Velório de Marisa virou comício, e seu corpo, palanque (por REINALDO AZEVEDO)

Publicado em 05/02/2017 15:40
Na disputa eleitoral de 2002, Lula falou da morte da primeira mulher e chorou copiosamente diante das câmeras de Duda Mendonça (REINALDO AZEVEDO, VEJA.COM)

Todos sabem a dureza com que tratei, aqui e em toda parte, aqueles que resolveram fazer troça do estado de saúde de Marisa Letícia, mulher do ex-presidente Lula. Ou a contundência com que desqualifiquei os teóricos da conspiração, segundo os quais uma grande armação estaria em curso, com a participação até de médicos, para transformar a ex-primeira-dama em vítima, o que seria positivo para Lula. A Internet traz, como se sabe, o lixo nosso  — ou melhor: “deles” — de cada dia. E também antevi o óbvio: o PT iria, sim, fazer uso político da morte de Marisa. Infelizmente, já começou. E a personagem principal da indignidade é ninguém menos do que… Lula! É um espetáculo bastante constrangedor, mas está longe de ser inédito.

O discurso do marido de Marisa no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde se realizou o velório, está em toda parte. Ou melhor: a fala do líder máximo do PT em desagravo e homenagem à “companheira” circula por aí.  Mesmo quando evocou cenas domésticas, do cotidiano familiar, quem falava era o homem que, se a lei permitir, quer disputar de novo a Presidência da República em 2018. O velório de Marisa virou um comício, e seu corpo, um palanque.

Sim, é verdade! Tanto eu como os petistas não inovamos em 2017. Repetimos a postura que adotamos em 2009 e 2011, quando Dilma e Lula, respectivamente, tiveram câncer. Como assim?

Repudiei, então, as manifestações de grosseria nas redes sociais e cobrei que se conservasse o respeito humano de que ambos eram e são merecedores. Mas cumpre lembrar: foi a dupla a fazer um uso asqueroso da própria doença. A então “candidata Dilma” se tornou aquela que vencia até o inimigo invencível. Lula, em tempos de Lava Jato, trombeteou sobre si mesmo: nem o câncer o derruba…

Em 2002
Bem, meus caros: ao dar uma tradução política à morte da Marisa, Lula não inova: na campanha eleitoral de 2002, contou a história da primeira mulher, que morreu logo depois do parto. E ele o fez para as câmeras de Duda Mendonça, o marqueteiro. E chorou muito. Queria votos.

Não estou aqui a sugerir que a tristeza de Lula é falsa, arranjada, mera politicagem. Nada disso! Considero que a dor é verdadeira. Mas é perfeitamente possível fazer as duas coisas: sofrer e aproveitar a tragédia pessoal para… fazer política.

É claro que todos esperávamos que o marido exaltasse as virtudes cívicas da mulher e asseverasse a sua inocência. Afinal, ela era ré em duas ações penais. Segundo Lula, era “morreu triste”. Bem, meus caros, até aí, vá lá, nada de surpreendente ou censurável. Ocorre que ele foi muito além disso. Disse, por exemplo:

“Ela está com uma estrelinha do PT no seu vestido, e eu tenho orgulho dessa mulher. Muitas vezes essa molecada [os sindicalistas] dormia no chão da praça da matriz [de São Bernardo do Campo] e a Marisa e outras companheiras vendendo bandeira, vendendo camiseta para a gente construir um partido que a direita quer destruir”.

Pronto! A Marisa morta se transformava ali num símbolo. E o ex-presidente não hesitou em usar o cadáver como arma: “Na verdade, Marisa morreu triste. Porque a canalhice que fizeram com ela… E a imbecilidade e a maldade que fizeram com ela… Eu vou dedicar… Eu tenho 71 anos, não sei quando Deus me levará, acho que vou viver muito porque eu quero provar que os facínoras que levantaram leviandade com a Marisa tenham, um dia, a humildade de pedir desculpas a ela”.

