Comentários sobre o artigo “O mundo sem a Amazônia”, por Luiz Carlos Molion
COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO “O MUNDO SEM A AMAZÔNIA”
[publicado por piaui.folha.uol.com.br em 17/10/2019]
Luiz Carlos Baldicero Molion
lcmolion@gmail.com
Todos argumentos apresentados nesse artigo estão baseados em resultados de Modelo de Clima Global (MCG) que não conseguem reproduzir o clima atual e, particularmente, o ciclo hidrológico, que é fundamental para a existência do Bioma Amazônia. Nos mapas apresentados no artigo, a impressão que o leitor tem é que a variação das temperaturas e das chuvas apresentada é um “continuum”, tanto no espaço como no tempo. Mas, isso não é real. Um MCG é um código de computador, muito complexo, com milhões de linhas de instrução e que depende de um supercomputador para resolver uma dada hipótese de trabalho, ou teste de sensibilidade, no caso, o impacto do desmatamento da Amazônia no clima. O computador, porém, não sabe o que é um “continuum”. Os dados de entrada para o MCG têm que ser discretizados. Ou seja, a assimilação de dados no MCG é feita em pontos de grade tanto na horizontal como em altitude (grade tridimensional), conforme mostrado na Figura 1.
Figura 1. Representação do planeta em Modelos de Clima Global
O MCG do Geophysical Fluid Dynamics Laboratory (GFDL) tem um espaçamento horizontal entre pontos de grade, isto é, uma resolução espacial de 1° de latitude por 1° de longitude [111kmx111km] e é integrado com uma resolução temporal de 30 minutos. Os dados das variáveis meteorológicas (temperatura, umidade, vento, etc), para o início da simulação, são informados ao MCG em cada ponto de grade distante 111km um do outro. Isso significa que o MCG não tem “informação”, ou dados, sobre o que acontece entre um ponto e outro. Todos os processos de escala espacial inferior à distância entre os pontos de grade [processos sub-grade], como ciclo hidrológico, vegetação [albedo, evapotranspiração e emissão de CO2], propriedades dos solos, topografia, têm que ser “parametrizados”.
Em particular, processos físicos de turbulência vertical, convecção (movimento ascendente de ar úmido), necessários para formação de nuvens e chuva, são processos de escala da ordem de 100m a 1.000m, e não são “percebidos” pelo modelo. Por exemplo, uma nuvem cumulonimbo situada entre pontos de grade, de 20 km de diâmetro equivalente e 12 km da altura, pode produzir um volume de chuva de até 50mm localmente, o que não seria simulado pelo modelo uma vez que este não tem a informação da presença dessa nuvem. Criam-se, então, fórmulas matemáticas simples, empíricas ou baseadas em observações, na tentativa de reproduzir os processos físicos reais.
Portanto, as equações paramétricas usadas nos códigos dos MCG são apenas aproximações dos processos físicos reais que ocorrem no sistema climático. Algumas delas podem ser bem representativas, outras, porém, podem grosseiras, porque os processos físicos que elas representam ou não são bem entendidos, como evapotranspiração, ou são muito complexos para serem incluídos no código devido às restrições computacionais. Dentre as parametrizações, o de formação de nuvens e chuva (ciclo hidrológico) merece destaque, pois permanece sendo um dos mais importantes, senão o maior, desafios, responsável pela grande diferença de resultados entre MCG. De acordo com o Teorema da Amostragem de Nyquist, a distância entre os pontos de grade é um filtro para processos físicos inferiores a duas vezes a distância entre os pontos de grade.
No caso do MCG do GFDL, todos os processos físicos com escala espacial inferior a 222 km são filtrados, não “percebidos” pelo modelo. Em adição, essas parametrizações têm que ser “calibradas”, ou “sintonizadas’ para que os resultados do modelo se aproximem da realidade observada. Nesse aspecto, existem dois pontos dignos de nota. Primeiro, a maioria do MCG foram “calibrados” com dados observados de 1975 a 2000, um período em que, reconhecidamente, o clima global estava aquecido. Portanto, essa prática é tendenciosa, uma vez que “sintoniza” os MCG na fase quente da variabilidade interna natural do sistema climático e faz que os MCG sejam exageradamente sensíveis às variações de CO2.
Segundo, os MCG foram desenhados especificamente para responder ao aumento da concentração de CO2 na atmosfera, tanto assim que, de acordo com os relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em Inglês), se se mantem a concentração de CO2 fixa, os MCG não apresentam aquecimento global significativo, alguns até apresentam resfriamento. Os cenários de concentrações de CO2 futuras (SSP e RCP) são fictícios, criados pela mente humana, e alguns deles impossíveis de se realizarem, como é o caso do RCP8.5 que prevê uma concentração de CO2 3 vezes maior que a atual para 2100. Em resumo, existe um debate acirrado na comunidade científica quanto à fidelidade dos resultados dos MCG nos testes de sensibilidade e quanto sua utilidade em prognosticar climas futuros.
