Bibliofobia: a Medusa e a direita nas ruas

Publicado em 17/03/2015 15:58

Por Flavio Morgenstern*, publicado no Instituto Liberal

A mitologia grega, junto à Bíblia, fornece o âmago do simbolismo que subjaz até mesmo na ciência moderna para o homem ocidental. Suas referências permanecem sempre atualizadas pelo religare do mito: a união do tempo secular, dos séculos encadeados, a um eterno presente ao qual podemos retornar, bebendo sempre na fonte primeva do mundo através da participação em sua apoteose.

É da mitologia grega a história de Medusa, uma das três Górgonas, terríveis monstros femininos capazes de transformar quem as contemplasse em pedra.

Seus cabelos eram serpentes venenosas, símbolo eterno da sabedoria proibida, que deve ser usada sempre com rigorosa circunspecção. O próprio termo grego pharmakon, significando tanto “remédio” quanto “veneno”, nos lembra ainda hoje da diferença entre a vacina e a droga, sendo tão usado na filosofia para identificar a indeterminação. Mesmo na Bíblia, a serpente, cha nachash, era a mais sábia das alimárias dos campos do Éden – e foi a instigadora da busca do conhecimento do bem e do mal que causou a Queda.

Medusa, a guardiã, em uma mitologia não-maniqueísta, em que bem e mal nunca eram facilmente discerníveis, era usada como amuleto de proteção contra forças infensas – sua cabeça foi colocada no próprio escudo de Atena, deusa da sabedoria. Mais ou menos como as gárgulas protetoras das catedrais cristãs.

Coube a Perseu, semi-deus, a incumbência de enfrentar a poderosíssima força monstruosa, memorial aterrorizante do caos e do mundo incível, mas também guardiã de um relicário precioso aos homens de todas as épocas: o perigoso conhecimento que pode aclarar as mentes, como embotar o espírito.

Perseu, munido da proteção de Atena e Hermes, tinha uma faina horrível a cumprir por qualquer herói, mesmo Héracles (ou Hércules), por ser uma tarefa que não lograria êxito apenas pela força. Aprovisionado com uma capa de invisibilidade e uma espada, foi todavia um realista escudo espelhado que permitiu a Perseu finalmente livrar o mundo da apavorante ameaça: Perseu enxergou a criatura através de seu inofensivo reflexo, sem encará-la diretamente e ser petrificado, podendo então degolá-la. A força do caos derrotada pela engenhosidade da mente humana inspirada pelo divino.

Vivemos hoje numa situação histórica em que a ameaça da Medusa se faz novamente presente, fragmentada que seja pela mentalidade moderna e seu apreço pelo reducionismo.

O Brasil de 2015 sentiu imediatamente no noticiário o desmoronamento do projeto de poder central, “redistributivista” e de linguagem ora social-democrata, ora francamente socialista do PT e da esquerda política, que escreveu a narrativa e os valores que formam um prisma sob o qual toda a realidade é encarada.

Segundo tal narrativa, nossos problemas não são questões muitas vezes internas, de incertezas e conflitos pessoais na luta contra nosso destino, em que muitas vezes não é claro qual o caminho correto a ser seguido, mas sim que todos os problemas reduzem-se apenas à “desigualdade social”, devendo toda a sociedade se curvar a um projeto central de poder agigantado do Estado, que redesenharia toda a atividade humana para que todos ganhassem praticamente o mesmo, e então todas as adversidades da vida se dissolveriam num Éden terreno, uma Sião modernosa.

É, em suma, apenas uma repaginação barata da velha retórica comunista, que tratam como se estivesse morta tão somente por ter trocado o palavreado. De Marx aos progressistas e à esquerda de 140 caracteres, pouco mudou, a não ser a quantidade de eufemismos para camuflar o velho “outro mundo possível” do Gulag.

Nas palavras de Antonio Negri, “comunismo é o reino do amor”, em que a individualidade humana é suprimida e comutada pela adulação a um projeto de poder social.

