O risco, a virtude e o impacto na pecuária responsável, por Aline Locks
Agricultura e pecuária são irmãs muito próximas. Convivem perfeitamente bem e, quando estão juntas, o apoio mútuo traz resultados positivos a ambas. Deveriam ser inseparáveis, mas muitos as veem quase como antagônicas
Quem acompanha o mundo do agronegócio responsável, por exemplo, percebe como elas costumam ser tratadas de forma desigual. A agricultura, como a noiva cobiçada para projetos “verdes”, com potenciais dotes em crédito de carbono. A pecuária, como a ovelha negra, fama nem sempre justa. Na dúvida, pensam alguns, melhor não a levar ao altar dos investimentos de impacto.
Essa percepção – incorreta e, em grande parte das vezes, baseada na falta de informação – promove um desequilíbrio nas oportunidades de melhoria entre as duas atividades. Enquanto há uma demanda crescente de empresas e investidores por projetos relacionados ao incentivo à adoção de boas práticas socioambientais agrícolas, de outro lado abundam pressões sobre os pecuaristas para que se enquadrem em modelos de produção sustentável.
Por isso, é sempre importante, mais que embelezar a noiva, ressaltar as virtudes da pecuária e tentar, assim, desviar o olhar do mercado do risco para a oportunidade. Não se pode associar a atividade como um todo a um grupo que age em desrespeito às leis ambientais.
Não se deve, na mesma medida, ignorar os empenhos de muitos em tecnificar e profissionalizar a pecuária, dotá-la de mais instrumentos para rastreabilidade, intensificação e aumento de produtividade. A agricultura passou por isso antes. A irmã segue seus passos.
Diz o ditado que onde tem maior risco, há mais oportunidade. Ou seria mais impacto?
Recentemente, em um painel realizado durante a Climate Week, em Nova York, o diretor de Sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), Fernando Sampaio, apresentou dados que demonstram o potencial da utilização de áreas hoje ocupadas pela pecuária de baixa tecnologia e baixa eficiência como uma “oportunidade econômica, ambiental, climática e social”.
Ele lembrou que 76% das pastagens são destinadas à produção ineficiente e defende que “todo esse espaço pode ser usado para aumentar a produção de carne bovina, com intensificação tecnológica, satisfazendo a crescente demanda global, especialmente na Ásia, e ao mesmo tempo reduzir a pegada ecológica da produção com o emprego de técnicas agrícolas de baixo carbono e com restauração de pastagens degradadas”.
Isso só terá efeito, no entanto, se houver inclusão de pequenos produtores e adesão às boas práticas, garantindo a intensificação da produção pecuária e a rastreabilidade dos rebanhos.
“Historicamente, houve muita resistência em se implantar sistemas de rastreabilidade devido ao custo e à complexidade da cadeia de fornecedores” disse Sampaio. Custoso e de difícil implantação, o projeto leva tempo para ser implantado, por isso deve ser iniciado imediatamente, em um esforço combinado entre iniciativas públicas e privadas.
Enquanto isso, uma alternativa proposta da Abiec seria criar um sistema cruzando informações já existentes, como as das Guias de Trânsito de Animal (GTAs) e as do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Assim, seria criado um modelo de rastreabilidade de baixo custo, curto prazo e em grande escala.
Hoje, o Pará é o único estado da Federação a possuir essa vinculação, inviabilizando a possibilidade de propriedades com passivos ambientais emitirem a GTA até sua regularização nos órgãos de fiscalização ambiental.
Ainda não há, no entanto, clareza sobre os impactos dessa medida sobretudo para a segurança sanitária. Nesse sentido, se faz necessário estudar a fundo a experiência do Pará para identificar quais foram as principais lições aprendidas, as quais poderão servir como referência para o aperfeiçoamento desse procedimento e para a sua implementação em outros estados.
Na Amazônia, a combinação de pecuária com projetos agroflorestais com o objetivo de gerar renda a pequenos produtores também tem potencial para reduzir a pressão sobre áreas ameaçadas pelo desmatamento.
Não podem, no entanto, ser vistas como ações isoladas. O real impacto depende de escala. E a escala, de recursos. Um cenário mais favorável, nesse sentido, é a priorização de grandes programas de recuperação e conversão de pastagens degradadas, nos quais as irmãs agricultura e pecuária, de mãos dadas, podem fazer grande diferença.
Vale relembrar aqui um estudo da Esalq/USP estimando que a conversão de 30 milhões de hectares – o que, segundo a Embrapa, significa um quinto do total das pastagens de baixa produtividade existentes no Brasil – geraria um crescimento de 1,2% no PIB brasileiro.
A Textile Exchange, que representa grifes internacionais de moda, tem trabalhado em um piloto com a Produzindo Certo para a criação de um mecanismo de créditos de couro sustentável, que remunera pecuaristas que comprovem a adoção de um protocolo de ações de produção responsável no manejo de seus rebanhos.
Estratégias como essa nos mostram que equalizar riscos e investimentos é tarefa de todos que buscam uma agropecuária responsável. E isso começa pela valorização da pecuária como instrumento de transformação.
* Aline Locks é engenheira ambiental, cofundadora e atual CEO da Produzindo Certo, solução que já apoiou a maneira como mais de 6 milhões de hectares de terras são gerenciados, através da integração de boas práticas produtivas, respeito às pessoas e aos recursos naturais. Liderou projetos com foco em inovação e tecnologia, como o 'Conectar para Transformar', um dos vencedores do Google Impact Challenge Brazil. Recentemente foi selecionada pela Época Negócios como um dos nomes inovadores pelo clima, é uma das 100 Mulheres Poderosas da revista Forbes e uma das líderes do agronegócio 2021/2022 pela revista Dinheiro Rural.