No El País: Sem Lula, eleição será decidida entre Bolsonaro e Huck (por Marcello Faulhaber)

Publicado em 06/11/2017 17:40
Marcello Faulhaber é mestre (MSc.) em Economia Política pela London School of Economics e foi o estrategista da campanha de Marcelo Crivella à Prefeitura do Rio em 2016.

Em outubro do próximo ano, os brasileiros irão às urnas eleger um novo presidente da República. Assim como outros analistas e estrategistas político-eleitorais, venho fazendo pesquisas e acompanhando de perto a movimentação dos potenciais candidatos  tenham eles declarado oficialmente a intenção de concorrer ou não. 

Nas últimas semanas, o potencial candidato que mais se movimentou foi o apresentador Luciano Huck: ele participou da criação de um fundo que objetiva melhorar a qualidade dos nossos representantes no poder legislativo; declarou que é hora de sua geração passar a comandar o país; conversou, a portas fechadas, com pelo menos três partidos políticos; e publicou um artigo no jornal de maior circulação do país reafirmando seu compromisso com a renovação política no Brasil.

Tudo isso demonstra que Huck é candidatíssimo. De acordo com as pesquisas qualitativas que tenho feito em vários municípios do país, e com o modelo de projeções de resultados eleitorais que eu adoto (que cruza variáveis como nível de conhecimento, rejeição e intenção de voto dos diversos candidatos), ele, assim como LulaJair Bolsonaro e Joaquim Barbosa, já tem o dobro de chances de ir para o segundo turno se comparados com Marina Silva, Geraldo AlckminJoão Doria e Ciro Gomes

Se Lula realmente não conseguir ser candidato; João Doria se vir obrigado a recuar do seu sonho presidencial; e Joaquim Barbosa decidir não disputar as eleições como cabeça de chapa, ouso afirmar, com doze meses de antecedência, que Luciano Huck, inevitavelmente, será um dos dois nomes do segundo turno das eleições. Mais que isso: poderá até ganhar a corrida presidencial já no primeiro turno, especialmente se conseguir fazer de Joaquim Barbosa o seu vice.

Para compreendermos o porquê disto, é preciso, em primeiro lugar, entender como o eleitorado brasileiro está segmentado. A maior parte dos analistas tende a segmentar o eleitorado brasileiro a partir de uma percepção unidimensional do eleitor. Com esse tipo de percepção, divide-se o eleitorado em esquerda e direita, ou, na melhor das hipóteses, em esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita.

Nos polos desse tipo de segmentação situam-se “entidades míticas”, que habitam o inconsciente coletivo da classe média e que coincidem com os posicionamentos das tradicionais elites políticas do país: a “esquerda” defensora do Estado grande e de valores comportamentais liberais; e a “direita”  defensora do Estado pequeno e de valores comportamentais conservadores.

Esse tipo de segmentação funciona muito bem em alguns países desenvolvidos, mas não no Brasil. De fato, em território tupiniquim, existe um problema grave nesse tipo de segmentação: a suposta correlação entre os valores comportamentais do eleitor e a sua visão a respeito do papel do Estado.

No Brasil, esse tipo de correlação é absolutamente falsa  mesmo no ambiente polarizado das redes sociais que tende a reduzir as pessoas a “coxinhas” e “mortadelas”. Não é verdade, especialmente entre eleitores das classes C2, D e E, que quanto mais conservador (do ponto de vista comportamental) for um eleitor, maior a sua preferência por um Estado pequeno; ou que, quanto maior a preferência de um eleitor por um Estado grande, mais liberais serão seus valores do ponto de vista comportamental.

Na realidade, o eleitor brasileiro, mesmo sem se dar conta, faz suas escolhas políticas, primordialmente, de acordo com essas duas variáveis não-correlacionadas: seus valores comportamentais e a sua visão a respeito do papel do estado. Em 2018, esse fenômeno será mais forte do que nunca. Dessa forma, para segmentar corretamente o eleitorado brasileiro, precisamos percebê-lo a partir de dois grandes eixos: o “eixo valores” e o “eixo visão do Estado”.

