Pequim pode determinar se a guerra comercial será um jogo perde-perde, ganha-perde ou ganha-ganha (MARCOS SAWAYA JANK)

Publicado em 29/03/2018 08:16
Leia também: "O STF e uma confusão rural, por Pedro de Camargo Neto", no ESTADÃO.

Está cada vez mais claro que o foco da nova guerra comercial lançada por Trump é a China.

Para vencer a competição estratégica com o país asiático, os EUA acabam de soltar uma nova batelada de restrições comerciais, financeiras e de transferência de tecnologia que podem atingir o coração da competitividade chinesa. Exemplos são a imposição de tarifas de 25% sobre produtos de alta tecnologia que representam até US$ 60 bilhões em exportações chinesas e uma interferência inédita do governo americano em processos de fusão e aquisição de empresas, ilustrada no caso Qualcomm vs. Broadcom.

Em contrapartida, a China anunciou que poderá restringir a soja, a carne suína e os vinhos dos EUA, além de outras retaliações.

O pano de fundo da queixa é o fato de os EUA importarem US$ 490 bilhões da China e exportarem apenas US$ 115 bilhões, o que gera déficit anual de US$ 375 bilhões com o país asiático. Os EUA querem reduzir o valor em US$ 100 bilhões ainda neste ano.

Vejo três resultados possíveis para o conflito EUA-China.

O primeiro seria uma escalada global sem retorno de medidas protecionistas e retaliações, que ricochetearia no mundo todo produzindo resultados líquidos negativos ao afetar o comércio, os investimentos e o crescimento econômico.

O mundo já viveu tempos sombrios dessa natureza. Mesmo que possamos no curto prazo nos beneficiar das retaliações chinesas em algumas commodities, não creio que haverá o que comemorar no longo prazo num cenário de guerra comercial generalizada.

O segundo resultado, mais provável no meu entendimento, seria um grande acordo bilateral entre os dois megaplayers após o tiroteio protecionista, com concessões pontuais da China para manter o status quo. Infelizmente nesse cenário o Brasil pode sair perdendo, pois a pauta de exportações dos Estados Unidos para a China é altamente “commoditizada” e curiosamente muito parecida com a nossa.

O Brasil detém hoje o terceiro maior superávit comercial do planeta com a China, calcado na exportação de commodities como soja e carnes, nas quais o nosso maior concorrente são os Estados Unidos. Um acerto mercantilista entre EUA e China, feito à revelia das regras multilaterais, pode cortar as nossas pernas.

Mas há um terceiro cenário sobre o qual ainda se fala pouco, e que pode ter resultados positivos tanto para mitigar o conflito bilateral como para o mundo. Esse caminho virtuoso seria a China ocupar o vácuo deixado pelos EUA e assumir um papel protagonista no cenário global como defensora da globalização, do livre-comércio e da sustentabilidade.

O país ainda está longe de substituir os EUA como maior shopping center do planeta. O crescimento meteórico chinês foi puxado por exportações hipercompetitivas, mas o país ainda restringe importações e não trata o investidor estrangeiro da mesma forma que o nacional.

No fim do ano passado, a China anunciou uma nova estratégia de longo prazo pró-importações. Em novembro vai ocorrer a Shanghai International Import Expo (CIIE), patrocinada pelo líder Xi Jinping com o objetivo de buscar uma inserção internacional mais equilibrada do país, que incluiria a redução do atual superávit comercial chinês que supera US$ 500 bilhões.

Analistas chineses afirmam que importar mais beneficiaria não apenas a competitividade das exportações, mas criaria ainda um “bem público” global que ajudaria a consolidar a liderança que a China quer exercer no cenário internacional.

A guerra comercial começou com Trump abandonando tudo o que os EUA promoveram nos últimos 70 anos. Mas é Pequim que vai determinar se ela será um jogo perde-perde, ganha-perde ou ganha-ganha.

(*) Marcos Sawaya Jank é engenheiro-agrônomo e especialista em questões globais do agronegócio.

No Estadão: O STF e uma confusão rural, por Pedro de Camargo Neto

Casuísmos e incoerências do Supremo Tribunal Federal (STF) não se verificam somente em casos de importância histórica para a Nação, como na questão da prisão de condenados em segundo grau. Infelizmente, existem muitas outras ocorrências. No setor rural, um caso de menor relevância, embora gravíssimo para milhares de produtores rurais, trata da constitucionalidade da cobrança da contribuição social do empregador rural pessoa física (Funrural).

Compreender a estrutura tributária e de contribuições sociais do Brasil não é tarefa fácil. Advogados e contadores quase sempre conseguem desenvolver interpretações divergentes, criando permanentemente contenciosos nos tribunais administrativos e judiciais. A confusão existente é parte importante do chamado custo Brasil, grave empecilho para o maior desenvolvimento nacional. O Funrural é um grande exemplo dos absurdos brasileiros. Nunca teve interpretação tranquila. A legislação mais antiga, a antiga e a atual atribui ao adquirente da produção de produtor rural que atue como pessoa física a responsabilidade pela dedução do valor devido pelo produtor e pelo recolhimento aos cofres públicos. 

