Plantadas 10 mil sementes de soja em frente a Museu de Curitiba para protestar contra o agronegócio
A pequena lavoura faz parte de uma das exposições da Bienal Internacional de Arte Contemporânea 2018 - Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo
A artista argentina Dolores Cáceres, certamente cheia de boas intenções, foi autorizada a plantar dez mil sementes de soja em frente ao Museu (estatal.) Oscar Niemeyer, em Curitiba. O plantio é, para todos os efeitos, uma obra de arte que pretende criticar o agronegócio e o plantio de soja nos países da América do Sul. Brasil e Argentina, aliás, são os dois maiores produtores de soja do continente e o segundo e o terceiro produtores mundiais, respectivamente. Juntos, colhem cerca de 40% mais soja do que os Estados Unidos, primeiro produtor mundial.
Convém fazer à artista argentina, bem como à curadoria do museu, algumas perguntas sobre a provocativa obra. E aqui nem vale a pena entrar na questão estética da coisa, embora eu pudesse discorrer longamente sobre a diferença entre manifestação artística e o panfleto político-partidário-ecochato. Mas deixemos isso para outra hora.
A primeira pergunta que eu faria à senhora Cáceres é bem simples, embora abrangentíssima. Será que essa senhora é capaz de viver um só dia sem consumir soja? Ela certamente acredita ser possível, mas não é. Ao contrário do que muitos acreditam, a soja não está apenas no óleo das deliciosas frituras ou no tofu e no shoyo. Nem tampouco (na hipótese de a artista ser também vegetariana) na ração daquela suculenta picanha bovina ou suína.
A soja está presente, por exemplo, em várias tintas de materiais impressos. Não duvido que o próprio material da Bienal Internacional de Arte Contemporânea do MON, mostra da qual a plantação/panfleto faz parte, seja impresso com tinta à base de soja. Que, por sinal, é melhor para a reciclagem.
A senhora Cáceres, bem como todos os que aplaudem esse tipo de manifestação artística (muitas aspas, senhor editor), também consomem soja na forma de cosméticos, remédios e até na composição da espuma do colchão que possibilita aquela soneca tão necessária depois de plantar dez mil sementes de soja.
Velas levam soja em sua composição. O giz-de-cera que os artistas mirins que enchem o vão do MON aos sábados usam contém soja – e, por isso, são mais seguros para as crianças, além de economizarem petróleo.
E por aí vai. Será que a senhora Cáceres sabe disso, não sabe ou finge não saber porque esse tipo de conhecimento é prejudicial para sua carreira?
A segunda pergunta a ser feita diz respeito, sim, à alimentação, já que a maior parte da soja produzida no mundo é transformada em ração para animais – ou aquilo que os nutricionistas adoram chamar de “proteína”. Mesmo supondo que a artista (e os leitores) seja vegetariana ou tenha pena das vaquinhas e dos porquinhos (quem não tem?), vale indagar e se indignar: sem a soja e a revolução alimentar que ela representou nas últimas décadas, como a senhora Cáceres acha possível alimentar sete bilhões de pessoas? À base de produtos orgânicos ou de vento?
Ou será que a senhora Cáceres é daquelas que consideram imoral tanto a existência quanto a sobrevivência dessa gente toda no nosso querido planeta Terra? Sem a soja e seus derivados, carne seria um produto caríssimo, condenando sobretudo os mais pobres à desnutrição. Mas quem se importa com os pobres se, para artistas contemporâneos de talento duvidoso, tão mais bonito (e rentável) é
brigar contra a realidade?
A terceira pergunta que eu faria à senhora Cáceres é um pouco mais difícil. Acho que ela precisará consultar alguns livros para me responder: o que a senhora faria com todas as pessoas que hoje em dia vivem, direta ou indiretamente, da renda da soja?
Só no Brasil, a soja movimenta R$ 200 bilhões. E olhe que estou usando dados desatualizados. Sete milhões de pessoas trabalham direta ou indiretamente com o produto por aqui. Sendo a Argentina o terceiro produtor mundial do grão, atrás apenas dos Estados Unidos e do Brasil, mas com uma área bem menor, não é difícil perceber o imenso valor social da soja por lá também. Para se ter uma ideia, em 2017, o complexo soja, composto por soja em grãos, farelo e óleo e carro-chefe das exportações da Argentina, representou 16% de todas as vendas externas do país, com faturamento de mais de US$ 9 bilhões.
À curadoria do MON também tenho perguntas. Primeiro, as mais óbvias: quem paga pela obra da artista e quem autorizou o plantio da soja num espaço público? Depois, a mais capciosa: sendo o museu estatal, isto é, de propriedade de todos os paranaenses, o segundo maior produtor de soja, a quem interessa esse tipo de panfleto antiagronegócio?