O “eixo valores” tem a ver com a opinião dos eleitores a respeito de assuntos como homossexualidadereligiãodrogasaborto e formas de combate à violência, entre outros. Os elementos causais mais críticos que definem o posicionamento do eleitor em relação a esses diversos temas são sua percepção sobre a família (o que é e como preservá-la) e sua defesa dos valores cristãos mais tradicionais. A forte correlação que existe no posicionamento dos eleitores em relação a esses diversos temas comportamentais, nos permite estabelecer dois polos no “eixo valores” e aqui  já consciente das críticas que virão de alguns teóricos  usarei a nomenclatura “liberais” e “conservadores”.

O “eixo visão do Estado” tem a ver com a opinião do eleitor a respeito do papel do Estado na provisão de renda (por meio de transferências) e de serviços para a população, além do quanto ele deve intervir na economia, seja como indutor do crescimento, seja como regulador. As duas variáveis mais críticas na definição do posicionamento do eleitor nesse eixo são a sua formação política na juventude e, principalmente, o seu nível de renda. Há também uma forte correlação nas preferências do eleitor em relação aos temas deste eixo. Chamarei o primeiro polo do “eixo visão” de “Estado grande” e o segundo, de “Estado pequeno”.

A partir desses dois eixos, podemos segmentar o eleitorado brasileiro em quatro grandes grupos: 1) eleitores com valores conservadores que preferem (ou precisam de) um Estado grande; 2) eleitores com valores liberais que preferem (ou precisam de) um Estado grande; 3) eleitores com valores conservadores que preferem um Estado pequeno; 4) eleitores com valores liberais que preferem um Estado pequeno.

Como já me referi anteriormente, nossas elites políticas se dividem entre os “liberais do Estado grande” (“a esquerda”) e os “conservadores do Estado pequeno” (“a direita”). Já as maiores fortunas e as lideranças dos principais grupos empresariais do país (o establishment) que, em larga medida, tem forte influência sobre a mídia, identificam-se com valores liberais e preferem um Estado pequeno (com exceção da conta de juros, evidentemente).

A última pesquisa que realizei indica os seguintes percentuais para cada um desses segmentos do eleitorado: 55% para os “conservadores do Estado grande”, 23% para os “liberais do Estado grande”, 16% para os “conservadores do Estado pequeno” e apenas, 6% para os “liberais do Estado pequeno”. Esses percentuais nos demonstram o porquê da maioria da população se sentir tão pouco representada, seja por nossas elites políticas, seja pelos mais importantes veículos de comunicação do país.

A única candidatura que provavelmente adotará uma narrativa coincidente com um segmento específico será a do PSOL: seu discurso será liberal do ponto de vista comportamental e em defesa do “Estado grande”. Lula (apesar do PT), Bolsonaro, Doria, Alckmin e Ciro são candidatos que se posicionam exclusivamente em um polo de um eixo específico e são difusos no outro eixo: Lula e Ciro são os champions do “Estado grande”; Bolsonaro e Alckmin são os champions dos valores comportamentais conservadores; e Doria é o championdo “Estado pequeno”  não por acaso até muito recentemente, era o mais querido do mercado financeiro.

Huck, Marina e Joaquim Barbosa são candidatos “camaleônicos”: conseguem expressar imagens e discursos variados dependendo do público. Eles podem, por exemplo, ser percebidos por eleitores das classes C2, D e E como “conservadores do Estado grande” e simultaneamente, serem percebidos como “liberais do Estado pequeno” pelos eleitores das classes A, B e C1. No mundo de hoje, a figura que mais classicamente encarna esse tipo de posicionamento é a chanceler alemã, Angela Merkel: a líder que há mais tempo comanda um país democrático no mundo.