Em 2010, por decisão unânime, o STF julgou inconstitucional a contribuição por entender que a contribuição previdenciária havia sido instituída por lei ordinária, e não por lei complementar, como deveria ter sido. Embora essa decisão de 2010 fosse singular, aplicada unicamente ao processo julgado, acabou refletindo em percepção sobre a inconstitucionalidade do Funrural. Induziu milhares de adquirentes e, na sequência, produtores a procurarem o Poder Judiciário, obtendo decisões liminares de primeira instância, posteriormente mantidas em muitos Tribunais Regionais Federais. Em 2011, durante a tramitação de outra ação, novamente foi considerado inconstitucional.

A lentidão do Poder Judiciário, existente não apenas no STF, permitiu criar a confusão que ora enfrentamos. Passamos a ter adquirentes de produção rural que descontavam a contribuição dos produtores e recolhiam aos cofres públicos; adquirentes que não descontavam e não recolhiam, por serem detentores de medida do Poder Judiciário caracterizando a contribuição como inconstitucional; e produtores que recorreram ao Poder Judiciário e instruíram adquirentes a não descontar a contribuição, criando por longo período uma heterogeneidade entre iguais, que representou grave distorção.

Em abril de 2017 o plenário da Suprema Corte decidiu reexaminar a questão, introduzindo o que entenderam como novos elementos, embora nem tão novos fossem, pois já existiam em 2010. Dessa vez decidiram pela constitucionalidade do Funrural. Essa decisão alterou o entendimento até então existente, que vigorou por sete anos. 

O passivo criado a adquirentes e milhares de produtores rurais (*) pelo novo entendimento do STF e, mais do que isso, a insegurança jurídica provocada por essa alteração jurisprudencial tornam esses produtores inviáveis. O julgamento dos embargos declaratórios dessa decisão do STF não foi ainda realizado. Sete anos é muito tempo, agora oito, para uma questão desse nível de gravidade permanecer em suspenso. Justiça lenta é falta de justiça. 

Como explicar uma reversão de interpretação dessa magnitude? A primeira, obtida por unanimidade na Suprema Corte; a mudança, em julgamento no qual, por maioria de 6 votos a 5, ficou entendido o inverso. Em sete anos ministros se aposentaram e chegaram outros. Mesmo assim, houve ministros que mudaram sua interpretação. 

Compreender é praticamente impossível. A lei antiga deixou de transcrever incisos, somente o caput de um artigo da lei, que fixava as alíquotas na lei mais antiga. Como a lei foi declarada inconstitucional, esse artigo não existiria, tese reforçada por resolução Senado que estava esquecida, porém foi votada após a decisão de 2017. E a nova lei – que foi prorrogada, aprovada, sancionada e aguarda a votação no Legislativo de vetos do Executivo – já começa a ser contestada, existindo até decisões nos tribunais de Mato Grosso do Sul.

A Sociedade Rural Brasileira participa do processo no STF como amicus curiae desde 2015. Após a decisão de 2017 apresentou embargos solicitando a modulação dos efeitos da decisão, isto é, pleiteia que a nova interpretação do STF seja válida para o futuro e que para o passado seja válida a interpretação antiga.

Um significativo valor deixou de ser recolhido aos cofres públicos. Responsabilidade de quem? Do adquirente de produto agropecuário que, induzido por decisão unânime do STF e amparado pelo Poder Judiciário, não recolheu, pois seria uma contribuição inconstitucional; no momento em que um adquirente deixou de descontar do produtor, criou pressão de mercado, levando seu concorrente a procurar a mesma condição. Do produtor rural que, com a percepção criada de que se tratava de contribuição ilegal, obteve medida do Poder Judiciário para o não pagamento. Do Poder Executivo, que assistiu à perda de arrecadação, porém aguardou calmamente o Poder Judiciário se pronunciar, sem procurar desenvolver junto ao Poder Legislativo uma interpretação sem margem de dúvida nesse longo período. Do Poder Judiciário, que parece não ter pressa em atender às demandas por equidade e justiça da sociedade e quando o faz, após sete anos, decide inverter uma interpretação anteriormente unânime.

Após a decisão de março de 2017 no STF, o Poder Executivo encaminhou medida provisória com o ordenamento da cobrança do passivo criado pelo não recolhimento. O Poder Legislativo atuou emendando a legislação, numa tramitação tumultuada. Datas prorrogadas, inserção de novas questões, acordos não cumpridos e vetos ainda a serem votados no Legislativo. Desgaste político para todos. Um problema criado no Poder Judiciário somente lá consegue ser resolvido.

Pedro de Camargo Neto é EX-PRESIDENTE DA SOCIEDADE RURAL BRASILEIRA

(*) O autor não tem passivo referente ao Funrural.

Fonte: Estadão

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