Toda a verborréia que é propagandeada para a esquerda como um cabresto, e que faz com que ela passe a encarar como se fosse a própria realidade, é uma repetição com eufemismos, metáforas, retificações, metonímias, retroações ou metaplasmos do antediluviano, cafonérrimo e bitolado discurso de propaganda dos revolucionários soviéticos.

Desigualdade social, feminismo, sindicalismo , cotas, acusações falsas de racismo e homofobia, fair share, apelos histéricos a uma “democracia” indefinida, xingamentos variando de “saudosista da ditadura” a “nazista” contra todo de quem se discorda, tornando-os uma maçaroca uniforme e monstruosa, são todos banhos de loja no batido e chatíssimo arrazoado bolchevique.

Adestrados pelo programa uniformizante de Educação brasileira, calcado em pedagogos marxistas como Paulo Freire, Lev Vygotsky e Jean Piaget, os alunos brasileiros podem se tornar até “cultos” aprendendo na faculdade, mas apenas no sentido de se adentrarem em profundidade numa cultura específica.

Culturas, variadas e capilosas, podem tanto apresentar grandes verdades quanto nos cegar para outros aspectos da realidade. São como óculos coloridos: fazem-nos ver o mundo apenas pela cor da lente. Ao vermos o mundo pela visão de um falante de búlgaro, de um foragido da Coréia do Norte, de um aristocrata austríaco do século XIX, podemos descobrir muitas verdades novas, como também perder muito do contato direto com a realidade próxima. Neste sentido é que a filosofia, que busca leis universais por detrás de palavreados temporários e cegantes, é “desculturalizante” – faz-nos enxergar o mundo sem os óculos de uma única cultura.

O choque que a esquerda e sua narrativa pronta, maniqueísta e reducionista teve ao ver que o projeto de poder para “corrigir” a desigualdade não rendeu os frutos desejados com o novo mandato de Dilma Rousseff, já nos primeiros meses de 2015, foi quase como um raio cósmico ou uma fissura existencial, justamente por até os mais “cultos” dos pensadores desta cultura marxista não terem, literalmente, palavras ou conceitos adequados para compreender por que o noticiário é tão desastroso para a logorréia petista (vide Renato Janine Ribeiro, novo ministro da Educação, ou qualquer membro do palpitariado coletivo, que agora tem de esbater com frases de efeito sem conteúdo, como “Dilma virou tucana” ou “o PT não é mais de esquerda”, para tentar explicar o que acontece).

Isto tudo tem uma explicação simples: mesmo os petistas mais inteligentes são inteligentes apenas numa única linha de pensamento, o cânone “sagrado” do marxismo. Mesmo que considere “superado” o “fracasso” comunista (eufemismo para “genocídio”), ainda pensa de acordo com suas palavras, seus conceitos, seus valores – a ponto de acreditar que eles são a própria realidade, e não um filtro para não enxergá-la.

Quando tais “intelectuais” vêem milhões de pessoas nas ruas (provavelmente muito mais do que os milhares aventados pelos Datafolhas da vida) buscando algo diferente da repetição do poderio estatal há séculos prometendo fartura e entregando totalitarismo, corrupção e evaporação do nosso dinheiro, tudo o que têm em mãos é acreditar que todos são pessoas malévolas, tão ruins que querem a volta de uma ditadura militar igualmente estatólatra ou que são simplesmente “fascistas”.

Se estes intelectuais tivessem alguma vez fugido de sua caverna platônica e lido livros que não sejam repetição do que já acreditam, ou seja, se tivessem conhecido visões políticas que vão além dos bordões repetitivos sobre desigualdade, e soubesse de fato o que conservadores e liberais pensam, quais são seus argumentos, seus métodos, seus objetivos, suas causas, suas origens e seu desenvolvimento, não estariam tão apatetados sem conseguir explicar a realidade atual.

Isto se chama bibliofobia. O medo doentio, primitivo, rude, bestial e incivilizado de livros. Quando alguém se considera “culto” conhecendo apenas uma versão da história, por mais que leia 18 horas por dia, só vai se tornar mais divorciado da concretude do real quanto mais ler.

