A “segunda sem carne” no Estado de São Paulo por Rogério Oliveira Anderson
Conforme amplamente noticiado, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou o Projeto de Lei n.° 87/2016, que institui, conforme ementa, a denominada “Segunda Sem Carne”, nas repartições públicas daquela unidade federada, salvo hospitais públicos e demais unidades de saúde pública, provocando polêmica no meio jurídico e econômico a partir de apressadas interpretações, data vênia, a respeito do alcance do referido normativo. O Governador do Estado já se manifestou no sentido de que irá vetar o projeto.
Deduz-se, em favor da medida, conforme consta nas justificativas do projeto de lei que o consumo de carne, em excesso, é prejudicial à saúde. Além disso, os apoiadores da medida firmam posição nas alegadas externalidades negativas da produção de carne sobre o meio ambiente (efeito estufa, aquecimento global, desmatamento, etc.) e sobre a qualidade de vida das populações. Invoca-se, outrossim, a necessária conscientização a respeito do sofrimento dos animais e sobre seu direito à vida.
No outro espectro, esgrimem-se argumentos a respeito da indevida interferência do Poder Público na liberdade de escolha do indivíduo já que, com efeito, não se compreende como razoável, num Estado Democrático e de Direito, a imposição, mesmo por lei, de dieta alimentar vegetariana, por qualquer pretexto que seja, aos cidadãos, especialmente os usuários do serviço público, como, v.g., os estudantes das escolas estaduais, muitos dos quais carentes de proteínas de origem animal em razão das reconhecidas dificuldades econômicas pelas quais passam expressivos segmentos da sociedade.
A alimentação, como se sabe, é direito social fundamental, previsto expressamente no artigo 6. ° da Carta de Outubro (que completa trinta anos em alguns meses sem que tenha sido integralmente regulamentada, diga-se) que, somado ao direito fundamental à liberdade (art. 5. °, caput, CF/88), compõem o quadro normativo que positiva ao nível constitucional a proteção do livre arbítrio e da autodeterminação do indivíduo no ato de alimentar-se. Em outras palavras, é possível defender a existência do direito à alimentação enquanto perspectiva da liberdade individual. Ou seja, observados os cânones legais relacionados à saúde e à sanidade, todos são livres para alimentar-se da forma como desejar.
Deste modo, a norma repete, no nível do direito à liberdade de alimentar-se, o conhecido conflito entre a liberdade individual e a “supremacia” da administração pública para, segundo alguns, “prover o bem público”, de acordo com os critérios estabelecidos pelo legislador. Entendo que, de forma indubitável, o Estado não possuiria o direito de limitar, assim, a liberdade individual caso a proibição de servir carne ultrapassasse os muros da administração, proibindo, v.g., a venda do produto por estabelecimentos particulares, ainda que em apenas um dia da semana, ainda que nos limites territoriais daquela unidade federada.
Mas a discussão é mais ampla: pode o Estado, nos termos da lei, limitar o fornecimento do produto em suas repartições, como reflexo da política de saúde pública, “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, nos termos do que dispõe o artigo 196 da Carta Constitucional? Em outras palavras: o poder público pode deliberar não fornecer carne aos usuários de serviços públicos em um, ou em mais, dias da semana por entender que tal alimento, ou qualquer outro, quando consumidos em excesso, não promovem a saúde da população?
A resposta é positiva, já que é dever do Estado, em conformidade com os dispositivos constitucionais acima promover a saúde de seus cidadãos e isto significa, inclusive, obedecer a critérios nutricionais na elaboração das dietas fornecidas em suas repartições que não contemplem carnes ou quaisquer outros produtos. O dever da administração, diga-se, é estabelecer e fornecer cardápios saudáveis e balanceados a partir de estudos técnicos fundamentados nas ciências da nutrição e da medicina já que o Estado é responsável objetivamente por suas ações e omissões, nos termos do artigo 37, § 6.°, da Constituição, sobretudo no fornecimento de alimentação em suas instalações.
