"A vida transformada num desgastante espetáculo para os outros, sob a ditadura do politicamente correto"

Publicado em 30/12/2016 08:13
RODRIGO CONSTANTINO: BLACK MIRROR MOSTRA LADO SOMBRIO DA NATUREZA HUMANA FOMENTADO PELA TECNOLOGIA MODERNA

“Conheci um coração puro que recusava a desconfiança. Era pacifista, libertário e amava com um único amor abrangente toda a humanidade e os animais. Sim, uma alma de elite, com toda a certeza. Pois bem, durante as últimas guerras religiosas, na Europa, retirou-se para o campo. Escreveu na entrada de sua casa: ‘De onde quer que você venha, entre e seja bem-vindo.’ Quem, segundo o senhor, respondeu a este belo convite? Os milicianos, que entraram como se a casa fosse deles e o estriparam.” – Albert Camus, A Queda

Aproveitando a época mais calma do ano em termos de trabalho, em clima quase de férias para quem nunca tira férias, tenho dedicado mais tempo às séries da Netflix, e com isso pude avançar bem na que estou vendo no momento. Trata-se de “Black Mirror”, com episódios quase sempre marcantes, impactantes, que apontam para o telespectador um espelho e mostram aquilo que está lá, em nosso âmago, mas que tentamos esconder – dos outros e de nós mesmos.

Depois de ver um político que precisa fazer sexo com um porco ao vivo para salvar uma princesa sequestrada, sob o júbilo do povo curioso (o mesmo que sempre frequentou linchamentos em praça pública), um urso de desenho animado que ridiculariza todo o sistema e acaba quase eleito, uma moça que acorda sem memória e é perseguida enquanto todos à sua volta simplesmente tiram fotos, gente que “pedala” e vive confinada em cubículos só sonhando com a fama, vi ontem um episódio que se chama justamente “Queda livre”. Retrata uma espécie de Uber de pessoas, com cada um dando notas aos outros, e sua nota é fundamental para tudo na vida.

Uma metáfora ao dinheiro e ao status que cada um tem, mas potencializado pela tecnologia moderna. Essa é a temática da série, em resumo: nossa natureza é isso, nada tão bonitinho como gostamos de crer, e as redes sociais têm estimulado esse lado mais individualista e narcísico em nós. Tudo por cliques, por “curtidas”, para ser “amado” por todos, numa tremenda prisão cansativa em que o genuíno é sacrificado pelo artificial.

Tem sido o tema recorrente de textos e livros do filósofo Luiz Felipe Pondé. Os jantares “inteligentinhos”, os filhos adolescentes que só pensam em salvar crianças africanas e bichinhos, os locais que precisam ser visitados nas viagens de férias porque todos visitam, a ausência de qualquer preconceito etc. A vida transformada num desgastante espetáculo para os outros, sob uma ditadura do politicamente correto em que você precisa aparentar ser a alma mais abnegada e descolada do planeta. Ainda que seja preciso sorrir e falar belas palavras para a “amiga” da escola que transou com seu namorado.

Como deve ser cansativo viver o tempo todo pelas aparências! Como a personagem de Jodie Foster em “Deus da Carnificina”, de Polanski. Escrevi sobre isso em Esquerda Caviar:

O filme Deus da carnificina, de Roman Polanski, é uma sátira à hipocrisia do politicamente correto, com Judie Foster fazendo o papel de uma típica representante da esquerda caviar, que se coloca sempre acima dos outros no campo moral.

Ela é capaz de tudo perdoar em nome da “civilização”. É tão descolada que até passou sua lua de mel na Índia! Mas, em certo momento, desabafa: “Por que tudo tem que ser sempre tão exaustivo?”. Usar sempre aquela máscara cansa.

A personagem abraça as causas das pobres crianças africanas, mas, no fundo, esconde seu ódio a tudo aquilo em volta, seu recalque à sua vida medíocre com seu marido acomodado, um simples vendedor de latrinas sem ambição. Eis como Pondé resume a figura em um artigo sobre o filme:

Ela escreve livros sobre Darfur e a miséria na África e, em meio a seus berros contidos de histérica, ela decreta que quem não se preocupa com a pobreza mundial não tem caráter. Tenta passar a imagem de que ama e perdoa a todos, inclusive o filho da Winslet que bateu em seu filho, mas no fundo é uma passiva agressiva, aquele tipo de mulher descrita por Woody Allen, que fala baixinho, mas fere fundo com sua saliva venenosa e cruel.