A fala do bispo
O discurso de Lula foi o “grande momento” de um ato religioso oficiado por dom Angélico Bernardino, bispo emérito de Blumenau (SC) e conhecido padre de passeata. Aliás, antes mesmo que Lula enveredasse para a política, foi o homem de batina quem disparou: “A Marisa Letícia foi uma guerreira na luta a favor da classe trabalhadora. Atentem para as reformas trabalhistas que sejam contra os trabalhadores; a reforma da Previdência, contra pobres e assalariados. É preciso que estejamos atentos”.

Não se contentou. Para ele, a crise econômica “é falsamente atribuída à administração dos dois últimos governos”. Por “dois últimos”, entenda-se, está se referindo às gestões Lula e Dilma. Para o bispo, o responsável deve ser, sei lá, FHC!

Vamos ver o que vem por aí. Pudor, já deu para perceber, não haverá. Nem medida.

E noto algo curioso: reuniam-se, em perfeita comunhão, os esquerdistas ideológicos, os sindicalistas e a Igreja Católica dos vermelhos. A exemplo do que se via nos primeiros anos de existência do PT.

Lula fazia uma aparente exumação do passado para usar Marisa como instrumento de lutas futuras.

Lula discursa em velório. Na foto, a esquerda ideológica (Rui Falcão, de vermelho), os sindicalistas e a igreja de esquerda, representada por Dom Angélico Bernardino (de cabelo branco, à direita do ex-presidente

Lula discursa em velório como viúvo de comício, POR JOSIAS DE SOUZA (UOL)

A morte é um evento caprichoso e unívoco. Não segue regras. E não se presta a interpretações. A morte simplesmente mata. É sua função. E ela a exerce quando e da maneira que bem entende. A vingança mais eficaz contra a compulsoriedade da morte é o protesto do silêncio. E a melhor homenagem aos mortos é não os esquecer.

De resto, reza a praxe que, na vigília aos mortos, os vivos tenham sempre no bolso uma oração ou meia dúzia de parágrafos sobre sentimentos como amor e saudade. Mas os tempos estão mudados. No velório de Marisa Letícia, Lula tinha à mão um comício. Esguichou lágrimas de Lava Jato:

''Marisa morreu triste porque a canalhice, a leviandade e a maldade que fizeram com ela…”, declarou Lula. “Acho que ainda vou viver muito, porque quero provar para os facínoras… Que eles tenham um dia a humildade de pedir desculpas a essa mulher. Esse homem que está enterrando sua mulher não tem medo de ser preso.”

Considerando-se sua origem e trajetória, Marisa foi uma mulher notável. Na passagem por Brasília, deixou como legado a mais fabulosa marca que uma primeira-dama pode proporcionar: a invisibilidade. Por sorte, Lula ainda vai “viver muito”. Entre um e outro discurso contra os “facínoras”, há de encontrar tempo para explicar por que permitiu que sua mulher virasse matéria-prima para inquérito.

Numa das encrencas que lhe renderam indiciamento, Lula é investigado por ocupar uma cobertura vizinha à que mora, em São Bernardo. Para os investigadores da Lava Jato, o imóvel foi comprado com dinheiro de corrupção. A defesa de Lula alega que a cobertura foi alugada. O contrato de locação traz a assinatura de Marisa.

Um dia Lula talvez tenha “a humildade de pedir desculpas a essa mulher” por ter permitido que a assinatura dela fosse empurrada para dentro de papéis tóxicos. Nesse dia, o morubixaba do PT perceberá que o papel de viúvo de comício não combina com a imagem de marido zeloso. Marisa Letícia não merecia que, no seu velório,  a virtude fosse transformada apenas num trissílabo como, digamos, eleitoral.

Advogados de Marisa emitem nota: o próprio e o impróprio

Até onde se sabe, Marisa foi informada há 10 anos da existência de aneurisma, que ninguém sabe quando se formou (REINALDO AZEVEDO)

Os advogados Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Martins, Larissa Teixeira e Roberto Teixeira emitiram uma nota nesta sexta sobre a morte de Marisa Letícia.