No limite, a lei poderia suprimir o fornecimento de carnes na alimentação fornecida pela administração em suas repartições sem que, por isso, se pudesse cogitar de inconstitucionalidade material à luz do quanto foi discutido acima, ressalvado, por evidente, o dever de providenciar o devido balanceamento das dietas, com a adoção de alimentos alternativos à carne o que seria, segundo muitos, extremamente difícil do ponto de vista técnico, dadas as características nutricionais do produto (tanto é assim, que o texto aprovado ressalva da proibição o fornecimento de carne em hospitais e outras unidades de saúde), além, por evidente, das previsíveis objeções de ordem cultural.
Outrossim, não há direito adquirido à dieta carnívora, ou vegetariana, ou onívora, ou vegana, ou ayurvedica, mas, sim, à dieta saudável no âmbito das repartições públicas, e isto nos remete, por evidente, ao campo de estudos das ciências pré-jurídicas já referidas, ou seja, nutrição e medicina, que poderão estabelecer os critérios científicos que regerão a elaboração da norma jurídica pelo legislador.
Portanto, e ainda que se discorde (como eu discordo integralmente) da medida, do ponto de vista unicamente material o texto aprovado pela Assembléia Legislativa não ofende à Constituição. A rigor, diga-se, a matéria sequer é reserva de lei e poderia ter sido tratada por atos administrativos (decretos do Governador, portarias dos Secretários de Estado, etc.).
Por outro lado, é certo que a norma, caso seja sancionada, ofende à repartição de Poderes (art. 2.°, da CF/88) na medida em que invade as competências do Poder Executivo na gestão pública, imiscuindo-se nos critérios de elaboração dos cardápios das escolas públicas, por exemplo. Imagine-se, doravante, a potencial aprovação de outras normas com o mesmo conteúdo, limitando, a elaboração de refeições nos estabelecimentos públicos, e com a substituição do critério do gestor público pelo critério do legislador, beneficiado por maiorias eventuais decorrentes do processo legislativo.
A norma em estudo padece do vício de iniciativa na medida em que dispõe sobre organização administrativa, matéria reservada, nos termos do artigo 61, § 1.°, inciso “b”, da Constituição Federal, ao Chefe do Poder Executivo. Digna de nota é a incorreta referência, do Parecer 2291/2017, da Comissão de Constituição e Justiça, da ALESP, aos artigos 19, 21, inciso III, e 24, “caput”, da Constituição Estadual, para justificar a pretensa correção do processo legislativo da norma. É preciso recordar que a matéria em questão – iniciativa legislativa em matéria de organização administrativa – é norma simétrica para a qual a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estabelece que a Constituição Estadual deve obediência ao modelo estabelecido na Carta Federal.
Deste modo, abstraindo-se dos argumentos que dariam ensejo ao veto político do texto aprovado pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (repercussão econômica na cadeia produtiva da carne, manutenção de empregos, aspectos culturais, etc.) é certo que a norma não subsiste do ponto de vista constitucional-formal já que ofende à Separação de Poderes e à reserva de iniciativa legislativa para o Chefe do Poder Executivo em matéria de organização administrativa, devendo, deste modo, também sofrer o veto jurídico.
Por fim, ainda que não se visualize inconstitucionalidade material na medida, cumpre dizer que preocupa, e muito, iniciativa parlamentar desta natureza. Estabelecer proibições em matéria de costumes, como alimentação e vestuário, por exemplo, remete a regimes totalitários, ou teocráticos, que buscam adequar a vontade, e a conduta, do indivíduo, a programas estabelecidos pelo Estado, e por quem o controla.
Os objetivos da norma ora em discussão podem ser alcançados mediante educação e técnicas de incentivo, como ocorreu, v. g., com o cigarro, um produto que não foi banido, mas que tem sido cada vez menos consumido no país justamente em razão das campanhas de conscientização e limitação de uso em locais públicos.
Mais do que proibir, é mister educar e possibilitar que as pessoas façam suas escolhas de forma consciente, livres de qualquer tutela estatal que não sejam as estritamente necessárias às saúde e segurança públicas. Está correto o Chefe do Executivo do Estado de São Paulo ao anunciar que irá vetar o malfadado projeto de lei.