Pressão e demissão, EDITORIAL DA FOLHA (sobre a saída de JECardozo do Ministério da Justiça)

Publicado em 02/03/2016 05:47
na edição desta quarta-feira

Com certo azedume, seria possível dizer que nenhum fato, discurso ou realização terá marcado tanto a passagem de José Eduardo Cardozo pelo Ministério da Justiça quanto o seu pedido de demissão.

Numa situação marcada pela forte suspeita de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenha sido beneficiado por empreiteiras em propriedades destinadas a seu desfrute, cresceram as pressões petistas no sentido de afastar Cardozo do cargo.

Teria sido incapaz, para os defensores do atual sistema, de "manter sob controle" a Polícia Federal, que avança em suas investigações. Demitindo-se, Cardozo denuncia tacitamente o cinismo de seus companheiros de partido.

Considerá-lo não só infiel às expectativas lulistas de impunidade mas também obstáculo para o sucesso das esfarrapadas versões que se apresentam, entretanto, seria levar longe demais o papel desempenhado por José Eduardo Cardozo.

A Operação Lava Jato, desencadeada para apurar uma rotineira suspeita em torno de uma rede de doleiros, tornou-se um pesadelo para petistas e aliados porque as autoridades seguiram com profissionalismo as evidências, que não faltaram, de um esquema gigantesco demais para ser ignorado.

Os seguidos abalos provocados desde as primeiras revelações sobre o escândalo do petrolão obedeceram a uma lógica própria, e o Poder Executivo sabia que não poderia abafá-los sem riscos.

Talvez sejam incontroláveis, numa democracia, os vazamentos de informação –e, embora tragam consigo a possibilidade real de levar a injustiças e distorções, funcionam também como antídoto para as usuais manobras que o poder enceta para ocultar negociatas.

Com a saída de Cardozo, a presidente Dilma Rousseff (PT) perde uma figura que atuava como advogado do Planalto –e não há de ser coincidência que seu destino seja a Advocacia-Geral da União.

Ganha, por outro lado, a oportunidade de recompor suas relações com o partido que, até há pouco, parecia inamovível na amarga tarefa de lhe conceder sustentação.

Os fatores de afastamento entre o PT e o Planalto persistem, contudo, no plano da política econômica. Não há como acreditar que desapareçam num ambiente em que o prestígio pessoal da presidente continua inapelavelmente escasso e em que sua agremiação se concentra para intentar, nas eleições de 2018, uma patética ressurreição.

Fica reservado ao novo ministro, Wellington César Lima e Silva, o papel de demonstrar, pela continuidade das ações da Polícia Federal, que José Eduardo Cardozo não poderia ter revertido o curso que tiveram; ou de, contentando o petismo, sinalizar a cisão definitiva entre essa organização político-financeira e os interesses da sociedade, a que pretende espoliar.

 

Lula lá, Dilma ali, ninguém aqui

Por VINICIUS TORRES FREIRE

Lula lavou as mãos ao deixar o PT bater em Dilma Rousseff com um programa econômico de oposição, entre outras injúrias e insultos na surdina. Lula tanto fritou que queimou Luiz Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça, que seria "mole com a Polícia Federal". Contribuiu para tornar ainda mais críticos os dois piores problemas da presidente.

Mas os entornos luliano e dilmiano dizem que os dois devem se encontrar "nos próximos dias" para conversar. Enquanto Lula ajuda a atolar o governo, a paralisia da administração Dilma suscita conversas cada vez mais tensas sobre:

1) A influência que a perspectiva de crescimento descontrolado da dívida pública terá sobre o mercado, já agora; 2) O impacto da inadimplência crescente sobre bancos; 3) O impacto que prejuízos em alta e caixas em baixa terá sobre a cadeia de pagamentos entre empresas –quebradeiras.

Sobre qual assunto vão conversar os dois? Dilma Rousseff vai rasgar a fantasia curtinha e mal costurada de reformas que vestiu a contragosto neste segundo mandato e vai adotar a "nova política econômica" lançada pelo PT na sexta (isto é, "aprofundar" o programa de governo Lula, o que engloba Dilma 1)? A presidente vai "dar um jeito na PF"?

Na semana passada, Lula deu aval ao plano petista de derrotar o programa econômico que Dilma Rousseff pretende enviar ao Congresso. Ao derrubar o ministro da Justiça, Lula atiçou ainda mais a animosidade da Polícia Federal e contribuiu para disseminar a impressão de que foge da polícia e quer abafar o caso desses imóveis com tantos e nenhum dono.

Ou seja, Lula aumentou o tamanho das duas piores encrencas do governo Dilma: 1) O descrédito quase geral na capacidade e desejo da presidente de reverter a degradação econômica; 2) A incrível quantidade de rolos que envolve gentes do governo, o (suposto) partido do governo e chega muito perto da campanha eleitoral de Dilma Rousseff.