Em certo momento, o marido afirma que o “amor” que ela sentia pelos negros do Sudão tinha estragado tudo nela. É uma tirada ácida, mas que aponta para essa característica da esquerda caviar com perfeição. Ela “amava” os pobres distantes, mas isso era pura hipocrisia, uma forma de entorpecimento próprio. A esquerda caviar usa a “preocupação” com a desgraça alheia como troféu de sua suposta superioridade moral. As minorias oprimidas são seus mascotes.

Quem não quer – ou não sente a necessidade – de ligar o “FODA-SE” de vez em quando, de deixar aquilo que realmente sente vir à tona e falar mais alto? Claro, há o outro extremo que me parece igualmente nefasto: o “sincericídio”, aquele que não tem filtro algum entre o que pensa e o que sai de sua boca, o bruto incapaz de qualquer “mentirinha social” para agradar ou para não ofender tanto os demais.

Aristoteles já dizia que o homem é um “animal político”, e que somente um deus ou um bruto poderia abrir mão disso, da vida em civilização. E viver em sociedade significa engolir alguns sapos, aceitar com alguma maturidade o espetáculo da vida, o teatro, as máscaras que usamos em público, ou mesmo em casa. Nem um casal suportaria a verdade o tempo todo. Alguma hipocrisia se faz necessária para viver entre os seres humanos (qualquer marido que precisa sempre responder se a roupa da esposa está bonita entende isso). Como não existe deus entre nós, só mesmo um bruto, um bárbaro poderia virar as costas totalmente ao “sistema” e cuspir em todas essas convenções sociais meio falsas.

Um bruto ou, claro, um ser completamente imaturo, e também movido por vaidade, ainda que diga o contrário. Ou seja, um sociopata ou alguém infantil. Penso em Stockmann, na peça Um Inimigo do Povo, escrita pelo norueguês Henrik Ibsen no século XIX. Após descobrir que os famosos banhos da cidade estavam contaminados, esperava obter grande respeito e admiração por parte dos demais habitantes. Afinal, sua descoberta mostrava os riscos para a saúde de todos. Mas Stockmann ignorara os fatores políticos e econômicos, já que os banhos eram a principal fonte de renda da cidade.

Aos poucos, mesmo seus supostos aliados, que declaravam apoio pela frente, o atacaram pelas costas, se voltando contra ele. Toda a cidade passou a repudiar o autor da infeliz descoberta, preferindo ignorar os fatos, como se assim estes pudessem, num passe de mágica, desaparecer. Dr. Stockmann agiu diferente, e mesmo que sozinho, sem apoio, escolheu a verdade pura, e enfrentou a maioria. Acabou tachado como um inimigo do povo, na tentativa de ajudá-lo.

Seria ele um homem com a coragem moral de manter sua integridade e convicção apesar da enorme pressão popular contra sua pessoa, ou alguém com postura infantil e sem qualquer jogo de cintura, no fundo agindo assim para superar a estima que seu irmão político tinha perante a população? Parece claro que a inocência de Stockmann beira o absurdo, e que sua convicção confunde-se com fanatismo até, ao se mostrar disposto a ignorar totalmente a pólis e até a destruí-la em nome da verdade irrestrita.

Temos ainda Cordélia em Rei Lear, de Shakespeare. A filha mais jovem do rei, e também a favorita, recusa-se a tecer elogios artificiais em evento público em que cada filha recebe sua herança em forma de propriedade. Ela acha que não é correto usar palavras vazias para expressar seus sentimentos, e não é capaz de abusar da retórica como suas irmãs mais velhas, que possuem o dom da palavra, ainda que falsas no conteúdo. Ela seria mais genuína ou apenas mais infantil, ao não superar esse obstáculo em nome do jogo político em curso? Shakespeare, ao desenrolar a história como uma grande tragédia após este ato de recusa de Cordélia, parece acreditar na segunda hipótese.

Não ser capaz de nenhum ato de elogio artificial pode ser não um sintoma de integridade, mas de infantilidade ou barbarismo. Dito isso, claro que nossa realidade parece inclinada ao outro extremo, a essa obsessão com as “notas” que vamos receber dos outros, até de desconhecidos. E, como alertava Baltasar Gracián, “Para ser benquisto, o único meio é vestir-se com a pele do mais simples dos animais”. Schopenhauer ia em linha semelhante ao afirmar que “quem tem de produzir o bom e o autêntico e evitar o ruim tem de desafiar o juízo das massas e de seus porta-vozes e, portanto, desprezá-los”.

