"O fim e o princípio", editorial da FOLHA

Publicado em 12/05/2016 08:21
Folha de S. Paulo

Configurada a expressiva maioria de senadores favoráveis ao processo de impeachment, o governo Dilma Rousseff (PT) começa, a partir desta quinta-feira (12), a fazer parte do passado. Com a presidente, afasta-se do proscênio um sistema político, ideológico e administrativo que, nos últimos anos, se afundou no próprio fracasso.

Cercado de questionamentos técnicos, e sem incidir sobre a honorabilidade pessoal de Rousseff, o embasamento do impeachment contou menos do que a situação econômica e política do país.

A presente derrocada não atinge apenas a figura da presidente; abate-se sobre todo o conglomerado petista. Suas raízes vêm de longe. Após um período de bonança, o partido reagiu com velhos vícios à conjuntura desfavorável iniciada com a crise de 2008.

Num paradoxo, ao mesmo tempo em que recorria a mofados preconceitos doutrinários, o petismo abandonava de vez sua resistência ética, mergulhando sem escrúpulos na lama pragmática.

A passagem de Dilma pelo Palácio do Planalto caracterizou-se por um complexo insustentável de erros. Aliou-se ao fisiologismo, mas sem obter com isso base parlamentar. Apostou no populismo, embora sem se comunicar com o eleitorado. Adotou ares de competência, incorrendo em falhas técnicas descomunais, e seguiu estratégias erráticas com férrea teimosia.

Foi, ao que tudo indica, pessoalmente honesta e refratária ao toma lá dá cá, mas navegou sem remorsos num oceano de corrupção.

Não se trata, em todo caso, de um simples julgamento de sua conduta. O modelo que Dilma representou com singular inabilidade provou-se contraditório: regressivo e cínico, enquanto se fazia de progressista e imaculado; imobilista e acomodatício, enquanto se fazia de reformador e fiel a princípios.

O retrato não corresponde apenas a Dilma Rousseff. É também o de Lula, é o do PT, é o de tantos que, desde o mensalão, adiaram seu encontro com a verdade.

Se deixaram um preocupante quadro de terra arrasada para Michel Temer (PMDB), a conjuntura favorece, ironicamente, um clima de expectativas que, em outras circunstâncias, o peemedebista teria dificuldades em inspirar.

É logo nestes primeiros meses que se abre a oportunidade para tomar medidas de amplo fôlego e indiscutível necessidade, tanto na área econômica quanto no campo da reforma política.

Por outro lado, Temer chegará ao cargo sem respaldo popular. Dispõe de expressiva maioria no Congresso, mas esta se marca por notórias tendências ao fisiologismo; vários de seus aliados, além disso, expõem-se às suspeitas e aos escândalos da Operação Lava Jato.

O afastamento de Dilma Rousseff não suspende o risco de novas crises. Só o tempo responderá às incertezas que se colocam —e esse tempo nunca pareceu tão curto.

 

Carta aberta ao presidente Temer

ROGÉRIO CHEQUER

Senhor presidente Temer,

O Brasil está prestes a assistir a um momento histórico: o afastamento da presidente da República. Mais importante ainda, um afastamento originado e motivado pela sociedade civil brasileira.
Há 24 anos, a ideia do impeachment de Fernando Collor nasceu numa reunião de políticos e foi depois encampada com euforia pelos "caras pintadas", cheios de esperança.

De lá para cá, pouco mudou. Dez anos depois, a República foi tomada por um grupo com um plano maquiavélico, ilegal e egoísta.

Após a revelação do mensalão, mesmo com o esforço corajoso de alguns juízes e de provas inequívocas de como o poder era tratado por Lula, pouco aconteceu além de alguns empresários e políticos presos.

A sociedade comemorou em casa. O impeachment de Collor e o mensalão não foram capazes de mudar o Brasil.

Agora, sr. presidente, na iminência de sua posse, temos uma nova chance. E essa chance vem de um processo bem diverso do de 1992.

Um relatório técnico, elaborado pelo TCU (Tribunal de Contas da União), escancarou uma tenebrosa face da prática política do governo Dilma. Entretanto, desta vez, indignado pelas descobertas da Operação Lava Jato, o povo decidiu tomar o destino em suas mãos e exigir justiça.

Milhões de pessoas foram às ruas de forma pacífica, ordeira e constitucional, no que se configurou como as maiores manifestações sociais da história do Brasil.

Aos poucos, um pequeno grupo de parlamentares, que se alinhara com a população desde o início, ganhou corpo e cresceu até atingir a significativa maioria do Congresso. Essa maioria, por fim, implementou a vontade das ruas no Parlamento.

