Rio Grande do Sul: Mais de 100 dias após as enchentes, pecuária gaúcha sofre desde escassez de recursos para reconstrução até dificuldades com pastagens

Publicado em 22/08/2024 15:00 e atualizado em 22/08/2024 17:20
Demandas financeiras, segundo lideranças, são para reconstrução de estruturas, reformas, anistia de dívidas, além da necessidade de recuperação de solo

As chuvas intensas que caíram sobre o Rio Grande do Sul entre o final de abril e o início de maio afetaram, de alguma maneira, 478 dos 497 municípios do Estado, de acordo com dados da Defesa Civil. Informações da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) do Rio Grande do Sul dão conta de que as perdas, no entanto, não se distribuíram uniformemente pelo Estado nem ocorreram com a mesma intensidade: em algumas regiões, os danos foram muito expressivos, como nos vales do Taquari e do Caí (bovinos de leite, suínos e aves), no Vale do Rio Pardo (bovinos de corte e leite), na região da Quarta Colônia da Imigração Italiana (bovinos de leite) e no Vale do Paranhana e Encosta da Serra (bovinos de corte e leite).

Entretanto, em comum, o que os setores produtivos da pecuária gaúcha têm são as demandas, que perpassam, principalmente, pelo acesso a recursos para poderem reconstruir estruturas que foram danificadas, compra de equipamentos perdidos, reposição de animais mortos nas enchentes, ou até mesmo perdão de dívidas ou financiamentos contratados anteriormente. 

Especificamente em relação ao setor de pecuária leiteira e de corte, mais do que questões financeiras, as dificuldades com o restabelecimento das pastagens têm atrasado ciclos de produção, com a dificuldade de manter as sementes no solo com as chuvas que se repetiram até junho e também devido a perdas de qualidade no solo. 

Em nota ao Notícias Agrícolas, a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) destacou que o Sistema CNA destinou R$ 100 milhões ao Estado do Rio Grande do Sul, e que “estamos auxiliando na retomada do trabalho de muitos produtores rurais no nosso estado, desde auxílio na doação de comida aos animais, na limpeza das propriedades, análise do solo e doação de eletrodomésticos para as famílias atingidas.

Paralelo a este trabalho buscando aquela linha especial junto ao Governo Federal desde 07 de maio, pedindo 15 anos de prazo, 2 anos de carência e juros de 3% ao ano”.

PRODUÇÃO DE LEITE MENOR E PECUARISTAS DESISTINDO

Levantamento da Emater, divulgado pela Farsul, aponta a perda de 2.451 cabeças de gado leiteiro em função das fortes chuvas, e de 9.625.918 milhões de litros de leite. As perdas do produto foram em função tanto do falecimento de animais, dificuldade de ordenhar as vacas com constância devido ao estrago nas instalações, quanto na logística para retirar o leite das propriedades rurais e levar para os laticínios. 

Marcos Tang, presidente da Associação dos Criadores de Gado Holandês do Rio Grande do Sul (Gadolando), explica que, passado o choque inicial, a principal dificuldade ainda está relacionada aos danos na produção de alimento para os animais, já que houve impacto não só na safrinha, mas em toda a semeadura de pastagem. 

“Teve que ser semeado de novo onde teve condições. Esse é um momento de reconstrução das nossas áreas de pastagens, que são as mesmas que receberão em setembro, outubro e novembro o plantio do milho. O solo fértil se perdeu em muitas áreas. Foram três anos de estiagem e depois essa enchente, então é uma sequência de problemas de produção de alimento, e a compra fica cara”, afirmou Tang. 

Um ponto trazido pelo dirigente da Gadolando foi a necessidade e a possibilidade de alguns pecuaristas leiteiros de conseguirem retomar, de alguma maneira, as atividades de maneira mais imediata. “O leite tem uma nuance específica, porque são duas ordenhas diárias, então ele precisava se adequar o mais rápido possível. A maioria pediu empréstimo para comprar gerador. Agora, tem essas ajudas (financeiras) que precisam sair o mais rápido possível. Precisamos de fomento e de maneira desburocratizada. Está na hora de ter como antigamente aquele técnico que vai na fazenda e faz a foto, e conversa em como cada um foi atingido. Se nós formos todos os dias nas agências financeiras, a gente deixa de cuidar das vacas”.