A esquerda, pelo vezo em ser reducionista, tem verdadeiro medo ancestral de algo que não seja confirmação de suas próprias crenças. Intelectuais de esquerda são conhecidos por qualquer conhecedor de pensadores famosos do século XX: Gramsci, Foucault, Deleuze, Lacan, Adorno, Bakhtin, Hobsbawm, Negri, Butler, Žižek, Mészáros, Antônio Cândido, Florestan Fernandes, Caio Prado Jr. etc.

Os pensadores de direita, liberais ou conservadores, inclusive os básicos, leitura canônica para se compreender as premissas fundamentais do que se está discutindo, são completamente desconhecidos de universitários e mesmo intelectuais esquerdistas. Até pedras de toque como Edmund Burke e Tocqueville são lidos apenas pela sua visão parodiada esquerdista, que nunca trava contato com pilares do pensamento como Eric Voegelin, Eugene Webb, Lionel Trilling, Russell Kirk, G. K. Chesterton, Erik von Kuehnelt-Leddihn, Ludwig von Mises, Bernard Lonergan, Mário Ferreira dos Santos, Richard Weaver, Eric Weil, Michael Oakeshott, Ortega y Gasset, P. J. O’Rourke, George Santayana, Theodore Dalrymple e tantos outros.

Isto se dá porque, tal como a crítica de H. L. Mencken ao vitoriano Anthony Comstock, a esquerda crê que virtude e ignorância são sinônimos. Tal como a Medusa mitológica, ela tem medo de que alguém encare as serpentes da sabedoria e se torne uma pedra – ou, em sua visão falseada da vida real, que alguém trave conhecimento com algum pensador que não seja repetidor da litania esquerdista e se torne um não-esquerdista, ou mesmo um “direitista”, deixando de fazer parte deste mundo.

Na verdade, a esquerda sabe disso: afinal, este foi o destino obrigatório de vários pensadores de esquerda que tentaram estudar a direita, como Eric Voegelin, Edmund Wilson, David Horowitz, Benedetto Croce, Leszek Kołakowski e Thomas Sowell. Todos foram marxistas, todos recusaram o pensamento de esquerda em sua integridade após travarem conhecimento com idéias melhores.

Até escrevem livros explicando o que é o pensamento de esquerda, como os dois “Leftism”, de von Kuehnelt-Leddihn, as séries “Intellectuals”, de Thomas Sowell e de Paul Johnson, “A Traição dos Intelectuais”, de Julien Benda, ou “Pensadores da Nova Esquerda”, de Roger Scruton. Para os direitistas, conhecer a esquerda é obrigação. Para os esquerdistas, há um medo de livros de direita que lembra com proximidade assustadora a Revolução Cultural Chinesa e a queima de livros, a literatura proibida do Samizdat na União Soviética e toda a censura a material “contra-revolucionário” nos países socialistas.

Por isso há ex-esquerdistas, mas nunca ex-direitistas.

O público brasileiro, por mais que ainda não conheça um prisma melhor para encarar a realidade (a obra de boa parte destes pensadores ainda nem sequer é encontrada em português), já está buscando ser ex-esquerdista. Por si, mesmo sem imenso protagonismo de intelectuais de direita quase inexistentes no país: a esquerda cansa.

Com uma bibliofobia que é incutida e passada de geração em geração pelo nosso sistema educacional socialista, todo o debate, como disse uma caricatura de jornalista, é apenas “entre iguais” – só se debate com o espelho, num umbiguismo de auto-congratulação redundante que passa a acreditar que os aplausos são verdadeiros.

Basta-se comentar qualquer tema que fuja um milímetro ao cânone de opiniões prontas ditados pela esquerda, como fazer parte de uma marcha pelo impeachment constitucional da presidente, não ser favorável ao Bolsa Família, defender a redução da maioridade penal, permitir que visões religiosas sejam discutidas na política ou, horror non plus ultra, ler a Veja, o Rodrigo Constantino, o Reinaldo Azevedo e, pior de tudo, o Olavo de Carvalho, para que o interlocutor, ao invés de deslindar o que é verdadeiro do que é falso no conhecimento e na opinião que tem diante de si, vire para o lado com medo tórrido do discurso alegando que aceita qualquer debate, desde que tais temas não sejam colocados em debate de forma alguma.