Entendo que artistas hoje em dia não estejam interessados no belo, muito menos na Verdade. Entendo que o discurso rebelde ainda atraia as massas ignaras, incapazes de fazer uma pesquisa simples na Wikipedia. Entendo que a senhora Cáceres sinta prazer com o aplauso fácil de quem nunca viu um “pé de soja” e de quem acredita que a agricultura orgânica é viável. E, por fim, entendo que ela precise da renda de suas oh tão subversivas manifestações artísticas para comprar produtos à base de soja necessários para a sobrevivência.
O que não entendo é a chancela estatal a este tipo de discurso esteticamente questionável, infantil e sobretudo imoral. (Paulo Polzonoff, na GAZETA DO POVO/CURITIBA).
Desestatização e distribuição de renda, por Celso Ming no Estadão
O presidente eleito vem pregando urgência na privatização de empresas estatais. Seu programa eleitoral já denunciava a excessiva existência de estatais no Brasil, nada menos que 147, apenas as controladas pela União. Dessas, 18 dependem de subvenções do Tesouro para garantir custeio e aumento de capital. Como mostra o Boletim de Participações Societárias da União, em apenas 5 anos (de 2012 a 2017), o dispêndio total do Tesouro foi de R$ 142,5 bilhões. E o retorno, de apenas R$ 95,9 bilhões.
Privatizar não é apenas tentativa de garantir um mínimo de qualidade na administração pública. Deve se ver, também, como importante política de rendas, algo que a esquerda, que tanto prega a necessidade de redistribuir a renda, não leva em consideração.
Vargas começou com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, da Petrobrás e da Companhia Vale do Rio Doce. Dava início ao processo de industrialização. Mas a mais impressionante avalanche estatizante foi no regime militar, principalmente no período Geisel. Juscelino, notável desenvolvimentista, preferira incentivar o setor privado, especialmente a indústria automobilística.
Hoje, grande parte das discussões entre privatistas e estatizantes ocupa terreno falsamente ideológico. Nesses termos, o debate está esvaziado, especialmente depois que, em todo o mundo, os governos, antes comunistas, abandonaram as tentativas de desenvolvimento calcadas na propriedade estatal dos meios de produção. A China privatizou praticamente todo o setor produtivo (menos os bancos). A Rússia e a antiga Alemanha Oriental atiraram-se a uma privatização quase desesperada para salvar a economia, como marinheiros que, no meio da tempestade, atiram cargas do navio ao mar para evitar o naufrágio.
No Brasil, os principais defensores do Estado economicamente forte não se apegam mais ao campo ideológico. Usam, sim, carcomidos argumentos ideológicos, mas, na prática, agarram-se a privilégios corporativistas.
Os neoliberais defendem a privatização porque entendem ser um sistema mais eficaz para aumentar a produção, criar empregos e desenvolver o País. Mas essa deixou de ser exigência meramente ideológica. Se não por outra razão, passou a ser preciso privatizar e incentivar a propriedade privada dos meios de produção porque o Estado, quebrado, não consegue capitalizar as estatais para que se mantenham à tona d’água.
A esquerda brasileira, tão míope quando se trata da adoção de políticas econômicas, deveria entender que a estatização, em especial no regime militar, foi altamente concentradora de renda.
A capitalização das estatais foi feita por meio de apropriação da poupança popular. Os sucessivos governos recorreram à disparada da dívida, ao aumento de impostos, à utilização de poupança compulsória (como o PIS-Pasep e como o Fundo de Amparo ao Trabalhador) ou, simplesmente, a transferências do Tesouro, como as que fez de repasses ao BNDES, ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica Federal. Nessas condições, foram desviados recursos que normalmente se destinariam à saúde, à educação e a outras funções típicas do Estado. Foram garfadas que dilapidaram ainda mais a renda e o bem-estar do trabalhador.
E não ficou apenas nisso. Para evitar a derrocada, o governo emitiu moeda, produziu enorme inflação, que achatou o poder aquisitivo do trabalhador, avançou sobre a correção monetária e sobre o rendimento das cadernetas e segurou o salário mínimo. Em apenas dez anos (entre 1964 e 1974), a perda do valor de compra do salário mínimo foi superior a 40%.
Sempre que uma estatal deu errado e resvalou para a insolvência, o prejuízo foi socializado. As tarifas de energia elétrica, por exemplo, subiram 31,4% nos últimos quatro anos para cobrir rombo da Eletrobrás e de suas subsidiárias. Se mais recursos do setor público tiverem de ser usados para capitalizar a Eletrobrás, para construir novas centrais de energia, refinarias, gasodutos, distribuidoras, ferrovias, estradas de rodagem, portos, aeroportos, empresas de mineração e tanta coisa mais, a concentração de renda tenderá a ficar ainda maior.
