Insensibilidade moral, editorial do Estadao
Insensibilidade moral
O atraso, pelo governo Dilma, dos repasses de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) para os Estados e os municípios, com o objetivo de engordar o superávit primário de 2013, acrescenta traços de insensibilidade moral a uma política fiscal já desacreditada por ter sido vítima de tantas manobras contábeis. Além disso, deixa mais nítida, se isso ainda era necessário, a inconsistência dos resultados das contas públicas no ano passado tão orgulhosamente antecipados pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega.
Do ponto de vista moral, essa foi a mais preocupante artimanha contábil de que o governo do PT lançou mão para - não tendo feito os necessários ajustes nas suas despesas de modo a adequá-las ao comportamento da arrecadação - apresentar um resultado fiscal aparentemente mais do que suficiente para evitar o crescimento da dívida pública. Na área de saúde pública, qualquer atraso - e, neste caso, com evidências de ter sido deliberado - na liberação de recursos já definidos implica riscos à saúde e à vida dos pacientes do sistema. A grande vítima dessa decisão foi a população, mas isso não parece ter sido levado em consideração pelos responsáveis da área financeira do governo Dilma.
O governo, como era previsível, alega que não houve atraso na liberação dos recursos. As estatísticas, no entanto, deixam claro que, em dezembro de 2013, as transferências dos recursos do SUS para os Estados e municípios foram bem menores do que no mesmo mês de anos anteriores. Em dezembro de 2012, por exemplo, o governo federal repassou pelo SUS R$ 8,6 bilhões, valor que, no mês passado, se reduziu a R$ 3,8 bilhões, como mostrou reportagem do Estado (17/1). O fato de o represamento dos recursos no fim do ano passado estar sendo compensado pela liberação mais rápida e mais intensa neste mês não torna a manobra menos condenável.
A prática da chamada "contabilidade criativa", por meio da qual o governo Dilma vem conseguindo alcançar formalmente a meta de superávit primário - necessário para o governo honrar seus compromissos financeiros -, foi intensa na apuração dos resultados fiscais de 2012. Mas, ao longo de 2013, manobras contábeis de grande impacto foram utilizadas com frequência inusitada, corroendo ainda mais a confiabilidade da política fiscal.
A própria meta nominal do superávit primário fixada para 2013 na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) foi reduzida por meio de medidas que, embora legais, comprovaram a rápida deterioração dessa política, como o abatimento, dessa meta, de parte dos investimentos previstos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e dos incentivos fiscais concedidos para determinados setores da economia.
Inicialmente, a meta para todo o setor público era de um superávit primário de R$ 156 bilhões em 2013. Com os abatimentos, ela foi rebaixada para R$ 111 bilhões. Desse valor, o governo federal deveria se responsabilizar por R$ 73 bilhões, com o compromisso de cobrir a parte que eventualmente faltasse para o cumprimento da meta dos Estados e municípios. O governo Dilma anunciou, depois, que não se responsabilizaria por cobrir eventuais carências de Estados e municípios.
De acordo com o ministro Guido Mantega, o governo central alcançou um superávit primário de R$ 75 bilhões em 2013, pouco acima da meta. Na decomposição desse resultado, no entanto, constata-se que boa parte decorre de receitas extraordinárias, que não se repetirão. Entre elas estão os pagamentos iniciais dos contribuintes que aderiram às novas regras do Refis (programa de refinanciamento de débitos tributários em condições muito favoráveis aos devedores), que propiciaram a arrecadação de mais de R$ 20 bilhões, e os R$ 15 bilhões de bônus do Campo de Libra, no pré-sal.
Além disso, por atos administrativos que aos poucos vão sendo descobertos, o governo retardou pagamentos ou transferências de recursos, como os do SUS, o que também ajudou a melhorar o superávit primário de 2013. Outras manobras podem ter sido praticadas. Tudo isso reduz o superávit primário real a pouco mais da metade do valor anunciado pelo governo.
A farsa da abertura em Cuba
Preco de um peugeot - que no Brasil custa R$ 30 mil - esta' sendo fixado em R$ 262 mil
Quem foi a alguma das lojas de carros autorizadas pelo Estado, na esperança de, enfim, conseguir trocar seu decrépito Buick por um automóvel mais moderno, deparou-se com preços sem paralelo em nenhum lugar do mundo. Um Peugeot 508, modelo 2013, custava nada menos que US$ 262 mil - seu equivalente em lojas capitalistas não passa de US$ 30 mil. A média salarial em Cuba é de US$ 20. Logo, a venda de carros pode até estar autorizada, mas não haverá ninguém em Cuba rico ou louco o bastante para comprá-los. "O que eles pensam que estão vendendo? Aviões?", disse à revista The Economist um dos frustrados clientes. "Eles não querem vender nenhum carro. É tudo um show", reclamou outro.