Compreende-se. Falam ali os defensores e amigos. Martins é casado com Valeska, filha de Teixeira, padrinho de um dos filhos de Lula e, creio, o mais antigo amigo do casal Lula da Silva que se conhece.

A nota dos advogados não surpreende no que concerne à culpa ou à inocência de Marisa — só faltava ser o contrário. Também se espera que desqualifiquem, como fizeram, a acusação e que coloquem em dúvida a honorabilidade dos acusadores. Até aí, tudo dentro do esperado.

Mas o texto também dá uma escorregada.

Vamos a ele.

“Marisa não poderá, lamentavelmente, ver triunfar o reconhecimento de sua inocência por um juiz imparcial.

A consequência jurídica do seu falecimento nesta data (03.02.2017) será a extinção, em relação a ela, das duas ações penais propostas — de forma irresponsável — pelo Ministério Público Federal.

Foi com muito orgulho que atuamos na defesa de uma pessoa digna e honesta, que foi injustamente perseguida e vítima de falsas acusações.

Reafirmamos nossa expectativa de que prevaleça a justiça nas ações que propusemos em seu favor, com o objetivo de reparar sua honra e imagem e ainda responsabilizar aqueles que cometeram os atos ilegais e arbitrários que resultaram nas violações que tanto a impactaram.

Em 4 de março de 2016, D. Marisa teve sua casa invadida por um exército de policiais e viu sua vida e intimidade, assim como a de seus filhos e netos, expostas na mídia nacional e internacional. Os danos foram insuperáveis.

Reafirmamos igualmente o compromisso de lutar por uma justiça imparcial, fundamental ao Estado Democrático de Direito.”

Retomo
Há uma frase excessiva, injustificável: “Os danos foram insuperáveis”. É evidente que fica a sugestão de que o evento que colheu Marisa deriva da investigação e, em particular, da ação da Polícia Federal.

E, obviamente, as coisas não se dão desse modo. Marisa sabia, por exemplo, ser portadora de um aneurisma. Há escolhas aí.

Com efeito, uma vez portadora de tal problema, a tensão constante, a irritação, os embates… Num hipertenso, por exemplo, pode-se estar com uma bomba-relógio.

Obviamente não faz sentido ignorar a quadra então vivida por Marisa ao tratar do mal que a colheu. Mas é despropositado sugerir que, não fosse isso, tudo estaria bem.

Errado. Até onde se sabe, Marisa foi informada há 10 anos da existência de aneurisma, que ninguém sabe quando se formou.

Dizer o quê? Em 2006, Lula era um semideus. Reelegeu-se para a Presidência, e nada havia contra ele — de pessoal ao menos — ou contra sua mulher.

Ainda assim, lá estava o aneurisma.

É preciso tomar muito cuidado com essas coisas. De todos os lados.

Vimos o presidente Michel Temer ser hostilizado ao visitar Lula e família no hospital. É impróprio. É errado. É inútil.

Quanto à exploração vigarista nas redes, com meliantes morais atacando o ex-presidente e sua família em razão da tragédia por eles vivida, dizer o quê?

Nenhum bicho alcançou o que, humanos, alcançamos. Em maravilha e abjeção.