Não acho que seja saudável ou possível “desprezar” totalmente o juízo dos outros, o julgamento que fazem a nosso respeito. Somos “animais cívicos” e a opinião dos outros deve ser levada em conta. Mas com certo equilíbrio. O excesso de preocupação com o que os outros pensam de nós pode levar a uma prisão insuportável, a um comportamento completamente artificial, sempre em busca de “curtidas”, de uma “nota” boa perante a sociedade. Quem vive para isso não vive mais de verdade, não vive para si, não passa de um zumbi, de um robô.

Quais são seus reais interesses? Quais são suas paixões genuínas? Você quer tanto mesmo aquele carro novo ou é só para mostrar aos outros? Você está mesmo desfrutando desse prato elaborado nesse caro restaurante ou só pensando na foto que vai tirar para impressionar os demais? Quer mesmo ir àquele lugar ou é só porque é o que se espera de quem tem certo nível social passar as férias lá, no lugar da moda? Você está mesmo feliz o tempo todo ou essas fotos incessantes de sorrisos em lugares bonitos com boa companhia são só para parecer feliz, para inglês ver?

“Nem uma criança de dois anos que acaba de ganhar um balão parece tão feliz”, espeta o irmão da personagem principal do episódio da série, que se esforça com esmero em ser “querida” por todos. Atenção, SPOILER: Até ela surtar. Acho importante buscar um equilíbrio entre as inofensivas “mentiras sociais” e a sinceridade, sendo que essas mentiras são mais toleráveis quando ditas para não ofender gratuitamente os outros, e não para ganhar pontos para nós mesmos. Alguma pitada de artificialidade será necessária para se viver em sociedade. Mas como valorizo mais o genuíno!

Sempre me cansou muito essa tentativa de parecer ser “cool”, estar na “moda”, sorrir o tempo todo um sorriso falso para seduzir os demais, bajular todo mundo, adular os famosos, ricos e poderosos, agir feito um político em campanha 24 horas por dia. Essa é minha visão do inferno! E esse meu inferno está se tornando realidade para a sociedade, com a mãozinha que as redes sociais têm dado à nossa natureza humana vaidosa, insegura, desamparada. Onde isso vai acabar? A distopia retratada em “Black Mirror” dá uma ideia. E ela é assustadora!

Espero que consigamos reverter esse quadro. Mais genuinidade, com boas doses de maturidade: eis o que desejo a todos em 2017. Feliz Ano Novo!

Rodrigo Constantino

 

RETROSPECTO DE 2016 E PERSPECTIVAS PARA 2017 (por Marcel Balassiano, publicado pelo Instituto Liberal)

O ano de 2016, que se encerra nos próximos dias, foi muito intenso, tanto no Brasil quanto no mundo. Por aqui, crise política, econômica, ética… Mas, apesar de tudo isso, acredito que estamos numa melhor fase agora e com perspectivas mais positivas para o próximo ano do que estávamos no fim de 2015.

Ano passado a economia recuou, em termos reais, 3,8%. A inflação foi de dois dígitos (10,7%), em grande medida por causa dos preços administrados, que tem um peso de 25% na inflação total e cresceu 18,0%. Isso ocorreu em função do represamento desses preços no passado (uma das medidas da “Nova Matriz Econômica”), tais como gasolina, energia elétrica, entre outros. No fim do ano passado, a taxa nominal de câmbio estava em R$ / US$ 3,96 e o CDS de 5 anos (medida que avalia o risco) estava em quase 500 pontos, contra 225 pontos de uma média de países emergentes selecionados (México, Turquia, Colômbia, Chile, Peru e África do Sul). Os índices de confiança, calculados pela FGV, apresentavam grandes quedas em 2015 em relação ao ano anterior (dezembro de 2015 comparado com dezembro de 2014). O índice de confiança do consumidor recuou 24,1%; o da indústria caiu 12,8%; e o de serviços apresentou uma queda de 20,6%. A taxa de desemprego estava em 9,0%, e os juros nominais (Selic), estavam em 14,25%.