Num primeiro olhar, esse tipo de posicionamento pode parecer infalível, mas não é bem assim. No segundo turno das eleições, ele é bem próximo da invencibilidade, mas, no primeiro turno, ele pode ser bastante arriscado, especialmente num momento de forte polarização política como é o caso do Brasil atual. De fato, a fluidez nos posicionamentos pode se tornar alvo fácil dos adversários no primeiro turno  candidatos camaleônicos podem acabar ficando marcados por uma imagem de indecisão, incoerência e ambiguidade. Por isso, esse tipo de posicionamento demanda cuidados extras na comunicação política: a imagem pode sim ser camaleônica, mas o discurso jamais.

Além da correta segmentação do eleitorado e do posicionamento dos principais candidatos dentro dela, há uma terceira variável que será determinante na projeção do resultado da eleição presidencial de 2018: a habilidade dos candidatos se comunicarem com os eleitores das classes C2, D e E (que juntos, equivalem a 55% do eleitorado brasileiro). Apesar da eventual multiplicidade de candidatos e da possível pulverização dos votos, aqueles candidatos que não conseguirem se fazer ouvir pelos eleitores mais pobres, fatalmente ficarão fora do segundo turno. E aí, é preciso distinguir a imagem do candidato da capacidade dele se fazer ouvir. A imagem, de fato, potencializa a capacidade de se fazer ouvir. Mas, a imagem sem a capacidade de se fazer ouvir torna-se inócua.

Dentre os diversos candidatos, os únicos que podem desenvolver de forma crível uma imagem de quem conhece os problemas dos mais pobres, que se solidariza com eles e que trabalhará prioritariamente por eles, são: Lula, Marina, Luciano Huck, Joaquim Barbosa e Geraldo Alckmin (apenas em São Paulo). Por outro lado, os únicos que tem demonstrado capacidade retórica de serem ouvidos pelos mais pobres são: Lula, Bolsonaro e Luciano Huck  Marina se perdeu na complexidade dos próprios pensamentos “progressistas”; Joaquim Barbosa, depois de tantos anos de atividade jurídica, trocou a linguagem popular pela retórica da lei e terá dificuldades de fazer a viagem reversa; Ciro tem a capacidade de ser ouvido pelas massas, mas, há muito tempo, optou pela retórica tecnocrática a qual ele domina melhor que qualquer outro pleiteante ao maior cargo da república.

Sendo assim, por conta das características dos eleitores mais pobres, os candidatos que podem mais se beneficiar da eventual ausência de Lula das eleições são o apresentador Luciano Huck e por incrível que pareça (mas, em menor escala), Jair Bolsonaro  afinal, não há nada mais próximo de um extremo do que o outro extremo, especialmente num momento de grave crise econômica e de convulsão social.

É verdade que Ciro e Marina poderiam ser os herdeiros naturais dos eleitores de Lula, mas os problemas na retórica e na linguagem de ambos assim como suas críticas periódicas ao ex-presidente, tornam essa possibilidade cada vez mais remota. Quanto à possibilidade dos votos de Lula serem herdados por um “poste” do PT, esqueçam. É verdade que preso ou condenado, Lula se tornará o maior eleitor do país, mas ele conseguir levar um representante orgânico do PT para o segundo turno é algo muito improvável por conta da enorme rejeição ao partido  muito maior que a dele próprio. Se, como se vem falando, esse nome for o do Haddad  um “poste” derrotado e paulista  o que já era improvável tornar-se-á impossível.

Em resumo, todos os caminhos hoje indicam que se Lula não conseguir ser candidato, o segundo turno será disputado entre Luciano Huck e Jair Bolsonaro. Mas, o caminho é longo e erros fatais poderão ser cometidos.

