Desafios reais, por Roberto Padovani
As atenções do mercado estão naturalmente voltadas para dois temas de curto prazo no Brasil, a manutenção das regras fiscais e a decisão sobre o auxílio emergencial. A preocupação faz sentido, uma vez que estas variáveis influenciam as projeções de câmbio, inflação, juros e crescimento.
O problema, no entanto, é que mesmo que a responsabilidade seja mantida, será preciso enfrentar a baixa capacidade de crescer, a dívida elevada e a desconfiança dos investidores externos. Estes são os desafios reais do País.
A relevância do programa social é inegável. O indicador de massa salarial ampliada do Banco Central, que inclui a renda do trabalho e outros benefícios, aponta para uma contração da renda neste ano de cerca de 4,0%. Quando se considera o auxílio emergencial haveria, opostamente, uma expansão próxima a 9,0%, taxa superior à média de quase 6,0% observada no último ciclo de commodities.
Se o programa de ajuda é importante e explica a rápida recuperação da economia 1, então também é verdade que seu fim irá afetar a retomada em um momento de fragilidade do mercado de trabalho e perda de fôlego da recuperação global 2. O resultado deverá ser a devolução de parte dos ganhos observados no comércio 3, elevando novamente a ociosidade no mercado de bens.
A interrupção do auxílio deverá também gerar danos no ambiente político, não apenas pelos impactos mais gerais sobre o emprego, mas também pela redução súbita de beneficiários 4.
Como resultado, há a leitura de que existe uma forte coalizão a favor da expansão fiscal, uma onda irreversível pela manutenção de gastos públicos elevados.
Apostar no abandono das regras fiscais, no entanto, equivale a supor uma miopia generalizada e um cálculo político que ignora os custos de curto prazo de uma decisão. A continuidade do programa eleva as incertezas sobre a dinâmica da dívida e pressiona câmbio, inflação e juros, abortando a retomada 5. Dada a relação histórica entre consumo e aprovação do governo, a crise econômica alcançaria a política e criaria um cenário de poucos vencedores.
A alternativa de manter as regras, por outro lado, tem o benefício de preservar a dinâmica econômica já em curso. Caso se confirme a expectativa de crescimento de 9,0% no terceiro trimestre e de 2,0% nos últimos três meses do ano 6, o carregamento estatístico7 para 2021 poderá ser de 3,2%.
Mas há uma chance de que as coisas sejam ainda melhores. A agropecuária e a indústria extrativa devem continuar sendo favorecidas pelo câmbio desvalorizado e pelo novo ciclo global de crescimento, com seus impactos sobre preços de commodities. O dólar ajuda também a indústria de transformação ao preservar a competitividade nos mercados locais e globais, além dos efeitos favoráveis de juros baixos, principalmente no caso da construção civil. Por último, fatores econômicos e não econômicos devem empurrar o setor de serviços. Além da volta da renda do trabalho, inflação baixa, recuperação da confiança e uso da “poupança circunstancial” 8, a reabertura gradual da economia deverá favorecer parcela importante do PIB, hoje atrasada em relação a outros setores em seu processo de “normalização”.
Neste caso, os incentivos sugerem a manutenção da responsabilidade. É sempre arriscado apostar na irracionalidade, mesmo na política. O resultado é que o desafio principal do País não está na manutenção das regras fiscais de curto prazo. Mesmo que tudo caminhe bem, o problema está em aumentar a capacidade de o País crescer, controlar o endividamento público e, com isso, voltar a atrair os capitais externos.
Para isso, será preciso avançar nas reformas que reduzam o tamanho do Estado e melhorem o ambiente de negócios, permitindo tanto o controle da dívida pública quanto o aumento dos investimentos e da produtividade. Embora a ociosidade da economia e a dívida pública elevada pressionem pela manutenção desta agenda, há o temor gerado pelas sempre presentes dificuldades de articulação política do governo e por um eventual cansaço com o longo processo de reformas iniciado em 2016.
Portanto, apesar das atenções estarem naturalmente voltadas para as regras fiscais de curto prazo, os desafios que importam são outros. O Brasil tem um encontro marcado não com a irresponsabilidade, mas sim com seus eternos gargalos produtivos, endividamento elevado e desconfiança global.
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1 Depois de um tombo de 12% do PIB no primeiro semestre, a recuperação nos últimos seis meses do ano deverá se aproximar de 11%, com a economia praticamente voltando aos níveis de produção anteriores à pandemia. Com isso, é bastante provável que a recessão estimada para 2020 fique bem abaixo das previsões mais pessimistas, como a estimativa feita pelo FMI de uma retração de 9,1%.
2 A taxa de desemprego poderia estar próxima a 24% caso as pessoas que deixaram de procurar emprego em função do confinamento, desalento ou dos programas de ajuda fossem consideradas desempregadas. Da mesma forma, a segunda onda de contágio global explica a perda de fôlego na retomada econômica, como já se vê na Europa, principalmente no segmento de serviços.
3 O volume de vendas do varejo restrito está cerca de 8% acima do patamar de fevereiro.
4 Estima-se que o fim do programa implique 50 milhões a menos de beneficiários. Os cerca de 69 milhões de brasileiros que recebem o auxílio emergencial seriam reduzidos para os 19 milhões do bolsa família.
5 Além dos custos econômicos, sociais e políticos, há no Brasil restrições institucionais que dificultam a mudança do regime econômico.
6 Mediana das projeções coletadas pela Agência Estado.
7 O carregamento estatístico mostra que mesmo que não haja crescimento ao longo dos trimestres de 2021, a média anual do crescimento ficaria acima da de 2020.
8 O entesouramento e os volumes de captação de poupança e CDB sugerem que uma parte importante dos recursos dos programas públicos não foi gasta. Ainda que esta poupança possa ter sido gerada pela precaução dos agentes, o mais provável é que ela tenha sido “circunstancial”, dada as características de redução de mobilidade do choque. Isso implica, portanto, que estes recursos deverão voltar para a economia assim que ela seja totalmente aberta.