A manchete do Estadão nesta sexta é esta: “Dilma diz que real valorizado e ruim e vai mexer no câmbio”. Trata-se de uma síntese, com um quezinho de interpretação, do que disse a presidente eleita em Seul, onde se encontrava para a reunião do G20. Mas se trata, sem dúvida, de uma síntese correta. Eu mesmo comentei aqui a fala cheia de mistérios de Dilma. Segundo disse, apelando a Churchill, “tem certas medidas que a gente não confessa nem para nós mesmos”. Falava justamente do real supervalorizado. Vai saber que diabos pensava naquela hora… Que coisa, não? E pensar que o segundo turno das eleições presidenciais aconteceu há apenas 12 dias, sem que se tenha tocado nessa questão!
De quem é a culpa? Da oposição? De José Serra? Ora, imaginem o adversário de Lula (era ele quem disputava afinal…), tratado pelo Babalorixá como o “candidato da turma da contra”, metendo-se a propor medidas para corrigir a distorção cambial, tocando, então, para alguns, no sacrossanto tripé da estabilidade: câmbio flutuante, metas de inflação e ajuste fiscal!!! Seria sacrificado na pira do colunismo econômico. Cumpre notar de saída que um dos pés, o ajuste fiscal, já tinha ido para as cucuias fazia tempo.
Serra até que ensaiou, logo depois de deixar o governo para assumir a candidatura, uma crítica à política de câmbio e de juros. O mundo desabou sobre a sua cabeça. Ficou evidente que a candidatura seria sacudida por fortes turbulências — e a tarefa já não era fácil — se insistisse no assunto. Certamente seus interlocutores no partido e na campanha o aconselharam a deixar o tema de lado: arcano demais para a esmagadora maioria dos eleitores; explosivo em certos setores formadores de opinião que tomam o tal tripé como um fetiche. E insisto: a perna fiscal já tinha ido para o brejo fazia tempo. Cumpria exigir a adoração ao “câmbio flutuante”.
Não serei eu aqui a dar uma de Padre Quevedo — lembram-se dele, os mais maduros, no Fantástico? — e afirmar, como ele asseverada sobre os fantasmas, que “câmbio flutuante non ecziste“. Digamos que existem o câmbio fixo, determinado pelo Banco Central — aquilo que faz a China, por exemplo, dê-se à sua política o nome que for —, e o câmbio que mais ou menos flutua, com graus variados de intervenção dos governos. Ou alguém nega que o brasileiro está tentando interferir, embora não esteja conseguindo lograr êxito?
Como diria Lula, alguma coisa “vai ter de ser feita”, ou setores importantes da indústria brasileira vão para o ralo, junto com a balança comercial. O real hoje está mais valorizado do que no tempo do tal câmbio fixo, pouco antes da desvalorização empreendida logo no começo do segundo mandato de FHC. “Ah, mas agora está assim num regime de câmbio flutuante; antes, era no de câmbio fixo”. Certo. E daí? Isso caracteriza o “antes” e o “agora”, mas aonde nos leva? A lugar nenhum! Há certa dificuldade em reconhecer o problema? Há, sim.
No dia 2, na “entrevista da vitória” que Dilma concedeu ao Jornal Nacional, travou-se o seguinte diálogo:
Dilma: Eu acredito que a gente não pode correr o risco de querer menosprezar… Eu te diria assim: eu acho que o câmbio é flutuante. No entanto, indícios de que há hoje no mundo uma guerra cambial são muito fortes. Acho que tem moedas subvalorizadas. Eu acredito que uma das coisas importantes são as reuniões multilaterais em que fique claro que nós, por exemplo, iremos usar de todas as armas para impedir o dumping, a política de preços que prejudica as indústrias brasileiras, e vou olhar com muito cuidado, porque não acredito que manipular câmbio resolva coisa alguma. Nós temos uma péssima experiência disso.
Bonner: Manipular câmbio pelas mãos do governo?
Dilma: É, pelas mãos do governo e do Banco Central. Você se lembra do câmbio fixo? O que ele levou a Argentina e quase nos levou também? A uma situação de crise muito grande.
Bonner: Então a senhora está dizendo que qualquer modificação que virá não será no sentido de acabar com o câmbio flutuante?
Dilma: Não, de maneira alguma! Muito boa a sua pergunta, que me permite esclarecer. Eu tenho um compromisso forte com a questão dos pilares da estabilidade macroeconômica, um câmbio flutuante. E nós temos hoje uma quantidade de reservas que permite que a gente inclusive se proteja em relação a qualquer tipo de guerra ou de manipulação internacional.
Perguntem para um economista que sabe das coisas e que é hoje amigo do governo, Delfim Netto, o que acha da seqüência acima. Ora, que Dilma continue a chamar o câmbio de “flutuante”! O fato é que admitiu que vai ter de intervir muito mais do que faz hoje. Será “flutuante” porque não será “fixo”, à moda antiga, mas será preciso “mexer”, fazer alguma coisa. Atrelada à política de câmbio, há o outro assunto-tabu: a política de juros. Então vejam que coisa curiosa: a tarefa mais importante da presidente eleita, que vai se sentar na cadeira de Lula daqui a 48 dias, é articular uma resposta para temas que foram simplesmente interditados durante a campanha eleitoral. O primeiro que ousasse dizer o que diz Lula agora — “é preciso fazer alguma coisa” — corria o risco de ser tomado por alguém contaminado pelo vírus da heterodoxia.
Debate obscurantista
Aí, lamento, amplos setores da imprensa colaboraram com o que eu chamaria de “obscurantismo da continuidade”, com continuísmo (Dilma) ou sem (Serra) . Teria bastado olharpara o resto do mundo e constatar: 1) os fatores externos que hoje valorizam o real não cessarão da noite para o dia; 2) dada a sua continuidade, “alguma coisa” terá de ser feita para tentar conter seu efeito deletério na economia brasileira; 3) como o Brasil não pode decidir que política econômica os outros adotam, os instrumentos de intervenção serão internos.
A grande pergunta que deixou de ser feita aos candidatos é esta: “Assim, certamente, a coisa não ficará, ou o país vai para a breca: o que o (a) sr(a) pretende fazer se eleito(a)”. Mas não foi isso o que se viu, não! O candidato era obrigado a ajoelhar no milho e assegurar: nada muda! E então poderia cuidar de outros assuntos. Vejam lá: ainda no dia 2, já vitoriosa, Dilma não precisou reiterar na TV Globo que acredita em Deus, mas expressou a sua fé irrestrita no “câmbio flutuante”.
Qual é a melhor política cambial? A que funciona.
Qual é a melhor política de juros? A que funciona.
Qual é o melhor gato? O que caça ratos.
É curioso ver os caminhos que certo debate toma no país. Os que tratavam Serra como se chutasse a santa quando fazia restrições à política cambial eram, em muitos casos, os mesmos que o tratavam como se chutasse a santa quando reclamava, no primeiro mandato de FHC, do câmbio fixo… E o câmbio fixo foi fundamental para consolidar o real? Eu acho que foi. Até que deixou de caçar ratos, entenderam?
O câmbio continuará “flutuante”? Sim, continuará! Se preciso, chamaremos até uma estaca de flutuante. Mas, como diria Camões, não será mais “como soía”.
E aprendemos todos, um tanto constrangidos, uma lição desagradável: AGORA QUE A ELEIÇÃO PASSOU, ENTÃO JÁ DÁ PARA DEBATER O QUE REALMENTE TEM IMPORTÂNCIA!