No caso de Bolsonaro, há três erros possíveis no horizonte: 1) Ele adotar um discurso liberal na economia  Bolsonaro não pode perder a imagem do militar nacionalista, defensor do Estado forte, que induz o crescimento econômico e que protegerá a população da ganância de grandes grupos empresariais; 2) Ele não suavizar um pouco sua retórica conservadora  ele precisa fazer isso para evitar o crescimento da candidatura Alckmin (ou Doria) e principalmente, para ter alguma chance de vitória no segundo turno; 3) Ele permitir que uma outra candidatura do seu campo, como, por exemplo, a do General Hamilton Mourão, ganhe força nos próximos meses.

No caso de Luciano Huck, há também três erros que podem inviabilizar o sucesso de sua jornada rumo ao Palácio do Planalto: 1) Ele ser identificado pelos eleitores, especialmente os mais pobres e a classe média, como o candidato dos ricos, do establishment, da Globo. Afinal, a revolta da população com os principais veículos de comunicação do país é tão grande quanto sua revolta com nossas elites políticas  não adianta surgir como um não-político e ao mesmo tempo, ser percebido como o candidato do grande baronato do crony capitalismbrasileiro; 2) Ele cair na armadilha, assim como Aécio fez em 2014, de bater em Lula. Aécio, incensado pelo establishment nacional e pelo tucanato paulista, não concentrou suas baterias sobre a presidente Dilma e seu governo, mas sobre Lula e o PT. Esse erro foi fatal na medida em que permitiu que os estrategistas do PT levassem o debate para a comparação dos 12 anos desse partido com os 8 anos de FHC. Foi essa estratégia equivocada de pregar para os convertidos que, em última análise, fez Aécio perder uma eleição que estava ganha. O fato é que milhões de brasileiros continuam extremamente gratos ao ex-presidente pela melhora histórica de suas condições de vida na década passada e o tempo tem nos mostrado que não há acusação, denúncia ou condenação capaz de mudar esse sentimento; 3) Ele não saber usar corretamente a estratégia do camaleão. No fundo, para ganhar essa eleição e fazer um governo histórico, será preciso que Luciano Huck seja mais coração e menos razão, que se guie mais por seus valores de homem de família que quer melhorar a vida das pessoas do que pela ideologia que há em sua cabeça.

O tempo vem consolidando Lula e Bolsonaro, duas reconhecidas figuras anti-establishment, como favoritos para o segundo turno das eleições. O não-político que parecia poder ameaça-los, segundo “analistas torcedores” do mercado financeiro, tornou-se mais político que todos os outros: colocou seu mandato recém conquistado em segundo plano para fazer campanha, passando por cima até mesmo de quem lhe criou politicamente - sua candidatura não tem futuro.Mas, agora, surge um não-político de verdade, correndo por fora e com chances reais de complicar a vida de Lula e Bolsonaro: o “camaleão” Luciano Huck.

Em maio deste ano, eu escrevi neste jornal que a eleição presidencial de 2018, da mesma forma como ocorreu nas principais capitais do país em 2016, seria ganha por um outsider: um não-político ou uma figura anti-establishment. A cada dia que passa, essa certeza só aumenta.

Marcello Faulhaber é mestre (MSc.) em Economia Política pela London School of Economics e foi o estrategista da campanha de Marcelo Crivella à Prefeitura do Rio em 2016.

 

O perdão estratégico de Lula aos golpistas (por JUAN ÁRIAS)

 

Convencido de que a disputa no campo judicial não lhe é favorável, o ex-presidente recorre aos velhos amigos dos partidos conservadores para sair do atoleiro

Há alguns dias, em Minas Gerais, Lula surpreendeu a opinião púbica ao confessar: “estou perdoando os golpistas deste país”. Ele se referia aos partidos que apoiaram a destituição da presidenta, Dilma Rousseff, e que o Partido dos Trabalhadores (PT) denunciou como sendo um “golpe parlamentar”

Como ninguém poderia negar as qualidades de estrategista do ex-presidente, sua confissão e em praça pública, cercado por seguidores de seu partido, com Dilma ao seu lado, só pode significar algo que vai além de um gesto de perdão cristão

A afirmação inesperada de Lula, de querer se aproximar dos golpistas, ocorre, com efeito, em um momento crítico da vida política do país, à véspera da eleição presidencial mais recheada de incógnitas em muitos anos e na qual o principal partido de esquerda, o PT de Lula, aposta tudo, com seu inquestionável líder perseguido pela justiça e que poderá ficar de fora da disputa presidencial, sem que surja no horizonte um candidato credível, capaz de substituí-lo com êxito.

