“O PT está hoje muito maior, muito mais consolidado, mais calejado, muito mais senhor da situação. Não existe na história da humanidade, na história política do mundo, um partido que estando no poder não tenha cometido erros. Isso aconteceu no mundo inteiro e aconteceu no PT. O que nós precisamos é ter clareza que os erros cometidos devem servir de ensinamentos para que a gente não erre outra vez.”
A fala acima, vocês certamente não tiveram de recorrer à adivinhação, é do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele a pronunciou ontem, quando foi votar no processo eleitoral interno que escolhe a nova direção do partido. José Eduardo Dutra, ex-senador e ex-presidente da Petrobras, será eleito. A questão é saber se ganha no primeiro turno, o mais provável, ou disputa o segundo com o atual secretário-geral, José Eduardo Cardozo, ligado ao ministro da Justiça, Tarso Genro. Com Dutra (e também seria assim com Cardozo), voltarão ao comando do partido José Dirceu, José Genoino e João Paulo Cunha, todos réus, entre outros, no processo do mensalão.
A fala de Lula é essencialmente indecorosa e dá conta do laxismo moral que vigora no partido. Não se trata, como é notório, de avaliar ações impróprias de indivíduos na esfera privada — embora estas tenham, sim, importância se colidirem com o discurso público do político; já escrevi muito sobre isso; não faltarão boas chances para fazê-lo de novo em futuro próximo. Estamos falando, nesse caso, de atos cometidos por políticos envolvendo dinheiro público, instituições públicas, políticas públicas. Lula, “o filho do Brasil”, realmente pariu um modo nefasto de fazer política: as ações bem-sucedidas de seu governo — ou simplesmente o cumprimento de obrigações, já que está lá para aplicar o dinheiro que o estado toma da sociedade — ganham logo o ar de ineditismo: “Nunca antes na história destepaiz…”
Quando seu governo acerta, nunca se viu nada igual, e os que vieram antes dele só fizeram bobagens e prejudicaram o Brasil. Quando se está diante do erro, da vigarice, da mais descarada sem-vergonhice, bem, então aí “JÁ SE VIU ISSO ANTES NESTEPAIZ”. Não só “nestepaiz”. Também “estemundo” assistiu a coisas semelhantes. Para Lula, no que acerta, o PT é único; no que erra, nada mais faz do que repetir procedimentos alheios.
Ora, não é nenhuma surpresa o fato de que a verdade está no exato contrário. O que há de bom no governo Lula não é novo, e o que ele fez de realmente novo não é bom. E estou me lixando se os 80% que o aprovam sabem ou não disso. Não sou político. Não preciso poupar Lula para não perder voto. Eu até diria que é o inverso: quanto mais os seus entusiastas discordarem do que escrevo, mais sinto que devo escrever para que essa discordância se aclare. É assim que me sinto testando o limite deles, bem pequeno, de tolerância com a crítica.
Como sabem todos os que se dedicam a um exame objetivo da situação política e econômica do Brasil, o maior acerto de Lula está na continuidade, e sua grande sorte, como notou a revista The Economist no especial sobre o Brasil, foi suceder FHC, que arrumou a economia com o Plano Real e estabeleceu o tripé da estabilidade: disciplina fiscal, política de metas de inflação e câmbio flutuante. Não há aqui questão de gosto, mas de fato. Mesmo os programas sociais são a ampliação de políticas herdadas do antecessor — se expandi-las brutalmente, como se fez, foi um acerto dará um bom debate um dia. O “nunca antes nestepaiz” de Lula é, com efeito, um “déjà-vu”robustecido pela máquina de propaganda.
Mas o petismo, com efeito, também se realizou o famoso “nunca antes na história destepaiz”. O mensalão, com efeito, foi coisa inédita. A conversa mole de que se trata de uma reutilização do chamado “valerioduto mineiro” é conversa de mentirosos, de vigaristas. Não que o tal esquema que vigorou em Minas tenha sido algo honrado, que doure a política com brocados morais. Foi uma sem-vergonhice também. Mas foi outra sem-vergonhice: ali, com efeito, se deu o que Delúbio Soares, num rasgo poético, classificou de “recursos não-contabilizados de campanha” — ou seja: caixa dois. O mensalão petista, sem deixar de ser também isso, foi muito mais do que isso como testemunharam muitos de seus participantes — e o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), que botou a boca no trombone, é sua testemunha mais eloqüente. O esquema montado partiu para a compra de partidos de porteira fechada; o esquema buscava influenciar votações no Congresso. Se tivesse prosperado, avançado, isso significaria que as leis no Brasil seriam definidas num fórum paralelo, clandestino.
Uma ova!!! Nunca antes na história destepaiz e destemundo se viu algo parecido. Talvez a antiga máfia italiana. Essa inovação criminosa é tipicamente petista, e, agora, os seus protagonistas estão de volta, abençoados pela atual cúpula partidária e, de fato, pela única instância decisória do PT: Lula. TENHO DE OBSERVAR AQUI QUE JAMAIS ACREDITEI QUE ELE PRÓPRIO NÃO SOUBESSE DO ESQUEMA; SÓ SE FOSSE IDIOTA, E EU JÁ ESCREVI QUE O CONSIDERO NOTAVELMENTE INTELIGENTE.
Diz o presidente que partidos que estão no poder cometem erros no mundo inteiro. Eu diria que os cometem até fora dele. Mas, nas democracias exemplares, os que erram, quando flagrados, são punidos. O exemplo mais saliente é Helmut Kohl, o ex-chanceler alemão que comandou o complicadíssimo processo de reunificação das duas Alemanhas. Admitiu que seu partido recebeu uma doação irregular de campanha de US$ 1 milhão —uma ninharia para padrões brasileiros. Sua carreira política morreu ali.
E no Brasil de Lula, aquele que fala lá no alto? Em 2002, o publicitário Duda Mendonça fez cinco campanhas para o PT, incluindo a de Lula. Cobrou, ao todo, R$ 25 milhões. Pois o partido depositou em uma conta secreta de Duda, nos EUA, a bagatela correspondente a R$ 10,5 milhões. Depósito feito em dólares em nome de uma empresa de fachada chamada Düsseldorf. Vejam que amador era o pobre, punido e esquecido Helmut Kohl, o homem que venceu o muro. Profissional é o PT! E Duda se explicou na CPI: “O dinheiro era claramente de caixa dois. Nós sabíamos, mas não tínhamos outra opção. Queríamos receber”.
Então Lula não venha com a história de que o seu partido fez o que qualquer partido no mundo faz. Como já se escreveu aqui — e o trecho foi parar em Máximas de Um País Mínimo, meu novo livro, que está estourando por aí —, “há, vocês sabem, muitas diferenças entre o que se chama ‘Primeiro Mundo’ e o tal ‘Terceiro Mundo’. Entre as mais evidentes, está o que eles fazem com os seus bandidos e o que nós fazermos com os nossos. Eles põem os deles na cadeia; nós pomos os nossos no poder.
PS - Claro, vocês não pode esquecer: Dilma também se regozijou com a volta desses companheiros. Se for eleita presidente, esses moralistas do mensalão certamente estarão dividindo com ela a difícil tarefa de governar… José Dirceu já é um dos manda-chuvas da campanha.