E toda a visão que o país tem da tal direita política se torna como a da Medusa: nunca é vista de frente, é temida como uma sabedoria desumanizante, mais mortífera do que o fruto do Bem e do Mal do Velho Testamento. O que é permitido conhecer dela não é o que ela diz, o que ela é, o que ela representa ou sua construção intelectual, sua forma e conteúdo, seus desejos, valores, métodos, princípios, intenções e argumentos, e sim apenas uma visão caluniosa e falseada, vista apenas pelo espelho distorcido, opaco, nuvioso, reducionista e falso da esquerda.

Abandonando a eloqüência “social” e abraçando feliz o individualismo, o intelectual de esquerda quer ser visto como alguém que venceu “preconceitos” e visões “injustas” que permeariam toda a sociedade (e, portanto, são todas de seus inimigos políticos, e não de seus concorrentes, ou mesmo conseqüências inescapáveis de sua própria política), tendo estudado muito por mérito próprio. Quer ser visto quase como um herói.

Contudo, é um heroísmo falso e tirânico: não é ele quem degola a poderosa Medusa olhando com cuidado para seu rosto desumanizador e, vencendo as amarras que escondem o verdadeiro conhecimento, consegue dominá-lo e trazê-lo como espólio.

Ele apenas cria um espelho esfumaçado, desenha um monstrinho inofensivo, critica-o com toda a facilidade infantil e quer que todos o congratulem por matar o monstro, a “direita”, através de seu falso espelho – mas nunca, nunca travar contato direto com ela.

É o que faz, hoje, o deputado ex-Big Brother Brasil Jean Wyllys, alçado na primeira candidatura à Câmara dos Deputados sem votos suficientes, apenas no bojo da votação de outro deputado de seu partido, ao chamar Kim Kataguiri, um dos principais organizadores das manifestações anti-Dilma dos dias 15 de março e 12 de abril, de “analfabeto político”, por só ter 19 anos e ser “ultra-liberal”.

Quando Kim mostra um conhecimento maior do que é liberalismo além da quimera inventada pela esquerda, Wyllys responde julgando que a realidade não existe, e sim apenas o seu próprio espelho: se tudo o que Wyllys ele mesmo ouviu na vida sobre liberalismo é uma descrição ridícula de algo injusto, alguém que vence a bibliofobia do olhar de Medusa e lhe traz a cabeça degolada do monstro só pode ser alguém igualmente injusto, o que mantém a tranquilidade de Wylys sob os signos e conceitos de sua própria ignorância a medir o mundo sofisticamente.

Vencendo o medo de ler livros que discordem de nossas opiniões (esquerdistas lendo liberais e conservadores, liberais e conservadores lendo esquerdistas e uns aos outros), somos capazes de vencer o caótico e primitivo olhar de Medusa e degolá-la, tornando-a um talismã para a nossa sabedoria, afugentando visões de iniqüidade e falseamento do mundo.

Acreditando no olhar de Medusa e louvando o próprio medo ao conhecimento, somos transformados em pedras, crendo que vencemos o monstro.

Flavio Morgenstern é analista político, palestrante e tradutor. Escreve para jornais como Gazeta do Povo, além de sites como Implicante e Instituto Millenium. Em breve lançará seu primeiro livro pela editora Record.