Merval Pereira: Atravessando a pinguela

Publicado no Globo
A situação do presidente Michel Temer não pode ser comparada à daquele sujeito que, caindo do 23 andar de um prédio, ao passar pelo 15 diz: “Até aqui, tudo bem”. A imagem mais apropriada é a de quem está atravessando uma pinguela precária, na concepção do ex-presidente Fernando Henrique, e pode dizer aliviado: “Até aqui, tudo bem”.
As chances de atravessar até o outro lado vão aumentando à medida que confirma uma base parlamentar tão sólida quanto a que elegeu nos últimos dias o deputado Rodrigo Maia para a presidência da Câmara e o senador Eunício Oliveira para a presidência do Senado. Sobretudo quando os dois se comprometeram publicamente com as reformas estruturantes que o governo está enviando para o Congresso.
Chegar à outra margem, e ter dali em diante uma perspectiva positiva pela frente, depende do sucesso das reformas, que teoricamente levarão a uma recuperação da economia. Os primeiros sinais estão surgindo, tênues, mas dependem da estabilidade política para se concretizarem.
E são os percalços políticos, principalmente os que a Operação Lava Jato coloca no caminho dos parlamentares que dão apoio ao governo Temer, que poderão impedir o sucesso da travessia da pinguela. Para os que se anunciavam como “profissionais da política”, os erros na gestão do governo podem ofuscar os êxitos no Congresso.
Lá, eles sabem agir, têm o know-how da negociação política que faz com que o PMDB seja o partido que está sempre no Poder. Ninguém consegue ser presidente de um partido desses por tanto tempo, e ter sido presidente da Câmara por quatro vezes, à toa.
Mas é justamente essa expertise de Temer e seus principais auxiliares que pode interromper a travessia e inviabilizar planos mais ambiciosos, como veremos mais adiante. A mais recente trapalhada política foi a nomeação de Moreira Franco para o ministério, recriando a Secretaria-Geral da Presidência. Não há explicação para o fato de Moreira, um dos principais aliados políticos de Temer, não ter sido ministro desde o início do governo, o que seria o normal.
Mas, como havia a promessa de reduzir o número de ministérios, Moreira acabou virando um assessor especial que tinha mais força que qualquer ministro. Agora, diante da possibilidade real de que seu nome apareça nas delações da Odebrecht, ele vira ministro formalmente, atrás do foro privilegiado.
Sua situação é diferente da de Lula quando foi nomeado Chefe do Gabinete Civil por Dilma. Naquela ocasião, o ex-presidente já era investigado formalmente pela Polícia Federal e, doze dias antes, havia sido levado coercitivamente para depor.
Como ficou revelado nas conversas telefônicas, havia o receio de seus companheiros de que fosse preso a qualquer momento, caindo no Juízo de Sérgio Moro em Curitiba. Moreira, apesar de ter sido citado em algumas delações que vazaram para a imprensa, não tem nenhuma acusação formal ainda.
Mas o sentido da nomeação é semelhante. A seu favor, a presunção de que pode vir a ser investigado pode não se confirmar. Mas dar-lhe um cargo com foro privilegiado, em meio a uma mini-reforma ministerial improvisada, além do mais é inútil, já que se um dia for denunciado pelo Ministério Público, perderá as condições políticas de ser um ministro todo-poderoso.
São esses obstáculos no entorno do presidente, representando sua história política dentro do PMDB, que podem atrapalhar os projetos futuros. O próprio presidente já foi citado em algumas delações vazadas, que precisarão ser confirmadas formalmente nos depoimentos já com o Procurador-Geral da República.

Embora ele não deva ser nem mesmo investigado quanto a fatos anteriores à sua chegada à presidência da República, e Rodrigo Janot já se pronunciou a esse respeito, contrariando o parecer de vários juristas e ministros do STF, os estilhaços políticos são inevitáveis.
Sem falar no processo do Tribunal Superior Eleitoral, em que ele tenta provar que é apenas um dano colateral das falcatruas que estão sendo encontradas no financiamento da campanha presidencial de Dilma em 2014.
Se a instabilidade política não afetar a economia, a projeção do governo dá uma chance razoável de que cheguemos a 2018 com um crescimento do PIB em torno de 3%, com a recuperação dos empregos começando.
A travessia da pinguela pode, nesse caso, dar acesso a uma ampla perspectiva em que uma reforma política pode implantar o parlamentarismo e o voto distrital, permitindo a Temer se recandidatar à presidência da República sem criar atritos com seu principal aliado, o PSDB, que comandaria o governo.

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Fonte: VEJA.COM + O GLOBO

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