Foi assim, sr. presidente, que chegamos à sua posse. Desta vez, não podemos falhar. Já sabemos as consequências. Aprendemos que um mandato de dois anos pode fazer diferença, mas pode não ser suficiente. É imperativo que o novo governo trate não apenas da economia, mas de decência, ética, representatividade e gestão pública eficiente.

O movimento Vem Pra Rua teve o privilégio de atuar com protagonismo neste processo. Nasceu com objetivos de médio e longo prazo, dentre os quais o afastamento da presidente e do estilo lulopetista de governar. Diante da iminência desse fato histórico, é crucial que tanto o senhor como a população saibam o que esperamos de sua administração e pelo que lutaremos.

O fim da impunidade e o combate sistemático à corrupção são demandas inegociáveis. Elas incluem um posicionamento político inequívoco a favor da aprovação das dez medidas contra corrupção apresentadas pelo Ministério Público Federal e endossadas pela população brasileira, a serem aprovadas pelo Congresso Nacional.

Além disso, é fundamental o apoio irrestrito à Operação Lava Jato e a outras da mesma natureza.

No campo político, são urgentes medidas de aumento de representatividade. Voto distrital misto e recall são instrumentos fundamentais para o bom funcionamento da nossa democracia. O fim da reeleição e das coligações partidárias fecham o quadro necessário para iniciarmos um processo de renovação.

No campo administrativo, demandamos eficiência e transparência da gestão pública. A redução imediata e significativa da máquina administrativa federal e a diminuição radical do número de ministérios e de cargos comissionados constituem um primeiro passo. Não toleraremos fisiologismos.

Senhor presidente, o povo foi às ruas por mudanças e conta com seu comprometimento e sua coragem para implementá-las. A reconstrução da nação terá de considerar necessariamente o que se ouviu em uníssono nas ruas do Brasil.

ROGERIO CHEQUER, 47, é empresário, líder e porta-voz do movimento Vem Pra Rua

 

Nuvens negras

por RENATO JANINE RIBEIRO

No momento em que escrevo, estou a poucas horas do provável afastamento da presidente Dilma Rousseff de seu cargo para um julgamento que ocorrerá em até 180 dias. Haverá uma mudança radical nos quadros do Poder Executivo. Serão trocados todos os ministros, os secretários-executivos, quase todos os secretários e diretores, pelo menos.

Essa troca, ao contrário do que acontece quando um governo é substituído após uma derrota eleitoral, será traumática, como traumático é o afastamento presidencial.

E não se compare com o caso Fernando Collor. O ex-presidente conquistou o poder quase sozinho, tinha um partido pequeno que mudou de nome durante a própria campanha. Na votação do processo de impeachment na Câmara, Collor só teve 38 votos a seu favor.

Já Dilma vem de um dos maiores partidos brasileiros, com tradição de lutas, um dos poucos a ter ideologia. Mesmo sendo derrotada na Câmara por 70% dos votos, ainda teve 137 que a defenderam.

Uma centena a mais do que Collor. A hashtag #naovaitergolpe não se confirmou na realidade, mas certamente #vaiterluta.

Quais as consequências imediatas? Do lado do novo governo, temos um ministério de baixo impacto, no qual parecem se sobressair só Henrique Meirelles e José Serra. Não se escolheu um ministério de notáveis.

Michel Temer poderia escolher a firmeza; poderia dizer que seu compromisso é com o Brasil, não com os partidos; poderia ter imposto ao Congresso um ministério "de técnicos", que agradaria à população mesmo incomodando os políticos; poderia ter explicado a estes que seria essa a melhor fórmula para conquistar confiança e recuperar a economia. Seria uma via difícil, mas que consagraria seu nome. Preferiu a via mais fácil, que é a do loteamento partidário. Alguns nomes até causaram forte reação desfavorável.

Temer tem um prazo. As primeiras semanas podem causar certa euforia. Ele dialoga e articula mais que Dilma, beneficia-se do voto de confiança das classes conservadoras (ressuscito uma expressão tão antiga quanto classes produtoras, ambas designando o capital). Mas a ficha vai cair.

Dilma perdeu oportunidades, dialogou pouco, fidelizou pouco - tanto que alguns de seus ministros foram para o colo do inimigo.

Acontece, todavia, que os problemas brasileiros são bem mais profundos. Retomar o crescimento econômico depois que acabou o boom das commodities não é trivial. Manter e retomar a inclusão social é prioritário. Fazer tudo isso direito, para que não haja mais Marianas, é difícil demais. E tudo isso será cobrado.

Passada a bolha de confiança, é possível que a crise se acirre. Parece que, para a economia decolar, haverá ainda mais perda do poder de compra. Por um tempo, dirão os defensores do novo governo.

No entanto, caso esse tempo se alongue ou a economia não se aprume, as críticas à legitimidade do governo Temer aumentarão. Por isso, seus apoiadores vão acelerar o processo de Dilma no Senado. Não querem conviver seis meses com a possibilidade de que ela volte.

