Fernando Gabeira: Para onde foi a esperança?
Publicado no Estadão
Não sei se pela distância, vejo cada vez mais a esfera da política como um obstáculo à recuperação econômica sustentável. Temer ainda luta pela estabilidade. Prometeu não ser candidato em 2018. Ainda assim, a lógica política vai empurrando suas decisões para o sentido oposto de uma contenção de gastos necessária para superar a crise.
O socorro ao Rio e ajustes com os Estados já estavam inscritos como grandes problemas pós-impeachment. E ainda inseguro no cargo, Temer não tem condições de vetar o aumento para o funcionalismo.
O governo é frágil também porque a cúpula do PMDB está implicada na Lava Jato. Aliás, se estivesse só implicada, o problema seria menor. Mas ela mostrou ter como sonho de consumo esvaziar a Lava Jato, até pela via do jogo parlamentar.
A eleição na Câmara dos Deputados apresentou muitos nomes, nenhum com condições de conter o apetite dos grupos fisiológicos. A negociação com o Congresso tende a ser mais cara ainda em ano eleitoral.
Todos esses fatores reunidos me levam a esperar, na melhor das hipóteses, um ajuste fiscal meia-bomba, que nos conduza a 2018 sem que os problemas essenciais tenham sido atacados. A tendência é pensar: em 2018, aí, sim, as coisas podem melhorar. Um presidente eleito tem legitimidade para conduzir um processo de mudanças mais ásperas e profundas.
A grande incógnita, de novo, é o Congresso. Surgirá um tipo de governo de coalizão que escape do fracasso dos outros que o antecederam? Ulysses Guimarães quando se criticava o nível da Câmara, respondia: “Esperem a próxima, será pior ainda”.
Mas Ulysses dizia isso com base na experiência de outra fase da democracia. Ou pelo menos não ousou concluir que, de pior a pior, o Congresso acabaria numa crise profunda e o próprio sistema político se desprenderia da realidade do País.
Para realizar as esperanças de sucesso de um presidente legítimo as eleições teriam a enorme tarefa de renovar o Congresso.
A liderança de Eduardo Cunha lançou a Câmara no seu último estágio: a de um balcão de negócios. Ele produzia e distribuía recursos a seu grupo fisiológico nos períodos eleitorais. Era o maior criador de jabutis da história, com emendas inseridas nas medidas provisórias.
Hoje, o agora ex-presidente da Câmara e o presidente do Senado são os alvos principais da Lava Jato no Congresso. Cunha tem conta na Suíça, faz viagens milionárias, incríveis manobras para não ser julgado. E aparece sempre dizendo que é inocente.
De nada adiantavam as evidências, apenas a sua narrativa. Outro dia, lendo um ensaio de Bruno Latour sobre a democracia, ele tomava como ponto de partida aquela ida do Colin Powell à ONU às vésperas da invasão do Iraque. Todo um espetáculo narrativo para demonstrar as armas de destruição em massa, com imagens, mapas. As armas não existiam.
O cinismo não é um traço só da política brasileira. Os franceses cunharam uma expressão para suas expressões vazias: langue de bois.
Mas o que aconteceu no Brasil nos últimos anos pode abalar a profecia de Ulysses. O choque entre as narrativas e as evidências se dá num momento em que o Brasil tem um fluxo mais abundante e rápido das informações. E são evidências inescapáveis, gravações, cheques, delações premiadas. Está tudo aí, disponível a um toque no smartphone.
Outro momento ainda não avaliado: o impacto da transmissão ao vivo do impeachment de Dilma Rousseff. Muitos observadores – estrangeiros inclusos – previram que aquele espetáculo, no mínimo, levaria a sociedade a refletir sobre seus representantes.
Jogar as esperanças para 2018 não significa uma fuga do áspero cotidiano da transição.
A Lava Jato tem um adversário mais sutil que o PT pela frente. E alguns movimentos da Justiça são ambíguos.
