Eleição 2022: o brasileiro quer retroceder ou avançar? Por Paulo Moura
Toda eleição propõe ao estrategista um enigma a ser decifrado, que é o de interpretar o sentimento dominante da maioria do eleitorado, de modo a elaborar uma estratégia de comunicação que permita ao candidato se conectar com esse sentimento, propondo que ele é quem melhor pode corresponder a essa expectativa. Em 2022 a pergunta que se impõe é: avançar ou retroceder?
O presidente Bolsonaro se elegeu em 2018 correspondendo à expectativa da maioria dos eleitores que era de rejeição à corrupção e ao sistema político em geral, aí inclusos os dois principais representantes do establishment político nacional, PT e PSDB, que se revezaram no poder nas décadas anteriores e ambos se envolveram em corrupção, alimentando o sentimento de repulsa do eleitor com o qual o então candidato antissistema se conectou.
A vitória de Bolsonaro em 2018 significou mais um passo na direção das mudanças que o povo brasileiro começou a promover com o impeachment de Dilma Rousseff e a derrota de todos os partidos tradicionais da política brasileira na eleição presidencial de então.
O debate eleitoral organiza-se em torno de temas que exigem dos candidatos posicionamentos e respostas. Esses temas não são aleatórios, mas sim determinados pelos fatos da conjuntura e pelas demandas e sentimentos dos eleitores, sendo que o tema dominante, correspondente ao sentimento principal dos eleitores, influencia de forma determinante o curso e o resultado da eleição.
A título de exemplo, no recente pleito presidencial dos EUA a questão central em debate na pauta da política nacional antes do surgimento da pandemia do coronavírus era o pujante desempenho da economia americana sob o governo de Trump e, consequentemente, a questão de fundo proposta aos eleitores era: você quer que o país continue nesse rumo ou quer mudança?
A pandemia e suas consequências sobre a economia mudaram radicalmente a pauta do debate político, com a questão da doença substituindo a questão econômica como centro da agenda nacional e mudando a pauta da eleição, que passou a ser a polêmica, incentivada pela imprensa, sobre a gestão das respostas do governo à questão da saúde pública.
A situação do Brasil guarda similaridade com esse cenário, mas há diferenças. Nos EUA e eleição aconteceu num momento ascendente da pandemia e o ápice da primeira onda do vírus praticamente coincidiu com o período da votação. Aqui vivemos um contexto de dúvida sobre se haverá terceira onda com a curva de óbitos caindo acentuadamente, o presidente se vacinou contra os que defendiam as quarentenas e lockdowns avisando as pessoas sobre as consequências nefastas da política do “fique em casa”.
Por fim, apesar da alta do desemprego, o PIB de 2021 projeta um crescimento de 5%, o de 2022 de cerca de 1,5% e uma parcela expressiva das empresas se adaptou ao chamado “novo normal” e aprendeu a operar on-line e adotando medidas de profilaxia que possibilitaram a retomada das operações. O setor informal e os segmentos que não conseguem operar nas novas condições e que foi mais prejudicado pelo impacto do fechamento é algo de políticas públicas de proteção que amenizam as perdas e possibilitam uma transição mais tranquila para a retomada pós-pandemia.
Esse, no entanto, é o ambiente conjuntural, sujeito a chuvas e tempestades num contexto em que a mídia, o STF e a oposição partidária operam em sintonia para derrubar o presidente ou tentar derrotá-lo nas urnas.
No âmbito estrutural, o sentido do processo histórico que o Brasil experimenta é o de um conflito entre o “bloco histórico” da mudança, composto pelos segmentos que foram às ruas derrubar Dilma Rousseff e eleger o presidente Bolsonaro, contra o “bloco histórico” dos desmamados das tetas do Estado e que vivem às custas dos primeiros.
Pela primeira vez na história do país emergiu das ruas um movimento social de âmbito nacional, que assumiu contornos políticos ao derrubar um governo de esquerda e substituí-lo por outro de direita, cujo projeto é de conteúdo liberal na economia e conservador nos costumes.