Há uma fornada de escândalos novos para vazar. Virá um mês de delações dos executivos da Andrade Gutierrez. Deve vir o início das delações do pessoal da Odebrecht. A delação do empresário José Carlos Bumlai, o amigo do sítio. A delação do senador Delcídio Amaral. Os desdobramentos da prisão do publicitário João Santana. Isso, para ficar no essencial. Há mais.

Eduardo Cunha pode se tornar hoje réu, acusado de receber propinas do petrolão na Suíça. Mas até que seja deposto ou preso (ou mesmo assim) vai provocar o caos enquanto estrebucha.

No Congresso, discutem-se coisas como reestruturar "na marra" a dívida de Estados e municípios com o governo federal, o que seria um desastre terminal, uma demonstração de que Dilma Rousseff não tem poder algum no Parlamento e um estouro operístico do resto das contas públicas. Além do mais, senadores vão votando pelas bordas um programa anti-Dilma (mudança na lei do petróleo, lei da governança das estatais), prova de que a presidente é café com leite mesmo na casa em que, acredita, poderia ter votos para barrar seu impeachment.

Dilma Rousseff está sitiada por todos os lados e é solapada dentro de casa, por Lula e PT. Não compreende o tamanho da crise e tem menos e menos poder de domá-la. 

 

Será o fim, por ANTONIO DELFIM NETTO

Deveria ser evidente que o conhecimento de como funciona o sistema econômico de qualquer sociedade é um problema empírico. Não pode ser deduzido teoricamente porque a evolução de qualquer organização política e do necessário sistema econômico nela embebido são historicamente contingentes. Portanto, não é possível deduzir relações de comportamento dos seus agentes à imagem das "leis" naturais que habitam o mundo físico que, numa certa medida, são atemporais e a-históricas.

É tempo de reconhecer com clareza que passou o momento de crer nas "grandes teorias" concebidas por brilhantes cérebros peregrinos que pensaram ter "descoberto" as leis da história. Uma teoria sem um fato é tão inútil quanto um fato sem uma teoria.

As mais encantadoras das "grandes narrativas" continuam a sobreviver, mas apenas como um componente residual na "cultura" que nos identifica. É tempo de aceitar o fato de que as populações estão cansadas e desacorçoadas com os sofrimentos impostos pelo pensamento mágico, que sugere transcender as condições físicas que as constrangem, com o apelo à ilusória "vontade política", pois eles sempre terminaram no "populismo" barato que, no final, sai-lhes muito caro...

Neste instante em que o país testemunha as trágicas consequências de uma política econômica voluntarista, mesmo o indivíduo mais modesto "sente" que o único caminho que lhe resta, é encontrar um emprego remunerado e continuar a receber um apoio que lhe dê proficiência funcional e lhe permita, com seu próprio esforço, conquistar a cidadania.

Mas todos "sentem" que isso só acontecerá se for restabelecida a confiança entre a sociedade e o poder incumbente que, com as informações então disponíveis, ela mesma elegeu. É condição necessária (ainda que não suficiente) para a retomada do crescimento sustentável e inclusivo.

É insensato, por outro lado, negar que, de 2003 a 2011, beneficiado por uma excepcional expansão externa, o Brasil melhorou: cresceu média 4,1% a.a. -40% acumulado, aumentou a igualdade de oportunidades, reduziu a desigualdade, manteve a inflação relativamente controlada, gerou superavit primários médio de 3,1% do PIB e estabilizou a relação Dívida Bruta/PIB (após reduzi-la) em 52% do PIB. Infelizmente, para controlar a inflação valorizou a taxa de câmbio e destruiu a indústria nacional!

Uma enorme miopia ideológica a partir de 2012 impediu que o governo visse que as condições objetivas tinham mudado e que era hora de também mudar a política econômica. Insistir na mesma foi um erro. Aprofundá-la, como sugere o "Programa Nacional de Emergência" do PT, será a destruição final do governo de Dilma Rousseff. 

 

Estão maltratando VC, por ELIO GASPARI

Quando chegou ao Brasil, vindo de Nova York, Victor Civita tinha algumas centenas de milhares de dólares e uma licença para imprimir revistas de quadrinhos de Walt Disney. O Pato Donald e Mickey eram bons parceiros. Isso foi em 1949. São Paulo ainda não tinha o parque do Ibirapuera, a avenida Paulista era uma alameda de palacetes e no bairro de Pinheiros havia um incinerador de lixo.