A história da prisão de Carlinhos Cachoeira e Cavendish foi uma dança em torno das tornozeleiras eletrônicas. Foram presos, estavam à espera de uma tornozeleira eletrônica, artigo raro num Rio falido.
Finalmente libertados sem tornozeleiras, a desembargadora quer uma escolta da Polícia Federal para vigiá-los em suas prisões domiciliares. O resultado é que se a proposta for aceita teremos pelo menos quatro policiais presos, no lugar de dois bandidos no xadrez. Ou com tornozeleiras.
Mesmo nas esferas mais altas os sinais são ambíguos. O ministro Celso de Mello negou a prisão de condenados após julgamento em segunda instância. Negou em nome de um principio, o de que ninguém deve ser considerado culpado antes de a sentença transitar em julgado.
O problema é ver como esse princípio abstrato se aplica no Brasil de hoje. O Supremo Tribunal está congestionado. Muitas pessoas, com base nesse dado, empurram seus processos, na esperança da prescrição, da impunidade.
A Lava Jato avança num terreno instável, com as surpresas e os vaivéns na Justiça, com a retirada da urgência nos processos de corrupção. A retirada partiu do governo Temer. É a tática mais suave, melíflua, da cúpula do PMDB.
Exceto Cunha, ela jamais vai bater de frente. Jamais um dos seus ideólogos, se é que os tem, vai dizer que o juiz Sergio Moro foi treinado pelo FBI para entregar o pré-sal às “Seis Irmãs”, empresas de petróleo norte-americanas. Mesmo com um pouco mais de sutileza, o PMDB não se aguenta: seus principais líderes não escaparão da Lava Jato, embora os ritmos e meandros do foro privilegiado possam dar-lhes uma sobrevida.
Se as eleições de 2018 não se fizerem já com uma reforma política, certamente seu resultado servirá para impulsioná-la. Acabou uma fase da democracia no País. Com seus líderes e partidos, na maioria esmagadora, rejeitados pela sociedade, as eleições de 2018 abrem o caminho da renovação ou da aventura.
Tudo vai depender uma sociedade que cada vez sabe mais sobre o universo político. Sabe o bastante para desprezá-lo de vez. Ou tentar algo novo.
Lula ficou 3 andares mais perto da República de Curitiba (AUGUSTO NUNES)
A pilha de patifarias imobiliárias protagonizadas por Lula ficou alguns calhamaços mais alta nesta terça-feira, graças à descoberta da Operação Lava Jato revelada pelo jornal O Globo: em junho de 2010, a Odebrecht usou como intermediária a DAG Construtora, uma ramificação da empreiteira baseada em Salvador, para adquirir um prédio de três andares em São Paulo que, sem que o chefe de governo e parceiro de negócios bilionários gastasse um único e escasso centavo, seria reformado e transformado em sede do Instituto Lula.
Tanto as negociações quanto o planejamento da reforma foram diretamente monitorados por Marcelo Odebrecht. Em setembro de 2010, num email endereçado a Branislav Kontic, braço-direito do ex-ministro Antonio Palocci, o presidente da maior empreiteira do Brasil revelou que tinha boas notícias para o presidente da República: “Preciso mandar uma atualização sobre o novo prédio para o Chefe amanhã. Qual a melhor maneira?” A compra foi efetivada, mas pendências judiciais envolvendo os antigos proprietários do imóvel impediram que a doação se consumasse.
É improvável que a decepção do marido tenha igualado em intensidade o desconsolo de Marisa Letícia. Entre os documentos apreendidos em março deste ano no sítio em Atibaia, a Polícia Federal encontrou, numa pasta rosa guardada pela ex-primeira-dama, a prova de que o bunker permitiria que o casal convivesse 24 horas por dia: o projeto que detalhava a reforma incluía, além do auditório, de salas de reunião e de gabinetes, um apartamento de cobertura com cinco suítes.