Trata-se da terceira onda de liberalização da economia brasileira, que teve início com o governo Collor, avançou mais alguns passos com as privatizações do governo FHC (que não ousou avançar as reformas administrativa e da Previdência), sofreu um retrocesso sob os governos petistas e retomou seu curso com a eleição de Bolsonaro.
Collor ousou tentar derrotar o paradigma do estado hegemônico com um “ippon” (termo utilizado em competições de artes marciais japonesas, como karatê e judô, atribuída a um golpe “perfeito”). Eleito por um partido com pouco mais de dez deputados, abriu ataque em leque contra a casta que controla o poder e sofreu impeachment sob pretexto de corrupção.
Tendo assistido a derrota de Collor, FHC alia-se ao PFL (hoje DEM), atrai o centrão para a coalisão governista e, num contexto mundial de falência do socialismo real após a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS, em que a social-democracia europeia se travestiu de terceira via entre o comunismo e o conservadorismo, avançou privatizações abraçando parte da agenda liberal. O governo tucano, nesse contexto, reformou o capítulo da ordem econômica da Constituição de 1988, privatizou, mas refugou a Reforma do Estado e equilibrou as contas públicas às custas de um brutal aumento da carga tributária (de 24% para 36% do PIB) e do aumento do endividamento público e da elevação da taxa de juros para rolar os títulos da dívida.
Lula, eleito graças ao desemprego e a recessão, resultantes da política econômica tucana, executa a estratégia de Lênin, dando um passo atrás para depois avançar dois passos à frente. Com Palocci no ministério da Fazenda aprofunda a ortodoxia da política econômica tucana até ganhar a confiança do empresariado e começar a esquerdização do governo. O retrocesso da trajetória liberalizante da economia brasileira tem início com a substituição de Palocci por Mantega na gestão da economia, retomando o inchaço do Estado com a contratação de novos funcionários, criação de estatais, concessão de aumentos reais de salário bem acima da inflação, elevação acelerada do gasto público, peripécias criativas na contabilidade pública, flexibilização e incentivo ao crédito e ao consumo. Essa política foi ao ápice em 2010 com a eleição de Dilma Rousseff sob o ambiente de um crescimento de 7% do PIB, e deu início ao declínio com a recessão o desemprego e a volta da inflação que pavimentaram o impeachment de Dilma Rousseff.
Tudo isso regado aos maiores escândalos de corrupção da história das democracias ocidentais, com o PT levando o presidencialismo de coalisão com o centrão ao estado da arte em termos estratégia de cooptação de base parlamentar às custas do erário público.
O impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Bolsonaro devolvem o Brasil ao ciclo de redução do tamanho do Estado e liberalização da economia inaugurado por Collor. Sob certos aspectos, o governo Bolsonaro, em sua primeira fase, guarda algumas semelhanças com circunstâncias que envolveram o governo Collor. A primeira semelhança é a inexistência de uma base partidária sólida e a exclusão do centrão da aliança governista. A segunda é a agenda econômica liberal, sendo que a presença de liberais no governo de Bolsonaro foi, até a pouco, a maior que o Brasil já testemunhou.
Diferentemente de Collor, no entanto, Bolsonaro conta com uma ampla base social politizada e mobilizada, e com contornos ideológicos mais fortemente conservadores do que liberais, muito embora o ministro Paulo Guedes conte com forte simpatia e apoio dessa base à sua política econômica.
Trata-se da chamada “nova direita” que nasceu nas ruas, do enfrentamento à esquerda, motivada pelo alto custo dos governos petistas, especialmente para um segmento das classes médias que vivem do próprio trabalho e empreendimentos privados, sem depender do Estado e tendo que sustentar a corporação dos mamadores nas tetas do erário, aos quais se acrescentou a insuportável agenda ideológica antifamília, antiliberdade individual, antiliberdade econômica, antipropriedade privada e anticristã do petismo.