Civita morreu em 1990, aos 83 anos. Em quatro décadas, transformou uma pequena empresa na maior editora de revistas do país, revolucionou a relação do brasileiros com os livros, levando-os para as bancas de jornais, ajudou a redesenhar as relações do mercado publicitário com as publicações que recebiam seus anúncios e deu aos jornalistas um grau de independência pouco comum na época. Em 2008, a área onde funcionava o incinerador de lixo de Pinheiros foi transformado num espaço cultural e se chama Praça Victor Civita.

Na década de 50 as grandes agências de publicidade ficavam no Rio, administrando seus anúncios sob forte influência de relações pessoais. Civita rolava com sua pasta, mostrando que sua editora paulista batia de longe a circulação dos rivais. Em 1961, quando foi criado o Instituto Verificador de Circulação, IVC, havia quem o chamasse de Instituto Victor Civita.

Sua principal iniciativa foi o lançamento, em 1968, da revista "Veja", que circulou durante anos no prejuízo. (Ao contrário das lendas contemporâneas, se ela não fechou foi porque ele não deixou.) Nessa época, como Tio Patinhas, Civita nadava em dinheiro. Fascículos de receitas culinárias vendiam como pão. Foi dado por louco quando decidiu vender semanalmente em bancas de jornais uma coleção de clássicos da literatura universal. Começou com "Os Irmãos Karamazov", de Dostoiévski. Se a coleção vendesse menos de 50 mil exemplares, iria a pique. Vendeu 270 mil. Seguiram-se os "Pensadores" e os "Economistas". Platão vendeu 250 mil. Nas traduções e notas desses livros trabalhavam 300 professores, muitos desempregados pela ditadura. Jacob Gorender, por exemplo, traduzia na prisão.

Civita viveu sempre no mesmo apartamento de Higienópolis e dirigia o próprio carro (nacional). Dava-se ao luxo de hospedar-se no Sherry Netherlands de Nova York, mas tinha sempre à mão o kit com que fazia seu café da manhã. Limusine? Nem pensar.

A manutenção da praça Victor Civita custa R$ 2 milhões anuais e até bem pouco tempo foi bancada pela Editora Abril com uns poucos patrocinadores. A editora, que neste ano viveu duas reestruturações e desde 2014 passou adiante pelo menos 17 títulos, desistiu do mecenato.

A praça Victor Civita é hoje um dos melhores pontos de encontro de jovens paulistanos em busca de cultura. A retirada dos patrocínios mistura encrencas burocráticas, mas sua essência é só uma: faltam R$ 2 milhões anuais para mantê-la. Isso é uma fração mínima do que "VC" deixou para seus descendentes. Como o dinheiro é deles, ninguém tem nada com isso.

O que Victor Civita deixou para a imprensa e a cultura nacionais vale muito mais que esse pixuleco. Um lugar aonde se vai atrás de um bom show, palestra ou filme vale muito mais. Não trata de parar de maltratar "VC", mas de não maltratar quem está vivo.

 

A queda, por HELIO SCHWARTSMAN

SÃO PAULO - A queda do ministro José Eduardo Cardozo permite alguns interessantes exercícios lógicos. Sendo correta a informação, que apareceu em virtualmente todas as reportagens que li a respeito do assunto, de que o titular da Justiça foi removido a pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, descortina-se um quadro pouco enaltecedor para Lula, Dilma e o próprio país. Analisemos essas situações, partindo das hipóteses mais republicanas para as menos.

Uma possibilidade é que o ex-mandatário julgue estar sendo vítima de perseguições. Neste caso, o remédio passa por advogados, não pelo ministro da Justiça. Também é possível que Lula esteja insatisfeito com os vazamentos seletivos de informações contidas nos inquéritos. Cardozo, na condição de chefe do chefe da Polícia Federal, não teria cobrado como deveria a punição dos servidores faltosos. É um direito de Lula reclamar dos vazamentos, mas parece um pouco demais pedir a demissão de um ministro porque ele não foi capaz de evitar a divulgação antecipada de informações que necessariamente se tornariam públicas em algum ponto do processo.

Outro cenário, talvez mais verossímil, é o de que Lula esteja bravo porque as investigações chegaram muito perto de si e de seus familiares. Se as instituições funcionarem como deveriam, a troca de ministro é inútil, já que ele não pode em tese influir no conteúdo das apurações. Delegados e promotores têm plena autonomia nessa matéria. Uma tentativa de interferir no processo, aliás, além de depor contra a autoproclamada máxima honestidade de Lula, seria até um argumento adicional em favor do impeachment de Dilma Rousseff.

A perspectiva mais sombria, porém, é a de que a substituição de fato resulte numa freada nas investigações. Neste caso, o único aspecto positivo dessa crise, que é verificar que as instituições têm funcionado a contento, terá se revelado uma miragem. 

Fonte: Folha de S. Paulo

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