O ex-presidente conhece muito bem os diretores da DAG. (Entre outras gentilezas, a sigla bancou em 2013 a viagem de jatinho que levou o camelô de empreiteira aos Estados Unidos, à República Dominicana e a Cuba). Conhece como ninguém o advogado Roberto Teixeira, que participou dos entendimentos que precederam a compra do prédio pela construtora baiana. (Dono de apartamentos que abrigam os filhos do amigo, Teixeira é uma espécie de Minha Casa, Minha Vida da família Lula). Mas o palestrante predileto da Odebrecht dirá, como sempre, que nunca soube de nada. O problema é que a Lava Jato sabe de tudo.
Em 25 de junho de 2010, ao comentar sua assombrosa performance na última pesquisa do Ibope, esta coluna registrou que o então presidente vivia um ano de sonho. Do alto dos mais de 80% de “ótimo” ou “bom”, o maior dos governantes desde Tomé de Souza já vislumbrava a chegada aos 100% (ou 103%, se a margem de erro de 3% oscilasse todinha para cima). Faltava pouco para o recorde mundial de popularidade.
Mais impressionante ainda era o índice de desaprovação: os que achavam “ruim” ou “péssimo” o desempenho de Lula somavam apenas 3% do eleitorado. Esses 4 milhões de brasileiros subiriam para 8 milhões se a margem de erro oscilasse para cima. Caso contrário, o índice despencaria para zero ─ e não haveria um único descontente em todo o território nacional. Nenhum. “Nós somos margem de erro”, constatou o comentarista Renato Vieira.
Naquele fabuloso 2010, o chefão ganhava até prédio com a soberba placidez de um monarca medieval presenteado com joias por outro soberano. Não podia imaginar que, com a descoberta da história do imóvel na Vila Clementino, ficaria três andares mais perto da República de Curitiba.
Neurônio sincero (Presidente demitida diz que aumentou o desemprego para reduzir a inflação)
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José Nêumanne: É cada um por si e Deus só por alguns
Os três Poderes atuam como se vivessem em mixórdia e intromissão permanentes, chamando o nefasto resultado geral, cínica e equivocadamente, de 'autonomia'
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Ao renunciar à presidência da Câmara dos Deputados na semana passada, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi de uma precisão cirúrgica quando desqualificou a atual administração da Casa ao empregar a expressão “interinidade bizarra”. Com o morteiro disparado na direção do primeiro sucessor do presidente (também interino) da República, Michel Temer, o ex-ocupante do poderoso e honorável posto, “sem querer querendo”, como rezava o mote do protagonista de um dos maiores sucessos da televisão brasileira, o mexicano Chaves, definiu a esdrúxula situação sob a qual vivemos todos nesta atual barafunda.
Esta nossa República é tudo menos honrada, serena e lógica. Os três Poderes atuam como se vivessem em mixórdia e intromissão permanentes, um nos outros e vice-versa, chamando o nefasto resultado geral, cínica e equivocadamente, de “autonomia”. Esta se impôs sobre a “harmonia” na base do braço de ferro e do berro mais alto. Nas atuais circunstâncias e há bastante tempo, o lema “ordem e progresso” da Bandeira Nacional não descreve a desordem vigente, a ponto de dever ser substituído por “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Em relação a esse recado generalizado à cidadania, o povo, impotente, fica na condição do “salve-se quem puder” e o resto que se dane.
De acordo com chamada na primeira página deste jornal, domingo, o segundo maior fornecedor da campanha vitoriosa da reeleição da presidente afastada, Dilma Rousseff, Carlos Augusto Cortegoso – conhecido como “garçom do Lula”, por tê-lo servido nos anos de liderança sindical no Demarchi, famoso restaurante no circuito do frango com polenta em São Bernardo do Campo –, movimentou quase R$ 50 milhões naquele pleito. Ou seja, cinco vezes o valor que declarou. Assim, a chapa Dilma-Temer teria cometido, conforme relatório da Receita Federal, duplo crime: foi financiada por caixa 2 e, ao declarar que as doações eram legais, lavou o dinheiro sujo na máquina da Justiça Eleitoral. Um desplante!