A Economist especula que, na verdade, a autorização para a venda de carros é apenas uma forma de acabar com o mercado paralelo de licenças para compra de automóveis novos. Essas licenças eram concedidas pelo governo como prêmio a esportistas, artistas e destacados militantes do Partido Comunista Cubano (PCC). Em vez de comprar o carro, porém, o laureado passava adiante a preciosa autorização, faturando cerca de US$ 12 mil, segundo a última cotação. Como agora, em tese, todos podem comprar um carro, a licença não vale mais nada.
Seja como for, está claro que a economia de Cuba não passa por nenhum processo de liberalização, nem mesmo simbólica. E o discurso de Raúl Castro no 55.º aniversário da revolução, em 1.º de janeiro passado, deixou claro que a intenção é, ao contrário, reforçar os controles estatais.
Ele não fez menção senão marginal aos ajustes do modelo econômico anunciados no 6.º Congresso do PCC, em 2011, e rechaçou "tentativas de introduzir sutilmente plataformas de pensamento neoliberal e de restauração do capitalismo neocolonial" em Cuba. Em lugar disso, cobrou a adesão incondicional aos compromissos ideológicos assumidos no 6.º Congresso, a respeito dos quais, disse ele, "não se avançou o necessário". Deve-se esperar, portanto, uma radicalização ainda mais acentuada do comunismo na ilha, a despeito do fato, notório, de que foi essa radicalização que condenou Cuba à paralisia econômica depois que a fonte soviética secou.
Mas o instinto de sobrevivência dos Castros manda que Cuba alivie um pouco a carga do depauperado Estado - e essa é a razão pela qual Raúl permitiu que os cubanos abrissem pequenos negócios e pudessem vender seus imóveis, pois dessa maneira deixarão de ser funcionários públicos, que são mais de 90% da força de trabalho no país.
Também é o que explica a aposta na chamada Zona Especial de Desenvolvimento, na qual, tal como em seu similar chinês, são permitidas experiências de perfil capitalista. Nas palavras do Granma, "nessa zona serão colocadas em prática políticas especiais, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento econômico sustentável, estimulando o investimento estrangeiro e nacional, a inovação tecnológica e a concentração industrial". Essa zona engloba o Porto de Mariel - cuja construção, feita pela Odebrecht, contou com mais de US$ 600 milhões de crédito do BNDES. Como se nota, trata-se de uma boa oportunidade de negócios, tanto para investidores externos - o Brasil, em particular - quanto para a nomenklatura comunista cubana.
Já os cubanos comuns, sem condições de investir em nada que não seja a sua sobrevivência cotidiana, terão de continuar a se contentar com seus carros velhos e com os favores do Estado.
‘Mérito? Não é aqui’, por J. R. Guzzo
Publicado na edição impressa de VEJA
J. R. GUZZO
Velhos marinheiros dos sete mares contam até hoje, geralmente em voz baixa, a história do Flying Dutchman. Não é uma história confortável. O Flying Dutchman, ou Holandês Voador, levantou âncora das docas de Amsterdã em 1751, rumo a Java, e depois de uma tormenta no Cabo da Boa Esperança nunca mais foi visto; naufrágio com perda total da carga e da tripulação, publicou-se nos boletins marítimos da época. O grande problema é que, alguns anos depois, o navio holandês foi visto outra vez, velejando a todo o pano, o leme firme, como se estivesse rumando para um lugar preciso, e com a mais perfeita ordem no tombadilho; não era, de jeito nenhum, um barco que tinha afundado e depois, por algum fenômeno natural, voltado à tona. Outro problema, já bem maior, é que não havia nenhum ser vivo (ou morto) ali dentro. Os tripulantes do barco que tinha feito a descoberta subiram a bordo e minutos depois, aterrorizados, chisparam de volta a seu navio e sumiram no horizonte. Desde então a lenda insiste que o Flying Dutchman continua aparecendo nos oceanos, sempre em noites de tempestade; é a famosa “nau sem rumo”. Foi cometida a bordo, explicam os velhos marujos, alguma abominação prodigiosa, tão horrível que nem o demônio tem coragem de tocar no assunto. Tudo o que se sabe é que o navio foi amaldiçoado ─ e a alma de seus tripulantes condenada a navegar eternamente pelo mar sem fim.
E se em lugar de Flying Dutchman falassem de “um país chamado Brasil”? Em 1º de janeiro de 2003, sob o comando do almirante de esquadra Lula da Silva, ele levantou ferros do Lago Paranoá falando em vencer mares nunca dantes navegados e em edificar um novo reino social. Hoje, onze anos após a partida e já sob o comando da imediata Dilma Rousseff, a nau continua a procurar o reino que tinha prometido. Ao contrário do barco holandês, o navio brasiliense está abarrotado de gente; só de ministros são quase quarenta, e contando os subs, mais os subs dos subs, a coisa vai para a faixa dos milhares de tripulantes. Mas está na cara que os fantasmas do Flying Dutchman levam o seu barco muito melhor que os humanos de Dilma; pelo menos sabem o que estão fazendo.