Sobre pensamentos liberais e uma lição de Margaret Tatcher em 1983

Em tempos de reajuste econômico exclusivo ao bolso do contribuinte, o vídeo a seguir mostra uma lição de Margaret Thatcher durante convenção do Partido Conservador britânico em 1983: "Nenhuma nação jamais se tornou próspera por tributar seus cidadãos além de sua capacidade de pagar"

O estado, a mulher, o sofá e o pato

Por Igor Wildmann, publicado no Instituto Liberal

Como advogado e como cidadão, venho observando que a atuação do Estado brasileiro lembra aquela velha piada da mulher e do sofá: o marido, ausente e omisso, chega em casa e depara-se com sua mulher, nua, no sofá, nos braços de outro. Pasmo e inerte no ato, o marido passa alguns dias a refletir e finalmente toca o sofá para fora de casa, chamando os amigos e lavando publicamente sua honra ao atear fogo, com grande alarde, na “mobília maldita”. A analogia me tem vindo à cachola várias vezes que vejo a forma de o Estado brasileiro lidar com problemas:

a) A taxa anual de homicídios é estratosférica: faz-se uma campanha de desarmamento, incentivando os cidadãos a entregar suas armas. Cria-se lei dura, praticamente inviabilizando ao cidadão pacato o acesso a armas de fogo para a defesa pessoal. Enquanto isso, nas “comunidades”, o crime organizado exibe ostensiva e impunemente suas AK-47, AR-15 e etc., como símbolos de poder e status perante os moradores, impotentes e resignados. Os indivíduos de bem, na favela ou “no asfalto” pagam o pato.

b) Há ondas de assaltos em portas de bancos. Um estado da federação, ao invés de providenciar a prisão das quadrilhas de larápios, edita lei proibindo os clientes de falar ao celular dentro das agências. Os bandidos continuam soltos. E o cidadão comum, horas na fila do banco, paga o pato.

c) A taxa de acidentes automobilísticos é altíssima, em virtude, não se pode ignorar, do estado de conservação vergonhoso das estradas ou da fiscalização deficiente. O que se faz? Criam-se leis com um rigor absurdo, que podem transformar o cidadão médio e pacato em criminoso, caso ele tenha dirigido após comer um bombom de licor, lavar a boca com enxaguante bucal ou tomado uma – e só uma – taça de vinho, coisa que, venhamos e convenhamos, é distinta de “dirigir embriagado.

d) Hordas de dependentes de crack em determinados pontos, completamente escravizados por seu vício, muitos visivelmente fora de equilíbrio emocional, molestando ou furtando os transeuntes. O Estado, inerte perante o problema, resolve conceder-lhes “bolsa” em dinheiro, recurso este que, obviamente converte-se em aumento da liquidez das “Cracolândias”, com consequente majoração do preço das drogas. Os traficantes agradecem. O cidadão médio paga a conta e paga o pato.

e) Crianças aos montes mendigando nos sinais, à vista de todos, a maioria delas visivelmente exploradas por seus pais ou por um adulto qualquer. Crianças e adolescentes aderindo ao tráfico de drogas. Crianças sendo exploradas e se prostituindo. E o Estado, além de muita propaganda, cria uma lei que transforma em bandidos os pais que derem um bom puxão de orelhas num moleque pirracento ou num “aborrecente crisento” e carente de limites. Os pais que se preocupam em transformar seus filhos em seres humanos decentes pagam o pato.

f) O trânsito está cada vez mais caótico nas cidades e curiosamente, os metrôs nunca saem do papel ou das boas intenções. No entanto, já há uma prefeitura com brilhante projeto para tal problema: “proibir a construção de prédios novos com mais de uma vaga de garagem (sim, é sério, esse projeto existe!) e coibir ao máximo a abertura de estacionamentos nas regiões centrais. O Estado não faz o dever de casa. E joga a conta nas costas do cidadão médio que, claro, paga o pato.

g) Vários dos auto-proclamados “movimentos sociais” promovem invasões e depredações em terras alheias. Num caso, vi incêndio provocado por “desconhecidos”, que acampavam às margens de uma propriedade rural. (Os líderes desses movimentos dificilmente se identificam). O que fez o Estado? Incapaz de proporcionar segurança pública e estabilidade nas relações jurídicas, autuou o proprietário por delito ambiental. O mesmo foi reclamar do fato. Os órgãos ambientais criaram uma caça a “irregularidades” burocráticas, até se criar pretexto para autuar e multar o proprietário, que ao fim, pagou o pato.