É por isso que precisa ser dito e repetido, como batidas de tambor: se é para levar a sério um processo de redistribuição de renda, então é preciso olhar para a privatização dos meios de produção. E, assim, deixar que o Estado cuide do que deveria e deixou de cuidar: da saúde, da educação, da segurança e da fiscalização do jogo econômico.
Um outro Ministério da Agricultura, por Roberto Rodrigues
Dentro do novo arranjo administrativo que a equipe de transição do futuro presidente da República está preparando, vem sendo organizado um Ministério da Agricultura (Mapa) muito mais empoderado do que o atual.
A mais importante novidade será a incorporação ao Mapa da estrutura que cuidará da agricultura familiar.
De fato, ter mais de um ministério cuidando da agropecuária não fazia sentido. A grande importância da agricultura familiar e as políticas específicas exigidas para este setor não seriam suficientes para a divisão administrativa criada pelo governo FHC. Seria como se existisse um Ministério da Saúde para cuidar de planos de saúde nos pequenos municípios e outro para as demais responsabilidades inerentes ao tema. Não existem “advogados grandes” e “advogados familiares”: todos os graduados em Direito são advogados, mais conhecidos ou menos notáveis, mas são todos profissionais do mesmo ramo, cada qual com sua especialidade.
Assim são os agricultores, uns pequenos, outros médios, outros grandes, mas sua profissão é sempre a mesma: a produção agropecuária e florestal. Claro que suas demandas são diferentes, suas capacidades de absorção de tecnologias inovadoras são distintas, e as ações de governo devem ser compatíveis com tal diversidade. Mas a duplicidade ministerial, além de elevar custos para a sociedade, acarretava disputas por poder e por recursos orçamentários e ainda viabilizava uma dicotomia ideológica indesejável. É lógica, portanto, a criação de uma Secretaria de Agricultura Familiar na nova estrutura do Mapa, e ainda mais sendo acoplada ao setor do cooperativismo, instrumento essencial para o desenvolvimento dos pequenos produtores rurais.
Outra ótima notícia é a volta ao Mapa do setor pesqueiro e da aquicultura, que constituíram um ministério específico no governo Lula. É certo que este segmento tem um extraordinário potencial no nosso País, seja por causa de nossos mais de oito mil quilômetros de costa marítima, seja por causa de nossos “farturosos” rios e lagos no interior. Podemos produzir peixes de água doce em profusão, e já estamos fazendo isso, ou montar uma poderosa frota pesqueira no mar, mas isso não seria razão para um ministério exclusivo. Se fosse, porque não ter um ministério para a soja, outro para as culturas permanentes, outro para carnes e até outro para mandioca, reverenciada no governo anterior...
Uma novidade muito boa é a criação de uma Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, que tratará de regularização fundiária (inclusive na Amazônia), do cadastramento das propriedades rurais, e do reordenamento agrário. Terá grande importância, e o tema da reforma agrária já fez parte do Mapa no passado não tão distante (até os anos 80 do século passado), e de lá saiu por razões políticas. Esta separação foi ruim, até porque os organismos que cuidavam dos assuntos fundiários nem sempre se alinhavam à política agrícola.
Será criada uma Secretaria de Inovação, Desenvolvimento Rural e Irrigação, destinada a apoiar avanços tecnológicos com ênfase na sustentabilidade, e que dará atenção ao semiárido. Super justo cuidar desse imenso território do Nordeste, muito populoso, e que tem ficado à margem de políticas sistêmicas de desenvolvimento, em que aspectos técnicos como a irrigação ganharão grande incremento.
As demais secretarias, como a de Defesa Sanitária (que cuida de um dos principais gargalos de nossa produção), a de Política Agrícola (responsável pela definição dos instrumentos de apoio do governo ao campo) e a de Relações Internacionais (que se soma ao Itamaraty nas disputas comerciais, inclusive com o trabalho eficiente de nossos adidos agrícolas a embaixadas selecionadas) serão mantidas e fortalecidas.
E toda a área estratégica ficará diretamente ligada ao gabinete da futura ministra.
São boas novas. E podemos acreditar que outras instituições como a Funai, o Ibama e a Anvisa, nem sempre afinadas com a visão do Mapa, também se alinhem a ele, sob a orientação do futuro presidente da República.
* EX-MINISTRO DA AGRICULTURA E COORDENADOR DO CENTRO DE AGRONEGÓCIOS DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
Um outro Ministério da Agricultura