Segundo Tang, o setor leiteiro já passava por dificuldades há uma década, situação acentuada pela crise nos anos de 2022 e 2023. Em terras gaúchas, de acordo com ele, quem não havia deixado a atividade neste período e não conseguiu, de alguma maneira, se manter após as enchentes, esta tragédia foi “a pá de cal”.

Darlan Palharini, secretário-executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios do RS (Sindilat/RS), destaca que a instituição enviou solicitação ao Governo do Estado pedindo a liberação de forma imediata do Fundo de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Leite do Rio Grande do Sul (Fundoleite), mas de acordo com ele, ainda não houve a liberação destes recursos, que seriam de aplicação de fundo perdido. 

“Um dos gargalos é a recuperação das pastagens e o fornecimento de alimentação dos animais. Esse recurso poderia estar sendo utilizado para esta finalidade. Tem produtores que estão fazendo gradualmente a reparação das pastagens, quem teve condições, e quem teve perdas nas instalações, isso já foi reparado. Se nós tivermos uma questão de normalidade de chuvas no verão, tem pastagens e alimentação que, dentro de 60 ou 90 dias, já está apta a ser utilizada para alimentação dos animais. Outras, que são mais perenes, precisam de uns 6 meses. Mas a recuperação de solo, que é algo determinante, são ações que levam mais de um ano, por exemplo”, disse Palharini. 

O presidente do Sindilat aponta que, aos poucos, a produção local de alimentos para o gado está sendo retomada, e se a entidade conseguir recursos para comprar o que falta de fora do Estado e doar aos produtores, pode ajudar em função dos custos de produção. 

“Tem produtor que está tendo que comprar fora e o custo de produção dele aumentou. Seria bom para melhorar a competitividade dos produtores. O que temos mais ou menos analisado é que o período de chuvas ocorreu justamente no período em que entraria no período de oferta de matéria prima e que foi afetado. Agora não sabemos efetivamente o quanto vai ser afetado pela produção. O normal seria que a produção de leite crescesse de 5% a 6% ao ano, e a perspectiva para este ano seria de 2% a 3% no máximo”, afirmou. 

ABATE DE ANIMAIS VINDOS DE FORA

Os impactos causados nas pastagens também atrapalharam o ciclo da bovinocultura de corte gaúcha, que representa entre 6% a 8% da produção nacional de carne bovina, de acordo com Ivan Faria, vice-presidente do Instituto Desenvolve Pecuária.

Faria retoma um episódio de fortes chuvas que atingiram parte do território gaúcho, especialmente o Vale do Taquari, ainda em setembro do ano passado, e retoma as fortes precipitações que impactaram todo o Estado, com ou sem formação de enchentes. “As chuvas em maio deste ano destruíram as pastagens de inverno e o banco de sementes do Rio Grande do Sul. Ainda não são prejuízos mensuráveis os custos de produção em relação à alimentação, porque são relacionados à cria, que vai ser deficitária, e recria, porque a estação de monta dos animais também vai ser deficitária”, afirmou.

O vice-presidente do Instituto pontua que a  pecuária de corte gaúcha foi tão afetada que, atualmente, o Estado está consumindo apenas 15% da carne oriunda da produção e abate no Rio Grande do Sul. Os outros 85% da carne são de animais que são trazidos de fora para serem abatidos no Rio Grande do Sul, ou de carcaças que são trazidas para serem desossadas nos frigoríficos do Estado. 

“Pouco mais que nada foi feito para resolver. O que se tem é muita promessa e muito pouco (em recursos) chegou ao Rio Grande do Sul para reconstruir os danos da enchente, como moradias, e imagina então a demora para chegar na pecuária de corte. O Estado está quebrado, o Governo Federal não fez nada até agora, não existe nenhum plano efetivo de renegociação das dívidas do setor pecuário. Até agora o que houve foi uma escala pequena para agricultura familiar e alguns casos específicos de Pronampe”. 

NA AVICULTURA, ALÉM DAS ENCHENTES, UM VÍRUS NO CAMINHO

A avaliação do prejuízo no setor avícola do Rio Grande do Sul devido às enchentes, o prejuízo estimado foi de R$ 247 milhões, contabilizando danos em estruturas de indústrias, aviários, perdas de animais, estoques, embalagens, entre outros. As informações são de José Eduardo dos Santos, presidente executivo da Associação Gaúcha de Avicultura (Asgav).

Atualmente, o Rio Grande do Sul é o terceiro Estado brasileiro no ranking de produção nacional de carne de frango e o terceiro em exportação, com uma média de 60 mil toneladas embarcadas por mês.

