Sobre o impeachment: Os profissionais, A roda girou, Golpe cego, e A farsa de Cunha

Publicado em 05/12/2015 11:25
ARTIGOS DA FOLHA DE S. PAULO (edição deste sábado)

Os profissionais

Por DEMÉTRIO MAGNOLI (FOLHA DE S. PAULO)

Dilma não está só. À sua volta, operam profissionais do discurso político, que definiram uma estratégia eficaz contra o impeachment. "Agora, é ela contra ele", anunciou o ministro Jaques Wagner, referindo-se a Dilma e Eduardo Cunha. O Planalto e o PT juntaram-se novamente, após os estremecimentos provocados pelo caso Delcídio e pela ensaiada barganha no Conselho de Ética. A estratégia é identificar o pedido de impeachment à figura do presidente da Câmara, conferindo uma falsa sintaxe à polêmica sobre as acusações contra a presidente. A aposta na mentira e no ilusionismo deriva do desespero, mas obedece a um cálculo político preciso.

"Não possuo conta no exterior. Não paira contra mim nenhuma suspeita de desvio de dinheiro público." Isso foi escrito por profissionais, não por Dilma. A linha do "ela contra ele" carece de sentido lógico, pois a peça do impeachment acusa a presidente de crimes de responsabilidade, não de desonestidade pessoal. Contudo, o deslizamento discursivo faz sentido político, ao menos no contexto da baixa política em que está imersa a nação. Os profissionais jogam suas fichas no impacto público da admissão do processo de impeachment por uma figura marcada pelo sinete da desonestidade e, ainda, nas espessas camadas de sombra que cobrem a denúncia contra a presidente.

O fim justifica os meios? Dilma tem uma irrefreável atração pela mentira, como se viu tantas vezes, notadamente na campanha eleitoral. "Eu jamais concordaria com quaisquer tipos de barganha, muito menos aquelas que atentam contra o livre funcionamento das instituições democráticas do meu país", disse a presidente, lendo palavras escritas pelos profissionais, logo depois de assistir ao fracasso da barganha articulada com Cunha. A nova mentira seria facilmente desvendada se a oposição não fosse conduzida por amadores e, às vezes, por amadores inescrupulosos. Contudo, depois de um longo ensaio de aliança entre a oposição e Cunha, as águas turvaram-se a ponto de restarem à tona apenas as versões.

No cadafalso, Cunha pratica o esporte do confusionismo. Implicado no escândalo da Lava Jato, provável beneficiário do esquema do "petrolão", o antigo aliado do lulopetismo presta um último (e involuntário) serviço ao enrolar-se na bandeira do impeachment. Cunha contesta Dilma, assegurando que é ela quem mente sobre a barganha frustrada. "Ele contra ela" –o ainda presidente da Câmara reforça a chave discursiva selecionada pelos profissionais. O impeachment perde força na proporção direta da difusão da crença de que o conflito opõe uma presidente honesta e incompetente a um facínora corrupto. Tudo seria diferente se, desde o início, a oposição tivesse dito "Fora Dilma! –e leva o Cunha junto com você".

As "pedaladas fiscais" são tão graves, para o país, quanto misteriosas, para o grande público. Não se assemelham ao Fiat Elba de Collor, às contas suíças de Cunha ou ao striptease em rede nacional de Delcídio. No tribunal da política, Dilma conserva oportunidades não desprezíveis. As suas chances aumentaram quando, a partir de julho, os grupos organizadores das manifestações pró-impeachment revelaram-se muito mais tolerantes com Cunha que com ela. Os profissionais sabem disso, pois lêem o que está oculto nas fímbrias das sondagens de opinião. Não por acaso, desde anteontem, o PT avançou à linha de frente do "Fora Cunha", ocupando uma trincheira esvaziada pela oposição.

O impeachment não será decidido exclusivamente na arena do discurso. Há uma economia que afunda. Da Lava Jato, esperam-se revelações sobre os vasos comunicantes entre a Petrobras e a campanha eleitoral da presidente. "Ela contra ele" não é uma varinha mágica capaz de dissolver o espectro que ronda o Planalto. Mas é tudo que tem um governo que abandonou o país para cuidar de sua própria salvação.

