Da histeria coletiva ao profundo desrespeito com a China, por Eduardo Lima Porto
A história recente da humanidade registra alguns episódios de pandemias, epidemias e síndromes transmissíveis de elevada gravidade, muitas delas originadas em diferentes países, cujas causas se atribuem às mais variadas razões. Porém, nenhuma situação se assemelhou a repercussão instantânea do Coronavírus, possivelmente porque antes não vivíamos na era das mídias sociais, que permitem a transmissão em massa de informações numa velocidade superior a propagação de qualquer doença altamente contagiosa.
Por participar de alguns Grupos de WhatsApp relacionados ao Agro, tenho sido bombardeado com diversos textos conspiratórios dotados de uma criatividade impressionante, mas que apesar de bem escritos, demonstram um grau de estupidez, leviandade e desconhecimento real que não mereceriam ser levados a sério. Um desses textos, cujo autor não se identifica, é o que tem sido espalhado sob o título “XEQUE-MATE”.
Muito longe de querer assumir o posto de “bastião da verdade”, me permitirei discordar frontalmente de tais argumentos, expondo uma visão diferente, que desde já submeto às críticas e a contra-argumentação saudável e respeitosa dos leitores do Noticias Agrícolas. Assim como o risco de contágio do vírus é elevado, me exponho abertamente a tomar uma grande quantidade de “porradas" e me renderei a mudança de opinião fazendo as devidas homenagens ao "vencedor" dessa análise que apresentar fundamentos inquestionáveis e passíveis de verificação.
Negocio com os chineses há quase 30 anos. Entre 2006 e 2007, passei vários meses entre Shenzhen e Shanghai, tendo visitado diversas províncias, estabelecido contatos comerciais, além de ter construído vínculos de amizade muito sólidos que mantenho até hoje. Vivenciei o pânico causado pela SARS (gripe aviária), cujos sintomas começaram no início dos anos 90 e se alastraram de maneira voraz durante o período em que estive por lá. Retornei para China em 2008 por 3 vezes, tendo ficado no País novamente mais do que a metade do ano. Esses retornos se repetiram com tempos menores de estadia, mas sempre superiores a 2 meses, nos anos de 2009, 2010, 2011 e 2014. Em 2015, estive prestes a mudar para a China para desenvolver um projeto de comercialização de soja convencional, livre de lipoxigenase, voltada para a alimentação humana. Infelizmente, por razões brasileiras, essa pretensão não se viabilizou.
Contei um pouco da minha experiência na China, unicamente para situar que ao contrário de muita gente que fala atoa do País sem nunca haver posto os pés por lá, tenho relativo conhecimento para apresentar alguns argumentos contrários em relação ao que vem sendo difundido nas mídias sociais por alguns pseudo-analistas e por determinados veículos da imprensa.
Os chineses passaram por um trauma profundo no transcurso do período de MaoTseTung, quando se estima terem morrido mais de 80 milhões de pessoas, grande parte por falta de comida e consequências derivadas do regime comunista, como trabalhos em campos de concentração, migrações forçadas e outras atrocidades, que até hoje são motivo de tabu e causam constrangimentos principalmente nos mais velhos. O temor da falta de alimentos é algo que assusta instintivamente a qualquer um por lá.
Entretanto, existe o consenso de que é preciso manter o agricultor no campo com uma renda razoável, sendo um dos grandes medos da atualidade a migração abrupta de milhões de camponeses para os centros urbanos. Para quem desconhece, o módulo típico de produção na China tocado por uma família é denominado pela medida que chamam de “MU”, que equivale a 666,66m2 ou 0,06 hectares.
Nesse sentido, em que pese o objetivo indiscutível de pagar menos pelas commodities agrícolas, os técnicos do Governo sabem muito bem que existe um limite “técnico” que não pode ser transposto, que ações predatórias junto aos países fornecedores poderiam desestimular a continuidade da produção, gerando logo a frente uma redução drástica da oferta, o que causaria como consequência direta a disparada dos preços domésticos, com pressões inflacionárias que demandariam grandes esforços orçamentários para a sua contenção. O Governo Chinês vem reduzindo há anos os programas de subsídios à produção agrícola. Qualquer inversão no quadro de abastecimento vindo do exterior implicaria na necessidade de ampliação vigorosa dos subsídios, sem que houvesse uma contrapartida em termos de aumentos do volume de produção e muito menos de incremento da produtividade, entre vários outros agravantes que prejudicariam muito a capacidade de gestão do Partido Comunista.
A SINOGRAIN é a empresa estatal chinesa responsável pela formação, administração e distribuição dos estoques de alimentos essenciais, principalmente grãos como arroz, milho, soja, trigo e outros. Seus técnicos possuem a visão estratégica muito aprimorada e monitoram com grande competência o que acontece nos rincões mais distantes onde os países fornecedores produzem o que lhes interessa. Dito isso, são incabíveis as alegações que vem sendo espalhadas aos ventos do WhatsApp de que os chineses teriam fabricado o Coronavírus para comprar alimentos mais baratos. O acúmulo de grandes volumes de grãos traz um sério risco de deterioração da qualidade e contaminações por fungos patogênicos altamente perigosos, como os que geram a “aflatoxina”, por exemplo. Por outro lado, significaria a indisponibilidade de muitos bilhões de dólares em capital de giro, algo que realmente não faz o menor sentido do ponto de vista econômico-financeiro mais elementar.
Na mesma linha, considero que os estrategistas chineses são bastante inteligentes para não tomarem posições compradas gigantescas em Petróleo. Qualquer movimento dessa ordem, o que admito apenas para enriquecer o debate, desencadearia uma série de reações imprevisíveis ao redor do mundo e certamente que ajustes agressivos por parte da OPEP, sem falar nas retaliações dos países membros da OMC, justamente o clube que a China batalhou arduamente para entrar como sócio nos últimos anos.