As perspectivas para 2016 no fim de 2015 também não eram nada favoráveis. De acordo com a mediana do último Boletim Focus de 2015, o crescimento real do PIB seria de -3,0%, com uma inflação de 6,9%, portanto, novamente acima do limite superior do intervalo de tolerância. A taxa de câmbio estaria em R$ / US$ 4,21, e a Selic em 15,25%. Vale frisar que nessa época do ano, o cenário de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff não era o cenário principal. No fim do ano passado, a ex-presidente estava substituindo o comando da Fazenda, trocando o ex-ministro Joaquim Levy por Nelson Barbosa.

Em termos políticos, em 2016 houve o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, assumindo a Presidência da República o seu vice, Michel Temer, que reformulou totalmente a área econômica, substituindo Nelson Barbosa por Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda e Ilan Goldfajn no lugar de Alexandre Tombini na presidência do Banco Central, entre outros cargos. Essas mudanças foram vistas de forma positiva, tanto pelo mercado quanto pela maior parte dos analistas.

Esse ano a economia deve ter recuado, em termos reais, 3,5% (o dado final será divulgado pelo IBGE no começo de março de 2017). A inflação apresentou uma grande queda, dos quase 11,0% de 2015 para algo próximo de 6,5% esse ano (o dado final da inflação será divulgado pelo IBGE em janeiro de 2017, mas o IPCA-15 já conhecido, mostrou que a inflação de 2016 foi de 6,6%). A taxa nominal de câmbio, que chegou ao máximo em 2016 de R$ / US$ 4,16 em 21 de janeiro e o mínimo de R$ / US$ 3,11 em 25 de outubro, está atualmente no patamar de R$ / US$ 3,30. O CDS de 5 anos caiu mais de 200 pontos no Brasil, contra uma queda de 50 pontos da média de países emergentes (final de 2016 comparado com o final de 2015). Apesar da piora nos últimos meses, os índices de confiança da FGV apresentaram altas em 2016 em comparação com 2015 (dezembro de 2016 comparado com dezembro de 2015). O índice de confiança do consumidor subiu 12,7%; o da indústria aumentou 11,3%; e o de serviços apresentou uma alta de 11,5%. A taxa de desemprego, uma das últimas variáveis a entrar na crise e a sair dela também, está próximo de 12,0%. Esse ano houve duas quedas de 0,25% da Selic, encerrando o ano em 13,75%, depois de ficar mais de um ano estável em 14,25% (entre 30/07/2015 até 19/10/2016).

Além disso, foi aprovada no Congresso a Emenda Constitucional que limita o crescimento do gasto público ao longo dos próximos dez anos. Com isso, o crescimento da despesa primária do governo central será corrigido pela inflação do ano anterior, ou seja, crescimento real próximo de “zero”. Isso era importante de ser feito, visto que o país se encontra num desequilíbrio fiscal, onde a dívida bruta do governo geral, por exemplo, passou de 52,4% do PIB no começo do governo Dilma para 70,5% em novembro desse ano. Outro ponto positivo e muito importante foi a apresentação de uma proposta de reforma do sistema previdenciário abrangente, que deverá ser votada pelo Congresso no ano que vem.

Segundo a mediana do último Boletim Focus, em 2017, o PIB deve crescer, em termos reais, 0,5%. A inflação prevista para o ano que vem é de 4,85%, e 4,5% para 2018, mostrando que as expectativas de inflação novamente estão ancoradas. Sob a gestão de Tombini na autoridade monetária, nem as expectativas de inflação para 2020 estavam na meta! Ou seja, o mercado acreditava que o BC, sob a presidência de Alexandre Tombini, nunca iria cumprir o objetivo de colocar a inflação na meta. Para a taxa de câmbio, a estimativa é de R$ / US$ 3,50, e a Selic em 10,5%, ambas para o fim do ano.

Em resumo, em 2017 devemos sair da maior recessão da história brasileira, com a inflação convergindo para a meta, e a continuação da redução dos juros. Na parte fiscal, teremos pela primeira vez um limite do crescimento do gasto público, e a perspectiva da reforma da previdência. Com isso, a taxa de desemprego, que ainda não chegou no seu pico, poderá começar a trajetória de queda. Ainda há muito a ser feito, mas o horizonte é melhor do que observávamos há um ano atrás! Feliz 2017!!

Sobre o autor: Marcel Balassiano é mestre em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) e bacharel em Economia pela Escola Brasileira de Economia e Finanças (EBEF), ambas da Fundação Getulio Vargas (FGV).

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Fonte: Blog Rodrigo Constantino

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