Poder360: Saída da Ford é só um sintoma da “doença” que faz definhar a indústria, por José Paulo Kupfer
O anúncio do encerramento de produção de veículos no Brasil pela Ford, depois de 100 anos de presença no país, causou grande comoção, e deflagrou intenso debate. Desse debate é possível extrair uma lista quase infindável de erros de política econômica, à escolha do viés ideológico do freguês, e também uma outra lista, tão infindável quanto, de soluções que, em geral, nada mais fazem do que dobrar apostas em políticas que já foram testadas e deram errado.
Um excessivamente genérico “custo Brasil” subiu ao pódio dos culpados pela despedida da montadora. Nesse balaio, reunindo diagnósticos liberais e desenvolvimentistas, couberam, principalmente, inseguranças jurídicas, custos trabalhistas, crédito caro e escasso, distorções tributárias e câmbio valorizado. E também críticas aos subsídios que tentaram compensar, sem sucesso, as desvantagens existentes. Soluções? Até aqui, mais do mesmo.
Basta, porém, uma olhada na trajetória da indústria brasileira, nas últimas quatro décadas, para entender que não se trata de encontrar um culpado específico. A curva histórica retrata um mergulho consistente e evidencia um problema estrutural, com múltiplos determinantes. A moral dessa história é que as soluções de praxe não darão conta de reverter a atual situação de agonia em que a indústria brasileira se debate.
Do pico de quase 30% de participação na produção total, a indústria despencou, consistentemente, para meros 11%, em 2019. Um soluço entre entre fins dos anos 90 do século 20 e meados dos anos 2000, já no século 21, quando a participação da indústria no PIB subiu de menos de 15% para perto de 20%, não foi suficiente para impedir a decadência.
O caso da Ford, claro, tem elementos peculiares. O primeiro, e mais importante, é a reestruturação estratégica da companhia em termos globais. A Ford decidiu concentrar suas energias na produção de veículos de maior valor agregado, tecnologicamente mais adensados. Não havia nada parecido nas plataformas de produção da empresa no Brasil.
Aqui, a montadora se especializou na produção de carros populares, com baixa margem unitária, o que fazia a empresa depender, portanto, do volume de vendas para assegurar lucratividade. Ocorre que pelo menos há dez anos a economia brasileira se encontra estagnada.
O crescimento médio anual entre os anos 2010 e 2020 não passou de 0,2%, com as consequências negativas esperadas na evolução da renda e da demanda. Uma virada exigiria demolir o que existia e começar quase do zero. Algo inviável, sobretudo no ambiente industrial decadente em que as cadeias locais de produção se debatem pela sobrevivência.
A verdade é que a indústria brasileira padece de uma enfermidade crônica, produzida por múltiplas disfunções, e o caso Ford é apenas um sintoma dessa doença.
Ao falecer, em fevereiro de 2020, o economista David Kupfer* deixou inacabada uma estrutura conceitual capaz de explicar essa doença, ao qual ele nomeou exatamente como “doença industrial brasileira” (DIB). Professor do Instituto de Economia da UFRJ, David Kupfer era uma das principais referências brasileiras nos temas da organização industrial e da competitividade da indústria.
Recentemente, o economista André Rocanglia de Carvalho, professor do curso de economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), resumiu em um artigo os pontos centrais da DIB. Com o título “A compulsão ausente”, o texto pode ser acessado no site Revolução Industrial Brasileira, do jornalista Fausto Oliveira.
Essa doença, tentando resumir, decorre da combinação de um ambiente macroeconômico e de um regime competitivo hostis ao desenvolvimento industrial. O ambiente macro desfavorável à indústria se caracteriza por um longo período de juros elevados, taxa de câmbio valorizada e políticas quase permanentes de austeridade. Quanto à competitividade, a indústria tem sido vítima de uma inversão de incentivos, que a leva, segundo a DIB, a uma “especialização regressiva”.