 

A roda girou

Por IGOR GIELOW,  da FOLHA em BRASÍLIA -

Apesar da vantagem teórica na Câmara, o governo iniciou com reveses sua batalha para tentar manter Dilma na Presidência. A começar pela discussão do impeachment em si, dado que evitá-la foi agenda central do Planalto este ano.

Mais grave é o início do desembarque do PMDB de Michel Temer. Rompendo o padrão usual de discrição do vice, o processo começou com a estrondosa saída de Eliseu Padilha.

Mas nem tampouco isso virou um incêndio sem controle: com o PMDB nominalmente governista, o jogo tem sempre sutilezas inconfessáveis.

A roda, contudo, já está a girar. Temer é visto como inimigo no Planalto, e as lealdades congressuais são fluidas. Eduardo Cunha pode estar morto para o mundo exterior, mas da porta para dentro na Câmara ele é uma entidade bem corpórea.

A oposição debate assustada prazos e sonha com uma "rua" que parece bem incerta. Há bem mais do que um burburinho entre os donos do PIB sobre a conveniência de ver acabado o ciclo ruinoso do PT.

Vestais gritam que Cunha conspurcou todo o processo por deflagrá-lo pelos motivos torpes conhecidos, de resto resultado de um dos últimos grandes erros que o Planalto terá cometido sob Dilma se o impedimento prosperar, mas o pedido de impeachment em si é legítimo –se o suficiente politicamente para ser aceito, caberá à Câmara decidir.

A tese de "golpe paraguaio" é barata como uísque guarani. Talvez alimente tropas governistas, seja no rede-socialismo ou entre sem-teto e servidores a soldo, mas o apetite de Lula neste particular parece desautorizar os profetas do caos social no tal do "campo progressista".

O grão-petista tem muito a perder, mas também é verdade que ele ainda não resolveu emular pela enésima vez Goebbels no Berlin Sportpalast em 1943 e clamar por uma "guerra total". Se é por exaustão, cálculo cínico ou lição histórica acerca do resultado, é algo a ser determinado.

 

Golpe cego

Por ANDRÉ SINGER (Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.)

Em gesto irresponsável, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, acabou por considerar admissível o pedido de impeachment contra a presidente da República. Uma peça jurídica artificial, manipulada sem escrúpulos, joga agora o centro das decisões nacionais em guerra estéril. Convém afastar as ilusões: não haverá ganho nesta refrega.

Quanto a Cunha, o destino está traçado. Será cassado pelos pares e, depois, esquecido pela história, que não se ocupa de personagens menores. Mas, como homem-bomba, deixa abacaxi e tanto. Já pequena diante dos desafios da crise econômica e da Lava Jato, a política fica mais perdida na cerração provocada pela admissibilidade do impedimento.

Vozes até aqui sensatas da oposição e do mundo jurídico sabem que não há base consistente para a solicitação de impeachment. Repetidas declarações de personagens insuspeitos como Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin, Carlos Ayres Brito e Joaquim Barbosa atestam a fragilidade da iniciativa. As supostas pedaladas fiscais não passam de operação cotidiana de qualquer Executivo.

Existe, é verdade, em parte da opinião pública, a crença de que este governo carece de condição para seguir e deve ser interrompido, mesmo que para isso seja necessário forçar a mão das leis. Trata-se de um golpismo branco, autojustificado pela expressão moral do "assim não dá mais". Ocorre que, em política, a frase é incabível, pois à política compete sempre indicar caminhos alternativos e não a impossibilidade moral de continuar.

Qual o projeto nacional do senador Aécio Neves, presidente do PSDB, que na quarta (2) saudou a decisão de Cunha? O que ele faria diferente de cortar e cortar gastos, esperando que ao fim do austericídio comece a haver uma recuperação, como agora parece ser o caso, por exemplo, na Espanha? A impopularidade da gestão Aécio seria similar à atual.

Que perspectiva oferece o vice-presidente Michel Temer que, na hora simbólica do pronunciamento presidencial, evitou postar-se ao lado da companheira de chapa? Até FHC considerou a "ponte para o futuro", carta-programa firmada por Temer como garantia aos mercados, liberal demais. Se chegar a acontecer, o mandato do PMDB terminará em isolamento semelhante ao que acomete hoje o Planalto.