No embalo das ruas, o governo Bolsonaro inaugura seu mandato confrontando o establishment com a mobilização do povo fazendo pressão sobre o Congresso e o STF para fazer avançar a agenda da mudança. Sob o signo desse presidencialismo de colisão, Bolsonaro aprova a mais ousada Reforma da Previdência que o Brasil já viu, e aprova também, a Lei da Liberdade Econômica.
A partir daí o establishment começa a reação com a aliança do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM) com o STF, que em conjunto e com apoio da mídia tradicional travam a onda das mudanças que embalou no primeiro ano de mandato do novo presidente.
Obstaculizado por essa oposição sistêmica, Bolsonaro ensaia recorrer ao artigo 142 da Constituição para intervir no STF e desbloquear a implementação da agenda liberal-conservadora interrompida. O apogeu dessa estratégia foi a manifestação de maio de 2020 em frente ao QG do Exército em Brasília, na qual o presidente sugere contar com o apoio das Forças Armadas, que não se confirmou. Ato contínuo, Rodrigo Maia e seus amigos do STF reagem com a tentativa de impor o impeachment do presidente eleito.
Derrotado, Bolsonaro muda a linha estratégica de sua atuação e inaugura a segunda fase de seu governo, partindo para jogar no campo do adversário: o campo da política tradicional.
A nova estratégia é posta em operação em junho de 2020 com a cooptação de parte do centrão, movimento que divide a base do então presidente da Câmaras dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM) e contém a abertura de um processo de impeachment contra o presidente, articulada por Maia junto ao STF, com apoio de um segmento do empresariado desmamado das tetas do erário. Essa estratégia desenvolve-se ao longo de oito meses até que, em fevereiro de 2021, Bolsonaro consegue eleger Arthur Lira (PP) e Rodrigo Pacheco (DEM), seus aliados, para as presidências da Câmara e do Senado.
Ato contínuo, a agenda das reformas é destravada com a aprovação da autonomia do Banco Central, do novo marco regulatório do câmbio e os novos marcos regulatórios das startups, do gás natural e do saneamento. No momento em que esse artigo é escrito, estão na pauta do Congresso para aprovação ainda em 2021, os novos marcos regulatórios das ferrovias e da navegação de cabotagem e as reformas tributária e administrativa, completando a mais ousada e robusta pauta de reformas da economia jamais aprovada no Brasil. Os novos marcos regulatórios do gás, saneamento, ferrovias e cabotagem e as obras que o governo toca em todo o país constituem-se na maior revolução que o país já assistiu na sua infraestrutura desde os tempos do milagre brasileiro na primeira fase dos governos militares.
As pautas dos conservadores, em nome das quais o presidente também se elegeu, sofrem resistências e contestações pelo STF e pelo Congresso presidido por Maia e, por ser mais controvertida, não é de fácil avanço, mesmo sob o novo comando das Casas Legislativas. Mesmo assim, o governo emite sinais de que tentará a aprovação do voto impresso e auditável, do homeschooling e novos avanços na questão de direito à posse e porte de armas legais pela população.
Com todos os entraves e obstáculos interpostos pelo establishment ao avanço da agenda de mudanças desse governo, é forçoso reconhecer que os avanços não são poucos e são incontestáveis.
As forças contrárias, antevendo a possibilidade real de vitória do presidente Bolsonaro na eleição de 2022, diante da debilidade de seus adversários, livraram Lula, o mais forte dos candidatos de oposição, das suas condenações, colocando-o de volta no tabuleiro político da disputa pela Presidência da República num pleito que a polarização já posta entre direita e esquerda não comporta espaço para terceiras vias.
As propostas dos dois candidatos principais são conhecidas e estão postas, seja lá qual for a mágica que o marqueteiro do PT fará para maquiar a natureza do escorpião petista.
Diante da ameaça de retrocesso histórico, a pergunta se impõe aos liberais e centristas que tentam viabilizar a tal terceira via: vamos continuar avançando com Bolsonaro ou vamos retroceder com o PT?