Lula não é um político que se resigna com uma derrota, tampouco quando se vê com a água no pescoço; e é capaz, no último instante, de tirar da manga da camisa uma carta que ninguém esperaria. Neste caso, em que se vê mais acossado do que nunca, tudo que Lula não poderia fazer é permanecer isolado ou fora do jogo. Convencido de que a disputa no campo judicial não lhe é favorável e que terá de enfrentar ainda vários processos e novas condenações, Lula recorre aos velhos amigos dos partidos conservadores, com os quais já tinha governado, para que o auxiliem a sair do atoleiro e ajudem o PT a ressurgir nas urnas.

Acossado sobretudo por uma possível delação premiada altamente nociva por parte de Antonio Palocci, que foi o seu braço direito no Governo em seus anos de glória, Lula sabe que o PT não se salvará sozinho e que neste momento são os seus companheiros de infortúnio judicial, partidos e políticos corruptos, que estão hoje no poder, que podem tentar “conter a sangria” na ferida aberta pelos juízes na luta contra a corrupção, que ameaça todos os partidos mais importantes do país.

Quando decidiu perdoar aqueles que chama de golpistas, com as consequências que isso pode acarretar em termos de desorientação da população, Lula sabia que sem a força do PMDB e seus satélites, sem a força do Governo do golpista Temer, que conseguiu escapar com bastante dificuldade da tempestade de acusações que caiu sobre ele, salvo pelo Congresso, o PT seria hoje o mais prejudicado nas urnas, podendo se reduzir a um partido marginal.

E Lula também sabia, ao fazer o seu gesto de perdão aos “golpistas”, que também da outra parte, da parte de Temer e dos seus próximos, que têm em suas mãos o trunfo de ter interrompido a recessão e a crise econômica deixadas por Dilma, não despreza um abraço de reconciliação com o líder carismático que ainda conta com 35% das intenções de voto. É até possível governar sem Lula, mas não contra ele, que mostrou ser capaz, como Fênix, de sempre se reerguer de suas quedas.

Não se pode esquecer que esse pacto que Lula tenta construir ao tornar público o seu perdão aos golpistas já tinha dados os primeiros passos no hospital onde Dona Marisa, a mulher de Lula, agonizava. Esse perdão conheceu ali o seu primeiro degrau quando Lula e Temer se abraçaram diante da presença de metade do Governo golpista, ali presente. Foi ali que começou a ser desenhado o contorno de uma possível reconciliação do PT com a direita na tentativa de todos se salvarem juntos da Lava Jato.

Se esta análise política corresponde à realidade, resta apenas saber como reagirão os militantes do PT, que acreditaram no seu líder quando ele proclamou que a saída de Dilma resultara de um golpe. O que pensarão, hoje, do perdão de Lula a Temer, os movimentos sociais que lutaram para tentar manter Dilma, os inúmeros movimentos progressistas que se manifestaram contra o golpe e os milhões de brasileiros que choraram quando ela foi deposta. Será que compreenderão a estratégia política maquiavélica de Lula? Perdoarão o próprio Lula por essa ousadia? E Dilma? Será que ela também irá perdoar aqueles que a expulsaram do Planalto?

Talvez o que possa salvar o líder carismático Lula e sua estratégia de poder, no momento mais frágil de sua carreira política, seja a sua capacidade de ser ele mesmo e o seu contrário. Se hoje dá o seu perdão aos golpistas, amanhã, caso a deusa da política o imponha, também poderá retirá-lo. Lula é antes de tudo um político. E com uma particularidade da qual poucos políticos gozam: há uma sensação de que lhe perdoam tudo, fora e dentro do partido do qual ele é o começo e o fim.