Entretanto, de acordo com Santos, para além dos prejuízos já contabilizados, o Estado pode ter diminuição nas exportações de carne de frango. A razão é porque soma-se à tragédia das chuvas o aparecimento de um foco de Doença de Newcastle em uma granja comercial em Anta Gorda, no Vale do Taquari, uma das regiões mais afetadas pelas enchentes. 

Em entrevista ao Notícias Agrícolas quando da confirmação do caso, em 17 de julho, o analista da Safras & Mercado, Fernando Henrique Iglesias explicou que “as enchentes que devastaram o estado gaúcho em maio provocaram brechas sanitárias, produziram vulnerabilidades, o que explica a ocorrência”.

O presidente da Asgav afirma que, em uma visão otimista, as exportações neste ano da carne de frango gaúcha serão equilibradas, mas, levando em conta as enchentes, bloqueio de Doença de Newcastle, podemos ter uma redução de 2% a 3% nas exportações.

Para a retomada plena do setor avícola gaúcho, José Eduardo dos Santos afirma, como representantes de outros setores, que ainda faltam recursos financeiros.

“Algumas indústrias informam que ainda não tiveram acesso total aos recursos devido a questões burocráticas de cadastro e de avaliação do desempenho econômico antes da catástrofe. Nem todas conseguiram ter acesso aos recursos para se reestruturar, sendo pequenas, médias ou grandes empresas. Pedimos, por exemplo, que o fundo garantidor fosse uma garantia para empresas que faturam acima de 300 milhões de reais por ano, junto ao Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e não tivemos essa condição. O BNDES ofereceu algumas condições, como juros reduzidos, carência e repactuação de dívidas. Alguma coisa facilitou para o setor, mas não na totalidade”, informou. 

Para o presidente da Asgav, o setor é resiliente, está se reerguendo aos poucos, mas ainda há uma jornada para caminhar. “O Governo do Estado anunciou algumas ajudas, ainda buscamos recursos do Governo Federal, mas é fato que as enchentes causaram uma ruptura no fluxo comercial, dificultando a chegada de rações nas granjas, de aves aos frigoríficos, de carne de frango no varejo, e até mesmo os próprios clientes que foram afetados e que não conseguiram vender e ficaram inadimplentes. Tivemos ainda o agravante da Doença de Newcastle, que ainda nos causa alguns embargos”, disse.

PERDA NA SUINOCULTURA FOI PONTUAL, MAS ‘PARA QUEM PERDEU TUDO, JÁ É MUITO’

O levantamento da Emater aponta para a perda de cerca de 14.800 suínos durante as enchentes no Rio Grande do Sul. Valdecir Folador, presidente da Associação de Criadores de Suínos do Rio Grande do Sul (Acsurs), conta que a estimativa de prejuízo no setor suinícola gaúcho é de cerca de R$ 50 milhões diretamente no campo, e em torno de 30 mil metros quadrados de pocilgas destruídas total ou parcialmente.

Folador detalha que, entre as principais regiões afetadas no Estado estão a Serra Gaúcha, Vale do Taquari e Vale do Caí, o que compreende cerca de 25% da produção suína do Estado. Atualmente o Rio Grande do Sul é o 3º estado que mais produz a proteína e o 2º lugar nas exportações.

“Pelo tamanho da suinocultura gaúcha, os danos mais severos foram pontuais, é pontual, mas para quem perdeu tudo foi muito. Nós podemos dividir os gargalos em dois: o produtor atingido e que perdeu infraestrutura total, ou parcial, mas que conseguiu reformar a granja, e aqueles que não têm condição financeira. Para suinocultura geral no Rio Grande do Sul como setor, aquilo ali não é nada”, disse.  

Entre as possibilidades de resolução de problemas no setor, Folador aponta que, para aqueles que foram atingidos com severidade e que têm financiamentos em aberto, que sejam olhados com mais atenção. Isso porque são suinocultores que terão maior dificuldade de negociação dentro do banco, e não tendo outra fonte de renda, corre até o risco de o banco tomar as propriedades.

Entre os dias 19 e 23 de agosto, sempre às 16h (horário de Brasília), o Notícias Agrícolas trará cinco reportagens especiais sobre a atual situação do agronegócio do Rio Grande do Sul e do produtor gaúcho. Acompanhe!

Por: Letícia Guimarães
Fonte: Notícias Agrícolas

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