"Brasil dá um basta ao bolivarianismo", por CLÓVIS ROSSI, na FOLHA DE S. PAULO

Publicado em 05/01/2016 14:47

O governo brasileiro rompeu nesta terça-feira (5) com a tradicional passividade em relação aos abusos da Venezuela chavista, por meio de nota oficial em que afirma claramente:

"Não há lugar, na América do Sul do século 21, para soluções políticas fora da institucionalidade e do mais absoluto respeito à democracia e ao Estado de Direito".

É uma alusão nada indireta às manobras do governo venezuelano para driblar a supermaioria (112 deputados em 167) que a oposição obteve no pleito de 6 de dezembro para a Assembleia Nacional, instalada ontem.

Ainda mais que a nota deixa claro, como Folha havia antecipado na edição desta terça (5), que "o governo brasileiro confia que será plenamente respeitada a vontade soberana do povo venezuelano, expressada de forma livre e democrática nas urnas.

Confia, igualmente, que serão preservadas e respeitadas as atribuições e prerrogativas constitucionais da nova Assembleia Nacional venezuelana e de seus membros, eleitos naquele pleito".

É uma nota inusualmente dura, mas que reflete o distanciamento que o governo brasileiro resolveu adotar em relação ao bolivarianismo, depois de inúteis tentativas de ajudá-lo a enfrentar a crise econômica e social que devasta o país (a previsão é de queda de 10% do PIB no ano passado, índice que nem países em guerra conhecem).

A nota do Itamaraty é, na prática, uma sequência à carta que a presidente Dilma Rousseff enviou a Nicolás Maduro, antes da eleição, recomendando respeito às regras do jogo, antes, durante e depois do processo eleitoral.

O "durante" até que funcionou, reconhece a nota do Itamaraty.

O problema veio depois, primeiro com a decisão do governo de recorrer a uma Justiça sabidamente controlada pelo Executivo para tentar cassar três dos 112 deputados oposicionistas, de forma a barrar a supermaioria que daria poderes extraordinários à Assembleia.

Depois, na designação de uma assembleia paralela, a Comunal, prevista nos regulamentos bolivarianos, mas em hibernação absoluta até a vitória oposicionista.

O rompimento do Brasil com os excessos do chavismo deixa Caracas isolada no Mercosul, já que o novo presidente argentino, Mauricio Macri, também se manifestou contra eles.

Na cúpula de dezembro do Mercosul, o Brasil concordou com a criação de um organismo de monitoramento de direito humanos no âmbito do grupo.

É fatal que a Venezuela caia nas malhas desse grupo, a julgar pelos seus antecedentes: entre 1995 e 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou a Venezuela 16 vezes por episódios de mortes extra-judiciais (na verdade, execuções pelos corpos policiais), e por violações da liberdade de manifestação, entre outros abusos aos direitos humanos.

A Venezuela retirou-se da corte, sob a clássica alegação de que a Organização dos Estados Americanos, à qual está subordinada a instância, é instrumento dos Estados Unidos.

O Brasil nunca se manifestou antes nesses episódios. Agora, dá um basta.

 

Brasil diz que resultado de eleições na Venezuela deve ser respeitado

Em nota divulgada na manhã desta quinta (5), o governo brasileiro expressou que deve ser "plenamente respeitada" a "vontade soberana do povo venezuelano", demonstrada nas urnas no último dia 6, quando a oposição ganhou a maioria absoluta dos assentos na Assembleia Legislativa.

A nota veio horas antes da posse da nova Assembleia em Caracas.

Com clareza, o comunicado do Itamaraty destaca que os resultados oficiais "foram divulgados e validados pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela e prontamente reconhecidos, na ocasião, por todas as forças políticas do país".

"O governo brasileiro confia que será plenamente respeitada a vontade soberana do povo venezuelano, expressada de forma livre e democrática nas urnas", diz o texto.

Na última semana, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela (TSJ) impugnou os resultados das urnas no Estado de Amazonas, sob alegação de compra de votos. Com a decisão, três deputados opositores eleitos não poderão assumir suas funções –e, sem os três, a oposição perderia a supermaioria conquistada nas urnas.

A opositora MUD (Mesa da Unidade Democrática) já disse que pretendeempossar todos os seus 112 deputados eleitos e acusa o governo Maduro de um "golpe judicial" para prejudicar a oposição.

O comunicado do Itamaraty lembra ainda que a lisura das eleições, "que contaram com expressiva participação dos eleitores, foi atestada, entre outras, pela missão eleitoral da Unasul", com apoio e participação brasileiras.

"O governo brasileiro (...) confia que serão preservadas e respeitadas as atribuições e prerrogativas constitucionais da nova Assembleia Nacional venezuelana e de seus membros, eleitos naquele pleito", diz o texto.

Em tom mais duro que o habitual, a nota destaca: "Não há lugar, na América do Sul do século 21, para soluções políticas fora da institucionalidade e do mais absoluto respeito à democracia e ao Estado de Direito."