Por que será?.

O furacão político que está mudando o mundo: a classe média (por MOISÉS NAIM)

Os cidadãos de renda média convulsionam a política: protegendo seu status ou exigindo mais. Nas eleições e nos referendos realizados na Europa e nos Estados Unidos proliferam candidatos e programas que antes eram impensáveis

O que têm em comum um agricultor de Iowa, um designergráfico do Chile, um aposentado do Reino Unido e um trabalhador em uma cadeia de montagem da China? Duas coisas: são membros da classe média de seus países e estão furiosos com seus governantes. Suas desilusões estão transformando a política e provocando acontecimentos surpreendentes, como a eleição de Donald Trump, o Brexit, a queda de presidentes e uma onda mundial de protestos nas ruas.

Em muitos países do mundo desenvolvido, a classe média está se rebelando contra o estancamento ou até mesmo o declínio de seu nível de vida. A globalização, a imigração, a automatização, as desigualdades, os nacionalismos e o racismo abrem oportunidades para aventureiros da política que vendem más ideias como se fossem boas.

É claro que também houve ricos e pobres que votaram a favor de Trump nos Estados Unidos e do Brexit no Reino Unido, e que muitas pessoas de classe média votaram contra nos dois casos. No entanto, não há dúvida de que, nos países ricos, principalmente nos EUA, aqueles que têm renda média compõem o segmento que mais prejuízos econômicos está sofrendo.

Mas essas convulsões não ocorrem só nos países ricos. A classe média do Brasil, Turquia, China ou Chile compartilha as angústias que afligem seus pares da América do Norte e Europa Ocidental. O paradoxo é que nas últimas três décadas, centenas de milhões de pessoas na Ásia, América Latina e África saíram da pobreza e hoje são parte da classe média mais numerosa da história. Mas essas pessoas também não estão satisfeitas e, por isso, protestam tanto nas urnas quanto nas ruas.

Pesquisadores e diversas instituições, como o Banco Mundial, definem a classe média como uma faixa com limites de renda muito amplos para cima e para baixo, que podem ir de 11 a 110 dólares (36 a 363 reais) diários. E as convulsões nesse segmento de população não são novas. Em 2011, escrevi que “a principal causa dos conflitos que se avizinham não será o choque entre civilizações, e sim a indignação gerada pelas expectativas frustradas de uma classe média que está em declínio nos países ricos e em ascensão nos pobres”. “É inevitável”, escrevi, “que alguns políticos dos países desenvolvidos atribuam o declínio econômico de sua classe média à decolagem de outros países”. E alertei que a prosperidade nem sempre significa maior estabilidade política.

A dimensão e a velocidade da expansão das classes médias no planeta foram realmente espetaculares. O economista Homi Kharas, especialista na classe média mundial, calcula em um estudo recente que hoje pertencem a ela 3,2 bilhões de pessoas, ou seja, 42% da população total. A cada ano se incorporam mais 160 milhões. No ritmo atual de crescimento, daqui a alguns anos, a maior parte da humanidade viverá, pela primeira vez na história, em lares de classe média ou superior.

Essa expansão tem tido alcance distinto em diferentes países. Enquanto nos EUA, na Europa, no Japão e em outras economias avançadas a classe média cresce em um ritmo de apenas 0,5% ao ano, na China e na Índia esse mercado aumenta 6% anualmente. Embora tenha alcançado uma dimensão sem precedentes em países como Nigéria, Senegal, Peru e Chile, a expansão da classe média é um fenômeno particularmente notável na Ásia. Segundo Kharas, do total de 1 bilhão de pessoas que se incorporarão à classe média nos próximos anos, a imensa maioria (88%!) viverá na Ásia.

