de borracha inflável, laboratórios de cientista louco com mesa de pernas bambas, invasões espaciais feitas com discos de papelão.

Tommy Wiseau segue uma linha realista, inspirado nos dramas familiares de Eugene O'Neill. Suas caretas de sofrimento são tão horríveis quanto as cenas de sexo, nas quais insiste em exibir o próprio traseiro em primeiro plano.

Para seu drama "The Room", Wiseau contou com dinheiro praticamente ilimitado e uma equipe altamente profissional. Uma tomada simples era realizada dezenas de vezes porque ele esquecia as próprias falas, mas terminava "dando certo".

A ruindade do filme não era acidental. O que tivesse de ridículo tinha sido cuidadosamente planejado. Wiseau sabia o que estava fazendo e o que queria: sua falta de inteligência dispunha de todos os meios para se revelar integralmente.

As deficiências de Ed Wood eram de outra ordem. Com orçamento mínimo, filmava cada cena uma vez só, mesmo que o monstro aparecesse na hora errada ou que a explosão do laboratório desse chabu.

Vivido por Johnny Depp no filme de Tim Burton, o autor de "Plano 9" segue literalmente o princípio romântico do poeta inglês Coleridge, segundo o qual a arte, em particular o teatro, vive de uma "suspensão voluntária da descrença".

Ed Wood conclui daí que um efeito especial de péssima qualidade não será notado pelo público: não há incredulidade possível quando se entra numa sala de cinema.

Ou num estúdio. Ed Wood estava tão tomado pela magia ficcional que acreditava na qualidade de qualquer coisa que estivesse filmando. Tudo era convincente, tudo era perfeito.

O pior diretor do mundo, pode-se dizer, é ao mesmo tempo o "melhor" espectador do mundo —aceita qualquer coisa e lida com o filme sem nenhum distanciamento crítico.

O caso de Tommy Wiseau se reveste, talvez, de maior gravidade. O reino da fantasia não é algo em que ele possa ingressar por meio de truques toscos. Wiseau é tosco em si mesmo, sem truque nem fantasia.

Vive num mundo absolutamente real —como é real o mundo de um cachorro ou de um peixe—, só que muito mais elementar que o nosso.

 

Se Tommy está desesperado, Tommy grita, Tommy bate a cabeça numa televisão, sobe numa escada de pintor e se atira lá de cima. Tommy está desesperado.

"Ed Wood" era um filme sobre a credulidade, tal como era possível numa fase já antiga da cultura de massas. E "O Artista do Desastre"?

Posso ser um pouco piegas, mas acho que se trata de um filme sobre o amor ao próximo. O amigo, a equipe de filmagem e o próprio público terminam tratando bem esse péssimo cineasta. Poderiam esmagá-lo —como tantas vezes fazemos com pessoas burras, na ilusão de que o desprezo lhes ensine quem são.

A ruindade de Tommy Wiseau, ao contrário, cria uma onda de calor humano. No mundo de Tommy, afinal, é possível que todas as pessoas se amem realmente. (Marcelo Coelho, é membro do Conselho Editorial da Folha).

Fonte: O Estado de S. Paulo/Folha

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