No texto, o governo brasileiro pede que todos os atores políticos venezuelanos "mantenham e aprimorem o diálogo e a boa convivência, que devem ser a marca por excelência das sociedades democráticas".

*

Leia a íntegra da nota do Ministério das Relações Exteriores brasileiro:

"O governo brasileiro acompanha com atenção e interesse os desdobramentos das eleições legislativas venezuelanas realizadas no último dia 6 de dezembro, saúda a instalação da nova Assembleia Nacional venezuelana e insta todos os atores políticos venezuelanos a manter e aprimorar o diálogo e a boa convivência, que devem ser a marca por excelência das sociedades democráticas.

A lisura do pleito de 6 de dezembro, que contou com expressiva participação dos eleitores, foi atestada, entre outras, pela Missão Eleitoral da UNASUL, chefiada pelo ex-presidente da República Dominicana Leonel Fernández, com apoio e participação brasileiras. Seus resultados oficiais foram divulgados e validados pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela e prontamente reconhecidos, na ocasião, por todas as forças políticas do país.

Como afirmou em outras ocasiões, o Governo brasileiro confia que será plenamente respeitada a vontade soberana do povo venezuelano, expressada de forma livre e democrática nas urnas. Confia, igualmente, que serão preservadas e respeitadas as atribuições e prerrogativas constitucionais da nova Assembleia Nacional venezuelana e de seus membros, eleitos naquele pleito.

Não há lugar, na América do Sul do século 21, para soluções políticas fora da institucionalidade e do mais absoluto respeito à democracia e ao Estado de Direito". 

 

Polícia tenta barrar acesso de grupo da oposição à Assembleia venezuelana

Policiais da Venezuela tentaram barrar a entrada de um grupo de 20 deputados da oposição ao presidente Nicolás Maduro à sede da Assembleia Nacional, onde eles tomam posse nesta terça-feira (5).

Os parlamentares pertenciam ao Primeiro Justiça, principal partido da coalizão opositora Mesa de Unidade Democrática, e que é chefiado pelo ex-presidenciável Henrique Capriles. Depois da confusão, os deputados conseguiram entrar.

Segundo relatou à Folha o deputado Daniel Guzmán, os policiais bloquearam o acesso sob a justificativa de que eles não tinham pedido credenciamento. Um dos parlamentares tentou cortar a passagem, o que gerou tumulto.

Guzmán disse ter sido agredido pelas forças de segurança e mostrou à reportagem um sangramento em um dedo da mão e um botão arrancado de seu terno.

"Isso mostra o que vem pela frente. Não nos deixaram passar hoje e não medirão esforços para atrapalhar o nosso trabalho, mas estamos conscientes da nossa responsabilidade e do apoio popular que obtivemos", disse.

Do lado de fora da sede, milhares de aliados da oposição recebiam os deputados com gritos e aplausos. Parlamentares chavistas foram vaiados, entre eles Hugo Carvajal, que tem mandado de busca internacional por tráfico de drogas.

Esta será a primeira vez em 16 anos que a oposição terá o controle do Legislativo. Dos 167 deputados eleitos no pleito de 6 de dezembro, 112 são adversários de Nicolás Maduro, enquanto 55 são chavistas.

Isso daria a oposição a maioria qualificada, que permite, entre outras coisas, emendar a Constituição, destituir altos funcionários e aprovar a Constituinte. Na semana passada, porém, a Justiça impugnou três deputados opositores, o que tirou os dois terços das cadeiras.

TENSÃO

A cerimônia foi precedida pela tensão entre militantes chavistas e da oposição. Na tarde de segunda (4), aliados de Maduro impediram o acesso do opositor Henry Barros Allup ao prédio administrativo da Assembleia Nacional.

Barros Allup, que pede a renúncia do presidente, será o presidente da Assembleia Nacional, substituindo o chavista Diosdado Cabello. À noite, os aliados do governo fizeram uma vigília em frente ao prédio do Parlamento.

Pela manhã, foi possível ver pichações de defesa do chavismo e que chamavam Barros Allup de fascista. Pouco depois, milhares de policiais começaram a cercar as ruas próximas à Assembleia Nacional.

 

ANÁLISE

Caracas deixa Brasília alarmada

(pOR CLÓVIS ROSSI, COLUNISTA DA FOLHA, ISABEL FLECK, DE SÃO PAULO, E FLÁVIA FOREQUE, DE BRASÍLIA)

O governo brasileiro está acompanhando com tanta preocupação o ambiente de tensão política na Venezuela que já estuda um pronunciamento cobrando "apaziguamento geral", conforme a Folhaouviu no Planalto.

O pronunciamento será, imagina o Itamaraty, "bem calibrado", para evitar habitual reação estapafúrdia do chavismo quando é criticado.

  Fernando Bizerra Jr./Efe  
Dilma Rousseff recebe presidente venezuelano, Nicolás Maduro, no Itamaraty, em julho de 2015

Mas o governo brasileiro já não esconde a decepção com o governo de Nicolás Maduro, a ponto de pensar, em princípio, em cobrar, para o "apaziguamento geral", que seja respeitado o resultado eleitoral.