Portanto, todos os resultados de simulação do desmatamento da Amazônia pelo MCG/GFDL apresentados, incluídos os impactos remotos no clima global, como aquecimento no Meio-Oeste Americano e no Ártico, são altamente questionáveis. Um exemplo da falta de confiabilidade dos MCG em prognosticar o clima futuro está na Figura 2 em que, em a), têm-se a previsão do total pluviométrico para março de 2019 feita com o MCG/GFDL, iniciada com dados de outubro de 2018 e, em b), as observações de março de 2019, dados disponíveis no Centro de Climatologia de Precipitação Global (GPCC). É evidente o erro da previsão do MCG/GFDL, particularmente sobre a Amazônia, feita com apenas 5 meses de antecedência. Se o MCG/GFDL erra crassamente com 5 meses de antecedência, qual é a confiabilidade que se pode ter em suas previsões para o ano 2050, 2100 e qual a utilidade dessas previsões para o planejamento das atividades em agricultura e geração de energia hidrelétrica?
Figura 2. Precipitação sobre a América do Sul em março de 2019. a) prevista pelo modelo do GFDL iniciado com dados de outubro de 2018; b) observada, dados disponíveis no GPCC
Uma curiosidade apenas: o MCG/GFDL tem um total de cerca de 64.800 pontos de grade, dos quais apenas cerca de 500 [0,8%] estão na Amazônia. É intrigante que apenas 0,8% dos pontos de grade tenham influência notória nas temperaturas e a chuvas globais nas simulações do modelo.
A afirmação que é a evapotranspiração da floresta que gera o vapor d’água transportado continente adentro nos chamados rios voadores e que a transformação da floresta em pastagem reduziria 25% das chuvas sobre o Brasil é apenas resultado do MCG/GFDL, sem verificação ou constatação. Amazônia não é essencial para a distribuição das chuvas para outras regiões remotas da América do Sul porque a Amazônia não é fonte de umidade para a atmosfera. Sob o aspecto climático, a Amazônia apresenta um balanço hídrico estável.
A fonte principal de umidade para as chuvas amazônicas é o Oceano Atlântico Norte, principalmente durante o verão do Hemisfério Sul. Dados observados entre 1999-2014 sugerem que, em média e em números redondos, entrem na Bacia Amazônica o equivalente a 500 mil m3/s de umidade, dos quais 80% são transformados em chuva e os 100 mil m3/s restantes “passem direto” por sobre a Região. Dos 400 mil m3/s de chuva que caem na bacia, metade sai pelo rio Amazonas [200 mil m3/s] e a outra metade é reciclada por evapotranspiração e incorporada ao fluxo de umidade que chega às outras regiões da América do Sul. Ou seja, em média, 300 mil m3/s, dos 500 mil m3/s [60%] originalmente saídos da evaporação do Atlântico, chegam a outras regiões ao sul da Amazônia, com os restantes 200 mil m3/s sendo devolvidos ao Atlântico pelo rio. Árvore, ou floresta, não é “máquina” de produzir água, apenas recicla a água da chuva anterior que estava armazenada no solo. Embora haja uma interação floresta-atmosfera, ao longo prazo, a floresta existe porque chove e não o contrário.
Prova-se, por absurdo, que, se a floresta fosse fonte de umidade, a região já teria se transformado num deserto desde que se estabilizou após o término de última era glacial há cerca de 15 mil anos. O elemento geofísico fundamental para direcionar a umidade do Atlântico para outras regiões da América do Sul é a formidável barreira imposta pela Cordilheira dos Andes ao fluxo de umidade. Outro elemento é uma célula de circulação de atmosférica direta, conhecida como Célula de Hadley-Walker, que forma em média, e sempre formará, pois o Sol inevitavelmente aquece a superfície do Continente Sul-Americano durante o verão austral. Em consequência, ar se torna menos denso e sobe (convecção), transportando umidade e produzindo nuvens e chuva. É bem provável que a floresta interaja com a atmosfera no sentido de intensificar essa célula de circulação em anos apropriados.
Anos em que essa célula não se forma são exceção. É observado, por exemplo, que, quando se tem um evento El Niño forte, como o de 2014-2016, essa célula de circulação é inibida e a Bacia Amazônica passa por uma forte estiagem. Isso não ocorreria se a floresta fosse a causa principal da existência dessa célula de circulação atmosférica. Porém, o aquecimento da superfície pelo Sol, e a consequente célula de circulação, sempre existirão, independentemente da existência da floresta.