Os chineses estão longe de serem imediatistas em seus movimentos estratégicos e, nesse sentido, podem muito bem abrir mão de vantagens efêmeras para poder conquistar posições mais duradouras em prol dos seus objetivos. Literalmente, não são como os brasileiros que se caracterizam pelas tomadas de vantagens curtas e que não se sustentam no longo prazo.
Para atingirem os supostos objetivos “malévolos”, no estilo dos imperadores raivosos descritos no Livro “A Arte da Guerra” de SunTzu, os quais têm sido propagados com enorme criatividade pelos autores anônimos das redes sociais, bastaria que o Governo Chinês,que detém uma reserva cambial gigantesca, colocasse à venda uma parte do seu estoque de títulos da dívida americana (TreasureBonds), estimado em janeiro de 2020 em USD 1,1 trilhões.Se a idéia diabólica de Xi Jimping fosse destruir a economia americana e causar conturbações nos mercados internacionais, poderia simplesmente estabelecer um desconto sobre o valor de face de apenas 10% dos T-Bonds em seu poder, fazendo vendas massivas dos títulos. Veríamos a desintegração abrupta e virulenta dos ativos no mundo inteiro, causando um efeito em cascata incontrolável e infinitamente mais pavoroso do que o Coronavírus.
Possivelmente, seria o fim do domínio do dólar como padrão monetário global.
Apesar do absurdo da hipótese aventada acima, efetivamente seria uma ação concorrencial muito mais agressiva e consistente, a qual poderia não poderia ser contra-atacada pelos opositores, pois se trataria de uma decisão soberana em matéria de política monetária.
Pensando que a intenção chinesa teria sido propositadamente criar condições desonestas que possibilitassem avançosem posições geopolíticas e econômicas, o melhor teria sido queimar uma parte das reservas cambiais, pois o custo teria sido muito menor e os resultados potenciais mais efetivos. Trata-se de um cálculo que os chineses sabem fazer muito bem. Não haveria a necessidade do sacrifício de milhares de vidas, muitos menos a paralisação do País, justamente na época mais aguardada pelo Povo que é o período das comemorações do Ano Novo, que chega a movimentar ao redor de 1 bilhão de pessoas e registra de forma retumbante todo o vigor da economia chinesa.
Portanto, me parece que as teses conspiratórias, além de serem levianas, não se sustentam minimamente diante de uma avaliação mais coerente da conjuntura. Ademais, na atualidade fala-se muito de que o Governo Chinês estaria fazendo movimentos estratégicos conhecidos como “take over” (tomadas agressivas de controle acionário), principalmente em grandes empresas de tecnologia ao redor do mundo. No entanto, os textos acusatórios não indicam que companhias seriam essas, muito menos demonstram quem seriam os adquirentes. Realmente muito estranho, não acham? Pois é!
Há muito tempo que as transações sigilosas, que escondiam o nome dos adquirentes e dos vendedores de ações, foram completamente banidas do ambiente das Bolsas de Valores. Quase todos os países são signatários dos Acordos de Prevenção à Lavagem de Dinheiro, o que obriga a qualquer um, seja quem for, a demonstrar a origem dos recursos e, em alguns casos,a fazer algo parecido como um exame de DNA. Quem sabe o que significa a sigla “KYC - KnowyourClient”, haverá de concordar comigo, ainda que seja parcialmente. Aceitar as postulações conspiratórias que estão voando pela internet significaria o mesmo que afirmar que os Estados Unidos se abriu completamente a lavar dinheiro do narcotráfico e do terrorismo internacional, o que é,definitivamente, mais do que ridículo.
Por fim, quero deixar o registro aos leitores do Noticias Agricolas que tiveram a paciência de ler esse artigo até aqui, que a economia global depende muito do fluxo comercial estabelecido com a China.
É com profundo pesar que observo no Agronegócio Brasileiro a propagação de inverdades e estupidezes ofensivas contra o nosso maior cliente.
Realmente, gostaria muito de ver o que fariam se os chineses deslocassem boa parte das compras para os países da Africa Subsaariana, que possuem condições edafoclimáticas semelhantes e até de logística melhores do que as nossas devido a maior proximidade, os quais podem tranquilamente no médio prazo e com os investimentos realizados pela China se tornarem grandes produtores e exportadores de soja, milho, carnes e o que for. De que forma lidaríamos com a perda de uma parte substancial da demanda chinesa? Cabe lembrar que a Africa reúne, segundo a FAO, ao redor de 500 milhões de hectares de “Cerrado" aptos à agricultura.
Segundo o meu “Professor” e Amigo Liones Severo, que foi o pioneiro das exportações brasileiras de soja para a China, cada navio PANAMAX equivale a cerca de 20.000 hectares plantados. Se considerarmos o volume embarcado, podemos afirmar que bem mais do que a metade da área cultivada aqui, que trouxe grande desenvolvimento e prosperidade para o interior do Brasil, principalmente para o Centro-Oeste, se deve ao fato dos chineses terem decidido melhorar o padrão alimentar do seu Povo, tendo fomentado o fornecimento de matérias primas para atender ao consumo dos rebanhos de aves, suínos e peixes criados naquelas bandas.
Pensemos nisso antes de difundir idiotices que demonstram um elevado grau de ingratidão, ignorância e total desrespeito, num momento de profunda consternação.
Acredito, sinceramente, que essa conjuntura trará enormes oportunidades para estreitar a colaboração entre os Povos e que poderemos sair dessa pandemia para um estágio superior.
Atenciosamente,
Eduardo Lima Porto
LucrodoAgro - Consultoria Agroeconômica