h) O Estado brasileiro criou, em junho do ano 2000, a Agência Nacional de Águas (ANA), que em seu site proclama como sua missão“implementar e coordenar a gestão compartilhada e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso a água, promovendo seu uso sustentável em benefício das atuais e futuras gerações”.  Suponho que isso incluiria a gestão dos recursos hídricos, com vários dos métodos hoje existentes: captação e reaproveitamento de água de chuvas, diminuição do desperdício nas redes de distribuição dos próprios órgãos fornecedores, despoluição de bacias, incentivos fiscais à utilização de meios mais racionais para irrigação agrícola, fiscalização realmente rigorosa em relação às minerações próximas a nascentes, etc. Mas quinze anos se passaram desde a criação do órgão (e dos seus correspondentes estaduais) e o que vem ocorrendo é que, mesmo estando o Brasil assentado sobre uma das maiores – senão a maior – reserva hídrica do mundo, o Estado, junto com seus arautos da “patota consciente”, quer nos convencer que são o meu e o seu banho, leitor, os responsáveis por uma espécie de apocalipse hídrico que se avizinha.  Daí o “Leviatã” entra em cena para aumentar a conta de água, avizinhando-se o dia em que irá multar o cidadão por escovar os dentes com a torneira aberta. Água existe. Faltou a gestão. E, seja pelo desabastecimento, seja pelo aumento da conta ou pela a cantilena contra “o monstro que tem piscina em casa” (ou que se refresca com mangueiras na laje nos dias de calor), o cidadão comum paga o pato.

Percebam que há um “modus operandi” por trás de cada um desses exemplos: o Estado não faz o seu dever de casa. E, em face de cada um dos problemas, faz o que é mais fácil e conveniente, não sem antes provocar um escarcéu na imprensa, sempre com campanhas politicamente corretas apoiadas por artistas e outros “useful idiots” bem intencionados: joga o ônus de sua omissão nas costas do cidadão médio, daquele indivíduo identificável, com CPF e endereço certos. O Estado se comporta como o marido da piada: omisso, leniente, míope. A mulher da piada representa o dever que ele não cumpre. O outro, o “amante”, os problemas que não enfrenta. Os amigos que assistem à queima do sofá são os artistas e auto-proclamados “conscientes”, aboletados no seu conforto e na sua vaidade de se pretenderem moralmente superiores, com seus slogans prontos e rasos e sua auto-ilusão messiânica. (Afinal de contas, estão “salvando o mundo,” criando “uma nova sociedade”.)

E o sofá jogado fora e incendiado, com alarde, é o cidadão médio comum, identificável, com endereço certo, com CPF. Aquele que trabalha, que quer que suas crianças durmam cedo e comam frutas, que quer juntar algum dinheiro para sua velhice, que quer segurança e respeita a polícia e o Estado, que se preocupa com as contas e com os impostos, que acha feio jogar papel nas ruas, que tem medo de bandido.

Aquele que, com todos os seus defeitos, neuroses e pecadilhos, preocupa-se em cumprir as leis. Aquele que, ao final, paga o pato. Sinto informar, mas o sofá somos eu e você. Pensando bem, o pato também.

Espiritualidade e paensamento liberal

Por Rodrigo Constantino, em seu blog no site da Veja

O Instituto Liberal está com uma nova série chamada “Espiritualidade e pensamento liberal”, criada por Lucas Berlanza, que tenta compreender melhor, por meio de entrevistas, qual a possível ligação entre religião e liberalismo. Fui o primeiro entrevistado da série. Segue a entrevista abaixo:

Neste primeiro momento, começarei sempre pedindo ao entrevistado uma definição básica de sua crença. No seu caso, como se apresenta como ateu, pergunto apenas: esse ateísmo consiste na negação convicta de que Deus existe, ou está mais para o agnosticismo (isto é, haveria dúvida, com tendência a negar)?