Já o nosso navio ─ bem, é certo que algo deu fabulosamente errado com ele. Não navega para lugar nenhum. A tripulação não sabe distinguir proa de popa, e acha que o contrário de bombordo é mau bordo. A nau não perdeu o rumo ─ na verdade, nunca chegou a saber que rumo era esse. Como poderia saber alguma coisa, se a esta altura da viagem o presidente do Senado, Renan Calheiros, ainda requisita um avião militar para levá-lo de Brasília ao Recife, onde foi implantar 10 000 fios de cabelo numa clínica para carecas? O problema, é óbvio, não está com Renan; ele é assim mesmo. O problema é de quem manda nos aviões ─ a cadeia de comando da Aeronáutica, que só em 2013 já deixou o senador lhe passar a perna duas vezes.
Nesta última, foi ao extremo de soltar uma nota oficial dizendo que não iria avaliar “o mérito” da viagem, e que sua função se limita a fornecer “a aeronave” solicitada. Como assim? Se os senhores brigadeiros não avaliam o mérito ─ e a legalidade ─ de seus próprios atos, que raio estão fazendo nos seus postos? Estamos falando da Força Aérea Brasileira, santo Deus. A lei diz que os aviões da FAB só podem ser utilizados por autoridades em atos de serviço, questões de segurança e emergência médica. Em qual caso se encaixariam, aí, os 10 000 fios de cabelo do senador?
A lei diz também que desrespeitar essa norma é “infração administrativa grave”, passível de punições “civis e penais”. O comandante da FAB que serviu de piloto particular para Renan poderia perfeitamente ter pedido ao senador, com toda a educação, que lhe fizesse uma curta descrição por escrito, assinada embaixo, contando que serviço iria fazer no Recife ─ “mera formalidade, doutor, só isso””. Por que não agiu assim? Porque tem certeza, como toda a tripulação, de que está numa nau sem rumo onde cumprir a regra só dá confusão.
O navio Brasil está precisando de muita coisa. Uma delas é um oficial macho, que tenha entre os seus valores a decência comum, e que um belo dia diga algo assim: “Sinto muito, Excelência, mas a lei me impede de atender à sua solicitação”. Iríamos ver, aí, quem entre os seus superiores hierárquicos teria a coragem de prendê-lo por “insubordinação”, enquanto Sua Excelência ficaria livre, contando vantagem do tipo “comigo ninguém brinca”. Nesse dia abrirá falência o Táxi Aéreo FAB ─ e nosso navio, talvez, comece a encontrar seu rumo.
‘Vada a bordo, cazzo’, por Carlos Brickmann
Publicado na coluna de Carlos Brickmann
O comandante é o último a abandonar o navio? Nem sempre: o comandante Francesco Schettino foi um dos primeiros a cair fora, quando o seu Costa Concordia começava a naufragar. O capitão Gregorio de Falco, da Guarda Costeira, indignou-se e mandou Schettino voltar ao navio. Vada a bordo, cazzo! ─ bradou. Schettino, cazzo, fingiu que não ouviu. Os passageiros que se danassem.
Mudemos de assunto. O presídio de Pedrinhas, no Maranhão, teve rebeliões sucessivas, o crime organizado tomou conta de tudo e promoveu assassínios com requintes de crueldade. O ministro da Justiça, esquecido de que seu partido está no poder há onze anos, reclama que o sistema penitenciário brasileiro é “medieval”, e diz que preferia morrer a ficar preso. Ele, a propósito, é o chefe do Departamento Penitenciário Nacional, que deveria cuidar do assunto.
Os rolezinhos se multiplicam e ameaçam transformar-se numa crise política ─ e numa crise se transformarão assim que alguém perder a cabeça e for para o confronto físico. E a segurança da Copa, que está sendo discutida, de que forma será equacionada?
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, sabe perfeitamente o que fazer: como o comandante Schettino, abandonar o barco o mais rapidamente possível, antes que o naufrágio se complete, e deixar claro que tê-lo ou não como ministro da Justiça não faz a menor diferença. Cardozo descansou nos feriados de fim de ano, tirou férias entre 2 e 6 de janeiro, e, a partir de sexta, tira mais oito dias de folga. Volta dia 26.
E até agora, no Governo, ninguém lhe gritou Vada a bordo.
Visual de campanha
Lula está deixando a barba crescer. Ainda está rala.
Por Lauro Jardim