Operando no fio da navalha, o PT procura, com enormes dificuldades, reencontrar o prumo. A decisão de apoiar a cassação de Cunha, que precipitou a explosão do deputado carioca, bem como a recusa em defender o senador Delcídio do Amaral (PT-MS), mostra alguma vida no interior da legenda. Resta ver se haverá força para mudar também a política econômica. Nesse caso, a batalha que se aproxima ganharia algum sentido positivo.

 

A farsa de Cunha, jihadista da direita corrupta

Por MARCOS AUGUSTO GONÇALVES (editor da Ilustríssima, caderno dominical da FOLHA)

Vivemos no Brasil um momento no qual a história parece já acontecer como farsa. Um patife entrincheirado no comando da Câmara, em deslavado exercício de gangsterismo político, acata um pedido de abertura de processo de impeachment com o intuito de retaliar o Executivo por não apoiá-lo na pretensão de salvar a pele no Conselho de Ética da Casa –que apesar de nada ou pouco ter de ético inclina-se a reconhecer os fatos clamorosos que se voltam contra o sinistro deputado.

Não é outra a motivação de Eduardo Cunha, cujo interesse pessoal surpreende e adultera a dinâmica política e institucional para lançar um processo de impedimento numa hora em que as condições não se mostravam as mais propícias. Formara-se praticamente um consenso entre analistas (e mesmo entre setores menos estúpidos da classe política) que o "momentum" do impeachment havia se esvaído –ainda que pudesse reapresentar-se mais adiante.

Prevaleceu, portanto, sobre a racionalidade e o tempo do cálculo político estruturado o ímpeto de um homem-bomba. Cunha, o jihadista da direita corrupta, vendo-se encurralado, decidiu explodir o colete. Não esqueçamos que nosso "suicide bomber", embora tenha agido agora como um lobo solitário, foi, durante longos meses, protegido e incentivado por setores da oposição e da imprensa. Como se sabe, o senador Aécio Neves, no afã de ganhar no tapetão o que perdera em casa, uniu-se à escória da política e chegou ao oportunismo notável de votar contra teses de seu partido na tentativa de chegar ao trono por caminhos insensatos. Nessa empreitada irmanou-se - e nivelou-se - a gente do calibre de Paulinho da Força (ou seria da Farsa?). Agora, contudo, mesmo o sinhozinho das Gerais já havia abandonado Cunha e a ideia de impeachment pelo impeachment, em meio a uma tardia e vexaminosa autocrítica de seu partido.

Ninguém na opinião pública deixou de notar que ao aceitar o pedido Cunha agiu como um chantagista entregando sua retaliação. Muitos, porém, trataram de considerar que o impulso torpe não mancharia o processo, que poderá transcorrer, digamos, "normalmente", sem carregar a mácula de seu pecado original.

Devo dizer que discordo dessa avaliação. Não concordo que se possa higienizar a cena do crime dela limpando o vício inaugural.

Mas não é apenas isso que me incomoda: falta ao pedido do sr. Bicudo a identificação convincente de um crime de responsabilidade. As "pedaladas fiscais" de 2015 ainda não foram caracterizadas –e mesmo que venham a ser é clara a desproporção entre o suposto delito e a punição que se sugere, como, aliás, já haviam declarado, com todas as letras, o governador Alckmin e o banqueiro Roberto Setúbal.

Antes que as jararacas e os ratinhos acusem-me de ser "desonesto" no argumento, devo registrar que estou entre os que consideram a presidente Dilma Rousseff uma completa incompetente e uma das responsáveis diretas pela ruína econômica e o caos político que se instauram no país. Não imagino que ela desconhecesse esquemas em curso na Petrobras, embora seja forçoso reconhecer que nada se apresentou de palpável contra ela. Por fim, vejo no PT uma fraude decadente de esquerda que aderiu ao mesmo gangsterismo político de alguns setores da direita que outrora pretendeu combater. Cunha e PT são adversários que se medem por suas respectivas réguas.

Nada disso, porém, justifica a aceitação desse processo que traz de seu nascedouro o característico cheiro de enxofre.

 

 

 

Fonte: Folha de S. Paulo

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