Está mais para um agnosticismo filosófico. Se não há provas, então não posso afirmar que Deus existe. Mas o ateísmo militante, que garante a não-existência, parece insustentável também. Não se prova a inexistência de algo usando o conceito de refutabilidade popperiana. Quando me digo ateu, é mais porque todos somos “ateus” em relação aos deuses dos outros. Ninguém hoje se diz “agnóstico” em relação a Zeus. Mas quando se trata do conceito mais amplo e abstrato de “uma força superior” ou um “criador” de tudo isso, acho que o agnosticismo é mesmo a postura filosófica mais adequada.

Para firmar sua convicção como ateu, você teve alguma influência de autores com a mesma posição ou é apenas uma disposição pessoal isolada? Se você se inspira em alguns, quais seriam eles? As produções textuais desses autores, se existem, têm alguma implicação política?

Se não me falha a memória, foi com 16 ou 17 anos que me defini como ateu. O caminho foi o comum: questionamentos e reflexões sobre a incoerência de alguns postulados religiosos, e o dilema atribuído a Epicuro: Deus deseja prevenir o mal, mas não é capaz? Então não é onipotente. É capaz, mas não deseja? Então é malevolente. É capaz e deseja? Então por que o mal existe? Não é capaz e nem deseja? Então por que lhe chamamos Deus? Com o tempo, passei a ler alguns ateus sim, como George H. Smith, Dawkins, Sam Harris, Michel Onfray. Acho que há implicação política nesses escritos, e hoje entendo que há um lado negativo também, pois o que começa como apelo à racionalidade e à tolerância pode muito bem terminar como uma nova forma de seita irracional e intolerante.

Como você encara a “religião”? O que é a religião para você, e qual o lugar dela no mundo?

Vejo a religião como  uma tentativa de o ser humano se “re-ligar” a um sentido pleno para a própria vida, a algo maior que justifique nossa existência e, talvez mais importante ainda, console nossa finitude. Talvez seja uma forma primitiva de filosofia, talvez seja a filosofia possível para as massas. Não um ópio, como dizia Marx, mas uma espécie de amuleto necessário para muitos, sob o risco de caírem no niilismo destrutivo sem ele. A busca de algo mais elevado, eterno, em meio a uma vida um tanto sem sentido e efêmera. Pode despertar sentimentos nobres, e pode, se virar dogmatismo exacerbado, descambar para o fundamentalismo intransigente.

A religião é constantemente apontada como motivação para conflitos políticos, guerras, opressões das mais variadas espécies, sendo isso normalmente feito por teóricos e militantes de esquerda – na maioria das vezes, apontando suas munições contra as tradições cristãs, preponderantes no que se convencionou chamar de Ocidente. Analisando a questão sob o ponto de vista mais genérico, e também especificando na forma como ela é tratada no mundo ocidental atualmente, você concorda com essa ideia de que a religião seria uma grande vilã na história humana?

Não. Acho que já foi pretexto para muito conflito, sem dúvida, e é tolice negar um fato histórico, mas é absolutamente ingênuo e romântico colocar a culpa na religião em si, como se fosse possível viver em paz eterna só abandonando Deus. O homem lutaria pela ideologia (uma religião secular), pelo time de futebol, pela propriedade, etc. A música de John Lennon, “Imagine”, especula como seria lindo abrir mão da religião e todos viverem felizes em comunhão. Isso é utopia. Uma perigosa utopia. Os comunistas atacaram as religiões, criando uma laica muito mais fanática, e deu no que deu. Os jacobinos, antes dos bolcheviques, também atacaram com fúria e ódio a religião, sem perceber que a sua fé nada tinha de racional. A Notre Dame virou o “templo da razão”, de forma arrogante, enquanto vidas inocentes eram ceifadas pelas guilhotinas do Terror. A esquerda ataca a religião pois quer o monopólio da virtude e de nossas consciências. Se não temos as respostas básicas, então sejamos tolerantes de verdade, em vez de endossar uma cartilha que supostamente já chegou a todas as respostas de maneira “racional”.