As consequências econômicas são tremendas. Nos países em desenvolvimento, o consumo está crescendo entre 6% e 10% ao ano, e já representa um terço da economia mundial.

As consequências políticas podem ser igualmente importantes. Na Europa e nos Estados Unidos, essas consequências já são visíveis em eleições e referendos − França, Holanda, Reino Unido, Hungria, Polônia −, com a proliferação de candidatos e programas que antes eram impensáveis. É como escreveu recentemente Bill Emmott, ex-diretor da revista The Economist: “Vivemos em uma época cheia de turbulências políticas. Partidos com apenas um ano de vida chegaram ao poder na França e na enorme área metropolitana de Tóquio. Um partido com menos de cinco anos lidera as pesquisas na Itália. A Casa Branca está ocupada por um novato político, algo que causa um enorme mal-estar entre os republicanos e os democratas tradicionais”.

As turbulências políticas também se fazem notar em países de renda baixa e média que estão crescendo muito rapidamente. Cada vez que a classe média aumenta, suas expectativas e demandas também aumentam. Atores sociais que estão mais conectados, possuem maior poder aquisitivo, têm mais educação e informação e são mais conscientes de seus direitos exercem pressões imensas sobre seus Governos, que frequentemente não têm os recursos nem a capacidade institucional necessários para responder a essas demandas.

Esses países estão começando a mostrar fissuras similares às dos EUA e da Europa. No Chile − que, graças ao sucesso econômico, tornou-se há tempos um modelo para outras nações, e conta com uma das sociedades mais estáveis da América Latina − têm ocorrido protestos violentos e abstenção em massa nas urnas porque os cidadãos querem expressar sua decepção com um Governo que sentem estar em falta com eles.

Na China, os pesquisadores observaram que entre 2002 e 2011 houve uma queda drástica da confiança da classe média nas instituições legais, no Governo e na polícia, apesar de ter sido um período de forte crescimento e melhora dos programas sociais. O Governo chinês está preocupado, sem dúvida. De fato, muitos pensam que o vertiginoso crescimento do país é um pilar fundamental da estratégia de Pequim para aplacar a classe média: já que o Governo não vai lhe oferecer uma democracia constitucional, liberdade de expressão e direitos humanos universais, pelo menos possibilitará que você tenha um salário maior − ou até fique rico. O risco é que uma contração econômica prolongada poderia desencadear a agitação política que as autoridades tanto temem.

Os motivos do descontentamento no mundo em desenvolvimento −apesar da melhora dos níveis de vida − são numerosos, mas sem dúvida o acesso à informação é um fator crucial. As pessoas educadas e informadas são mais difíceis de controlar. E mais, quando bilhões podem ver em seu celular como as outras pessoas vivem, há muito mais probabilidades de que se sintam insatisfeitos com sua situação. Certamente pensam: “Trabalho tanto quanto eles e também mereço isso”. Esse “isso” podem ser salários mais altos, saúde mais acessível, melhor educação para seus filhos, igualdade, melhores serviços públicos ou liberdade de expressão. Mas a “conectividade” barata e generalizada e a revolução da informação não são os dois únicos fatores. Também contam a urbanização, as migrações, o aumento das desigualdades e até mesmo o novo ambiente cultural e as expectativas sobre a corrupção, a autoridade e as hierarquias.

O que acontecerá? A rejeição ao “mais do mesmo” e os reordenamentos políticos estão sendo inevitáveis: Donald Trump e o Brexit não são mais do que duas manifestações, impulsionadas em parte pela revolta das classes médias nos países ricos. A fúria da classe média nos países pobres e de renda média também está em ebulição. Suas consequências são imprevisíveis.

Moisés Naím é colunista do EL PAÍS e membro da Fundação Carnegie para a Paz Internacional. Seu livro mais recente é O Fim do Poder.

Os cidadãos de renda média convulsionam a política: protegendo seu status ou exigindo mais

 

Fonte: El País

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