O sistema tributário, por exemplo, para começar incide com mais peso sobre a atividade industrial, pelo fato de ser ela por natureza formal. Além disso, incentiva a verticalização da produção, em lugar da horizontalização mais eficiente, em função, entre outros, de sua tendência a bitributar atividades.
Mais anômalo que isso é o sistema tarifário, que protege as etapas de produção do início das cadeias de produção para o fim, na contramão do que é padrão nos regimes de outros países. Normalmente, no exterior, tarifas são desenhadas para proteger o produto final, retrocedendo em escala até a matéria prima. No Brasil, dá-se o inverso. O aço é superprotegido, do que resulta incentivo para a importação da máquina completa.
É interessante notar, em atenção a essa inversão, a perda de conteúdo local nas empresas industriais brasileiras. Ao longo tempo, mais e mais partes e peças passaram a ser importadas. No caso da indústria automobilística, por exemplo, a participação da produção doméstica no conjunto dos veículos produzidos vem caindo.
Com isso, a fixação de uma taxa de câmbio mais desvalorizada perdeu muito de sua função de proteção da indústria interna, para se transformar em pressão de custos de produção. A Ford foi uma das vítimas desse fenômeno, com a desvalorização cambial de 2020, nas alturas de 30%.
Também são escassas, para não dizer inexistentes, as linhas de financiamento de longo prazo. Na falta de um sistema que garanta recursos em alinhamento com a taxa mais demorada de retorno dos investimentos, o empresário é incentivado a adotar posição conservadora, minimizando os investimentos. Trata-se de uma atitude negativa, mas racional, diante do ambiente pouco favorável, muitas vezes confundida com rentismo.
Tal conjunto de disfunções, de acordo com as linhas da DIB, condena a indústria a uma rigidez estrutural, que mina sua capacidade de inovar. É lamentável verificar que os produtos industriais da pauta de exportação brasileira são hoje praticamente os mesmos daqueles exportados quatro décadas atrás.
A indústria automobilística é um exemplo vivo e triste dessa realidade. O atual parque –que, aliás, tem, no momento, capacidade de produção duas vezes e meia maior do que as empresas têm conseguido produzir– está obsoleto. A indústria brasileira em geral perdeu a onda de inovação tecnológica e organizacional que sacudiu a indústria global, numa corrida puxada pela China, a partir dos anos 2000.
Baseada na comunicação sem limites propiciada pela internet e a eficiência logística trazida pelos contêineres, formaram-se cadeias globais de suprimento, mas o Brasil ficou de fora. No caso dos automóveis, isso resultou em atraso profundo. Enquanto o mundo avança para carros híbridos e elétricos, o Brasil só produz veículos a combustão, movidos a gasolina ou etanol, candidatos certos ao museu em dez anos.
Os desincentivos generalizados acabam jogando as indústrias e os industriais numa “armadilha do baixo custo”. Como exemplifica Roncaglia em seu artigo, “competir com a China implicaria investir mais na qualidade dos produtos”, inovar para cobrar mais caro por um item melhor. A indústria brasileira não dispõe, atualmente, de incentivos para uma virada desse porte.
Diferentemente, a empresa brasileira se vê obrigada a promover rodadas sucessivas de redução de custos. Daí resulta uma “desespecialização”, de diversos fatores, inclusive da mão de obra, com um trabalhador passando a fazer a tarefa de dois, com consequente perda de competitividade.
Como tem sido notado desde que a Ford anunciou o fechamento de suas fábricas no Brasil, outras multinacionais estão fazendo as malas e saindo do Brasil ou fechando unidades de produção. Este é o caso da Mercedes Benz e aquele é o caso da Sony, que abandonou suas linhas de produção mantidas há tempos na Zona Franca de Manaus. Será, infelizmente, o caso de muitos outros.
(*) David Kupfer, vítima de câncer de pâncreas, morto aos 63 anos, era irmão caçula do articulista.