É a linguagem que tem sido usada por críticos e opositores do regime venezuelano para defender a posse da nova Assembleia Nacional com os 112 deputados oposicionistas eleitos, e não com a cassação de três deles pela Justiça —sabidamente controlada pelo chavismo—, com o que a oposição perderia a supermaioria conquistada nas urnas.

Mas, por cautela, o governo brasileiro considera que é preciso tanto examinar se há base legal na decisão da Justiça como também evitar um "pré-julgamento".

O Itamaraty criou uma espécie de telefone vermelho com o embaixador em Caracas, Ruy Pereira, e por ele tem recebido sinais preocupantes, tanto de parte do governo como da oposição.

Desta —em especial, do próximo presidente da Assembleia, Henry Ramos Allup, incomodam as seguidas sugestões de renúncia do presidente Nicolás Maduro.

O desencanto com o governo deve-se à constatação de que a Venezuela tem profundos problemas estruturais e conjunturais, que há muito tempo deveriam ter sido enfrentados.

O governo brasileiro fez, "amigavelmente", sugestões a respeito, inclusive de técnicos que poderiam auxiliar Caracas, mas Maduro preferiu insistir na tese de que enfrenta uma "guerra econômica", suposta causa de todos os problemas.

Nem os marxistas da academia bolivariana acreditam na tese, conforme fica claro em entrevista de Manuel Sutherland, responsável editorial da Associação Latinoamericana de Economistas Marxistas e professor de política econômica na Universidade Bolivariana da Venezuela.

"O governo continua com uma ideia equivocada da crise e inventa a tese da guerra econômica. Não tem o menor amparo prático nem empírico", disse Sutherland em recente entrevista ao sítio socialista "Sin Permiso".
Acrescenta algo que é o cerne da preocupação também em Brasília: "Se insistirem com o tema da guerra econômica, é pouco provável que consertem todos os problemas mais difíceis que a nação enfrenta".

Em Brasília, a ideia do "apaziguamento geral", acha o governo, é do interesse também da oposição. Sem ele, não há como enfrentar a gravíssima crise do país.

 

Maduro tira do Legislativo o poder de indicar a diretoria do Banco Central

Horas antes da cerimônia de posse dos membros da Assembleia Nacional, dominada pela oposição, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, tirou do Legislativo o poder de indicação da diretoria do Banco Central do país.

Para mudar a regra, Maduro usou a Lei Habilitante, que lhe deu poderes temporários de legislar até a última quinta-feira (31). A decisão foi publicada no diário oficial de quarta (30), mas só foi divulgada pela imprensa nesta terça (5).

  4.jan.2016/Reuters  
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, se reúne com políticos chavistas no Palácio de Miraflores

Com a mudança, caberá ao mandatário indicar o presidente e os seis diretores do Banco Central sem ter que submeter os nomes a aprovação prévia da Assembleia Nacional. Um dos membros da diretoria será o ministro das Finanças do país.

Maduro também limitou o acesso a informações econômicas e documentos secretos e confidenciais do Banco Central. Todas as solicitações, inclusive de parlamentares, terão que ser deferidas ou indeferidas pelo presidente do Banco Central.

O Executivo ainda poderá ordenar a suspensão temporária da divulgação dos dados "pelo período pelo qual existam situações externas e internas que representam uma ameaça à segurança nacional e à estabilidade econômica".

Isso prejudicará a capacidade do Legislativo de alterar a política econômica do país, que passa por uma crise financeira e de desabastecimento. A solução da crise foi uma das principais promessas de campanha eleitoral da oposição.

Maduro considera que a Venezuela passa por uma "guerra econômica", liderada por empresários e opositores locais e que teria o apoio dos Estados Unidos e de detratores do chavismo, como o ex-presidente colombiano Álvaro Uribe.

O mandatário afirma também que a queda brusca do preço do petróleo, principal produto venezuelano, no mercado internacional foi provocada pelos americanos para prejudicar o país e outras nações contrárias a Washington.

Para conter a crise de desabastecimento, Maduro limitou a venda de artigos em falta, provocando filas nos mercados, e fechou a fronteira com a Colômbiacomo uma forma de evitar o contrabando de produtos.

POSSE

Nesta terça-feira, tomam posse os 167 deputados venezuelanos eleitos em 6 de dezembro. Pelos resultados do pleito, a oposição obteve 112 cadeiras e o chavismo, 55, o que daria maioria qualificada aos adversários de Maduro.

Na semana passada, no entanto, a Justiça impugnou quatro deputados do Estado de Amazonas —três opositores e um chavista. Se a decisão judicial for mantida, a oposição perde os poderes de ter mais de dois terços do Parlamento.

Dentre eles, estão emendar a Constituição, aprovar Constituinte ou destituir altos funcionários. Na segunda, chavistas impediram a entrada do opositor Henry Ramos Allup no prédio administrativo da Assembleia Nacional. Ele deverá ser o novo presidente do Parlamento. 

 

 

Fonte: Folha de S. Paulo

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