O estoque de carbono na Amazônia é cerca de 70 a 80 bilhões de toneladas de carbono (GtC) - admitindo que a densidade de biomassa seca seja entre 250 e 300 tC por hectare em todo o bioma – que, se totalmente liberado para a atmosfera, poderia aumentar, teoricamente, a concentração do CO2 atmosférico em cerca de 35 ppmv. Entretanto, um cálculo simples mostra que, na atual taxa de desmatamento de 7.500 km2 por ano, a liberação total desse estoque levaria cerca de 700 anos para se completar, admitindo zero acréscimo de carbono regional durante esse período. Por outro lado, as medições feitas na Amazônia Central em 1987 durante o Experimento ABLE-2B [Atmospheric Boundary Layer Experiment, NASA/INPE] revelaram uma assimilação pela fotossíntese de 4,4 quilogramas de carbono por hectare por hora [kgC/ha/hora] durante o período diurno e uma perda por respiração de 2,57 kgC/ha/hora durante o período noturno. Admitindo que esses números possam ser generalizados para os 550 milhões de hectares do Bioma Amazônico, ter-se-iam 9 GtC/ano de assimilação de carbono.
Considerando que as atividades humanas emitam cerca de 10 GtC/ano atualmente, tal assimilação corresponde a praticamente 100% das emissões de carbono atuais. Se se admitir a hipótese absurda defendida pelo IPCC que o CO2 seja o grande controlador do clima global, é desejável que sua cobertura vegetal seja conservada.
A mídia afirma que a destruição do bioma Amazônia está acelerada atualmente. A Figura 3, porém, mostra que a taxa de desmatamento já foi muito maior no passado, com máximos em 1995 [29.059 km2] e entre 2002 a 2005, com pico secundário em 2004 [27.772 km2]. Em 2018, a taxa estimada foi de 7.900 km2, uma redução de 72% com relação a 1995. No caso do Brasil, ainda é preciso também distinguir “Amazônia Legal”- que é um território de 5,2 milhões de km2 demarcado para fins de incentivos fiscais – do Bioma Amazônia que cobre cerca de 65% da Amazônia Legal. As partes da Amazônia Legal que sofrem com a pressão antrópica são as regiões sul e leste, caracterizadas
Figura 3. Evolução da taxa de desmatamento da Amazônia desde 1994 [MMA, 2019]
por biomas de transição, como cerradão e cerrados, e que não são cobertas com florestas tropicais chuvosas. Ressalta-se que 84% (ou mais) do Bioma Amazônia em Território Brasileiro estão preservados segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, uma área equivalente aos territórios da Alemanha, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Noruega, Portugal, Reino Unido e Suécia somados. Antes de mais nada, deixa-se claro que não se apoia aqui o desmatamento generalizado.
Expressa-se apenas o racional, a fenomenologia física intuitivamente mais provável. O Bioma Amazônia constitui 5,5 milhões de km2, enquanto a superfície do Planeta Terra é de 510 milhões de km2 e seus oceanos cobrem 361 milhões de km2. Portanto, o Bioma Amazônia corresponde a 1% da superfície do Planeta Terra e a 1,5% de seus oceanos. Em princípio, um desmatamento de 50% ou 100% da Amazônia não afetaria o clima global por ser a Região de pequenas proporções em face da área oceânica (71%), que é um dos controladores do clima global.
Em adição, se ocorresse um desmatamento generalizado, a superfície da Região se tornaria aerodinamicamente menos rugosa e, intuitivamente, espera-se que os ventos se intensifiquem nos níveis baixos da atmosfera, onde se encontram as maiores concentrações de umidade, transportando mais umidade para fora da Região e aumentando a disponibilidade de umidade para ser transformada em chuva nas regiões ao sul da Amazônia.
Na realidade, os impactos no clima global e na concentração global de CO2 [Acordo Climático de Paris, 2015] não é argumento para se manter a floresta. Os principais argumentos são a conservação da biodiversidade e a proteção dos solos, evitando sua erosão, assoreamento dos leitos dos rios, mudança da qualidade de suas águas e de toda vida que delas depende. Considerando que cerca de 25 milhões de pessoas vivem na Região, em sua grande maioria submetida ao um padrão de vida não compatível com a dignidade humana, a solução é identificar e testar métodos inovadores de desenvolvimento regional que explorem os recursos naturais, renováveis e não-renováveis, conservando a cobertura vegetal.