Num cenário em que o novo governo vai aumentar impostos ou cortar investimentos sociais (e provavelmente as duas coisas), o risco de Dilma retornar à Presidência será uma ameaça constante.

Sendo Dilma condenada às pressas, o descontentamento social poderá crescer. A sensação de que o resultado das urnas foi virado no tapetão colocará gasolina nos movimentos sociais e na esquerda.

Teria sido melhor todos dialogarem. Dilma errou, a oposição errou. Agora é tarde. Nuvens negras, como negro véu, encobrem nossos céus.

RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular de ética e filosofia política da USP. Foi ministro da Educação em 2015 (governo Dilma)

 

Não vai ter volta

Por JOSÉ HENRIQUE MARIANTE, DE SÃO PAULO - P

ara a geração que não viveu 1964 e os anos mais duros da ditadura, o que vivemos nestes dias certamente é o fundo do poço, apesar de o país a cada minuto se esforçar em cavar mais. Para essa turma, principalmente aos que resistiram à tentação de se colocar nos extremos do bate-boca, o momento é muito tenso. Um Henrique Meirelles não faz verão, o futuro é incerto.

A lembrança pré-jornalismo, adolescente e inexata, não volta ao impedimento anterior, do presidente que todos achavam boçal, afastado de lavada pelo Congresso. A memória pula direto para o segundo turno de 1989, discussões intermináveis e descrições do fim do mundo; para a insegurança econômica dos anos Sarney, quando se discutia ministro da Fazenda como técnico da seleção; para as greves do ABC e a sensação esquisita de não saber exatamente o que acontecia ao redor.

Talvez sejam apenas lembranças comportadas de quem viveu muito tempo no fundo de outro poço, o da crise dos anos 80. Talvez os que tenham vivido o pesadelo anterior até as percebam com desprezo. E talvez por isso o inconfessável, a geração do buraco tem mais medo de voltar ao buraco que de golpe.

Dilma Rousseff não cai pelas pedaladas, óbvio. Fosse esse seu crime, de fato o afastamento seria um golpe. Cai por ser a beneficiária final de um esquema corrupto de poder, certamente não o único, mas o primeiro a ser destampado de verdade pela Justiça —até aqui de modo didático, com gente na cadeia, bilhões devolvidos. A presidente cai porque piorou uma crise econômica sem precedentes para se manter no poder.

A geração do buraco não será menos intolerante com o novo governo. E terá ao seu lado a do golpe, que se prepara para voltar irresponsável à oposição. Deputados, senador e um presidente já rodaram. Exigir e conseguir novas cabeças é factível.

O governo que entra precisa ser rápido. Se demorar a mostrar serviço, no país já existe um novo normal.

 

Cenas de um velório

Por BERNARDO MELLO FRANCO

No dia da votação do impeachment no Senado, o Palácio do Planalto respirou um ar carregado de velório. Os corredores, sempre agitados pelo vaivém de funcionários e jornalistas, viveram horas de monotonia e silêncio. O Salão Nobre, escuro e deserto, não parecia o palco dos atos barulhentos de apoio ao mandato de Dilma Rousseff.

A presidente acordou cedo como sempre, mas trocou a pedalada por um passeio protegido pelas grades do Alvorada. Depois recebeu ministros no gabinete de trabalho. Enquanto tratava de detalhes da despedida, servidores limpavam gavetas e enchiam caixas com documentos pessoais e lembranças.

Assessores que perderão os cargos no "Diário Oficial" de hoje conversavam sobre o futuro e a volta às cidades de origem. As secretárias passavam as últimas ligações, e o pessoal da limpeza arrastava sacos de lixo cheios de papel picado.

Com o destino político selado, só restou a Dilma escolher a porta de saída do palácio. Ela descartou a ideia de descer a rampa e optou por uma alternativa mais discreta: a portaria principal. Segundo auxiliares, vai caminhar em direção à praça dos Três Poderes, cumprimentar militantes e partir de carro rumo ao exílio na residência oficial.

A rampa foi descartada por dois motivos. O primeiro, a recusa de Lula, que não quis acompanhá-la numa cerimônia teatral de despedida. O segundo, a tentativa de não passar a imagem de fim definitivo do governo. Afastada por até 180 dias, Dilma acalenta a esperança de voltar ao cargo após o julgamento final no Senado. A maior parte de seus aliados pensa ser um sonho impossível.

À noite, antes de deixar o Planalto, a presidente apareceu na janela ao lado do chefe de gabinete, Jaques Wagner. Ele abriu a persiana, e os dois olharam para a pista vazia, interditada ao tráfego. Os manifestantes esperados pela polícia não apareceram. Talvez nem o ministro saiba o que a chefe pensou antes de ir embora.

 

 

Fonte: Folha de S. Paulo

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