Caso o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) constate o duplo delito na investigação que promove sobre a validade dos votos sufragados em 2014, terá de mandar presidente e vice entregarem o poder ao presidente da Câmara dos Deputados, seja ele quem for. Este terá 90 dias para convocar eleição direta para um mandato-tampão até dezembro de 2018, quando, então, já terá sido eleito seu substituto constitucional. Em sufrágio direto e universal, se a disputa for este ano, antes de ser completada a primeira metade do mandato dado como usurpado por abuso de poder econômico (e com uso de dinheiro público, o que é mais grave). Ou em eleição indireta, pelo Congresso, se a decisão for posterior.
Ocorrendo isso, em qualquer das hipóteses, falirá a lorota do “impeachment sem crime é golpe”, que mantém o fio inconsútil do que ainda resta do mandato de Dilma e do PT. Seu substituto constitucional, Michel Temer, eleito vice também de forma supostamente ilícita, sucumbirá junto. E levará no féretro a equipe econômica mais equipada para tirar o Brasil da crise e reconstruir a credibilidade do Estado. A Nação ficará, na hipótese, a reboque de algum aventureiro que emergir das urnas ou do painel do plenário parlamentar, ambos eletrônicos. Não será algo a se chamar de “o melhor dos mundos”. Muito ao contrário!
A eleição direta, única capaz de refletir a vontade popular, é volátil a ponto de ter inflado, de um lado, Jânio, Collor e Dilma, produtos da paixão popular por aventureiros que se fingem de faxineiros contra a corrupção e terminam enredados nos crimes que denunciavam. E, de outro, Fernando Henrique e Lula, representantes de grupos políticos consolidados que terminaram se dissolvendo numa cultura de ácido implacável que derrete idolatrias e reputações. O tucano foi abatido pela vaidade do segundo mandato. O petista, pela ilusão do fogo-fátuo da fortuna fácil.
O esfarelamento dos partidos, flagrado na disputa da presidência da Câmara por meio ano e meio mês, desmoraliza utopias como o parlamentarismo e suas variações “semi”. E revela o pragmatismo de chiqueiro na disputa pela proximidade da gamela em que é servida a lavagem. O baixo clero que elevou Cunha ao cargo que lhe permitiu abrir o impeachment da desafeta de última hora, Dilma, logo se desfez diante da evidente ausência de um mínimo de espírito público nele.
Waldir Maranhão, eleito vice na chapa vencedora por 80% dos pares, muitos dos quais certamente agora fingem tapar o nariz, entregou-se à farra do poder inesperado, participando de farsas tão absurdas como a tentativa de interromper o impeachment no Senado apenas pela vontade de seu líder, Flávio Dino (PC do B), governador do Maranhão. Ou seja, pelo projeto político de entregar o destino de uma das dez maiores economias do mundo à ditadura grotesca que produziu a excrescência albanesa, retrato de miséria política e econômica num continente abastado e plenamente democrático.
Para completar, o bizarro intendente interino tem mais dois diabos a servir. De um lado, Rodrigo Maia (DEM), herdeiro de César Maia, hoje sem relevância na política do próprio Estado, o Rio. E, de outro, pai Lulinha, cujo impávido colosso desmoronou sob sua imagem corroída por várias investigações policiais e jurídicas. Representante de um Estado sem peso político e econômico e incapaz de conduzir sessões da Câmara até o fim, Maranhão balança entre um prócer irrelevante e outro investigado pela Polícia Federal, pelo Ministério Público Federal e Estadual de São Paulo, sob a égide da Justiça Federal no Paraná e da Estadual em São Paulo. A bizarria do interino desfila entre o baile da saudade e a medalha olímpica dos saltos orçamentais.
A hipotenusa do triângulo é o Judiciário do “cada um por si e Deus só por alguns”, regime no qual a paridade de todos é submetida a privilégios que a promiscuidade assegura.