Há também os que afirmam o contrário; para eles, seriam religiosas as matrizes culturais das maiores conquistas da civilização, e os princípios políticos e éticos mais eficazes e nobres – normalmente, sob uma perspectiva liberal ou conservadora – viriam dessa fonte. Em que medida estão certos ou errados os que o afirmam? De que maneira um ateu pode encarar essa ideia?

Estão parcialmente certos, creio eu. Sem dúvida a religião contribuiu com muito dos valores da civilização ocidental. O próprio foco no indivíduo terá ligação com o Cristianismo. Mas os conservadores que lembram esse legado positivo costumam ignorar o lado mais sombrio, talvez por se colocarem na defensiva contra a difamação da esquerda. Um índice de livros proibidos, por exemplo, é inadmissível do ponto de vista liberal, assim como tantas atitudes bárbaras da Inquisição. É preciso ter em mente que as religiões foram “domesticadas” no Ocidente. O Iluminismo, especialmente o francês racionalista, merece muitas críticas pela arrogância, mas serviu para importantes conquistas que mitigaram os riscos do fanatismo religioso.

O que você, como ateu e liberal clássico, pensa sobre as discussões entre religião e política na atualidade? Qual seria o ponto de interseção, onde deveria haver maior afastamento? Qual a intensidade exata em que uma pode se fazer presente na outra?

Sou defensor, naturalmente, de um Estado laico, ou seja, que separa a religião do Estado, por entender que cada cidadão tem direito à sua própria crença e que o Estado não deve ter uma religião oficial. Mas acho que fomos longe demais com esse conceito, e hoje Estado laico mais parece Estado antirreligioso. As pessoas acham que as crenças religiosas devem ficar totalmente afastadas de qualquer debate público, mas isso não faz sentido se muitos valores morais são derivados das crenças religiosas. E achar que é possível responder a todos os dilemas éticos com base somente na razão é um tanto arrogante e temerário. Logo, estou com Michael Sandel nessa: o Estado não deve ser religioso, mas os religiosos podem trazer ao debate público suas crenças e tentar influenciar as decisões coletivas com base nelas.

Que benefícios uma ordem liberal pode trazer às mais diversas comunidades religiosas? Você acredita que a maioria dos religiosos está disposta a compreender esses benefícios?

O maior benefício é garantir a própria liberdade religiosa e de consciência. Política é a decisão da maioria, e a grande conquista ocidental foi preservar os direitos das minorias nesse modelo. O risco para o crente que defende mais simbiose entre religião e Estado é viver sob uma maioria que adota uma fé diferente da sua. Como fica? Logo, o melhor mecanismo de defesa é a ordem liberal, para que cada um tenha garantida a sua própria fé, sem medo de retaliação ou punição pelo “crime” de apostasia ou heresia. Acho que muitos religiosos já compreendem bem isso. Minorias religiosas costumaram ser perseguidas historicamente, e perseguiram outras quando tomaram o poder. O melhor antídoto é defender como um princípio básico e inegociável o direito independente de crença religiosa.

Por fim, você considera que temos um debate cultural interessante a provocar, estimulando integrantes de comunidades religiosas a promover um diálogo entre suas correntes e o pensamento liberal, chamando a atenção de seus companheiros de crença para a reflexão sobre o tema?

Sim, acho que é uma iniciativa válida, mas deve ser tratada com cautela. Mises, um grande liberal, achava que o liberalismo não devia se meter com religião, pois um fala de coisas terrenas, e outro do pós-morte. Não concordo muito, pelos motivos expostos acima, mas entendo seu receio: o tema religioso pode produzir faíscas e brigas até mesmo dentro de grupos liberais, pois é caro demais aos religiosos. O desafio é trazer o assunto religião para o debate liberal sem produzir ressentimento nas partes envolvidas. Acho louvável a empreitada. Existem muitos religiosos liberais por aí, e muitos ateus autoritários. A crença religiosa não define a postura ideológica. O liberal saberá respeitar a crença alheia, e defender uma postura de tolerância, dentro dos limites da própria sobrevivência da tolerância e das liberdades individuais básicas.

Fonte: Veja + Instituto Liberal

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