Quanto menos precisarmos da fiscalização, mais demonstramos o profissionalismo, por Roberta Züge
O tema é polêmico, mas antes de refutarem, peço que reflitam o quanto seria positivo se as cobranças quase não fossem necessárias. Se nossas organizações evoluíssem como esperamos que nossos filhos o façam, que saiam das fraldas, que utilizem sozinhos os sanitários, que realizem higiene adequadamente sem o famoso “estou pronto”, que comecem a organizar o quarto, que não precisemos mandar escovar os dentes, tomar banho, fazer lição, estudar, nem acordá-los para ir à escola. Que, do mesmo modo que queremos ver nossos filhos independentes, caminhando pelas próprias pernas, somente ouvindo nossos “conselhos” e orientações, pela experiência já vivida, as empresas também, depois de um tempo, do amadurecimento, não precisassem de alguém, o tempo inteiro, vigiando se estão fazendo corretamente.
Fiz uma apresentação durante um evento com o tema “Arcabouço Documental - Como Atender aos Requisitos e Manter a Rastreabilidade dos Processos e de Registros”, focado em como conceber e implementar requisitos legais com foco nas indústrias de produtos de origem animal. No mesmo dia, outras apresentações abordaram sobre os sistemas de inspeção, qualidade de leite, melinocultura, e o que a sociedade espera da inspeção. Mais outros assuntos foram debatidos, mas todos versando sobre o mesmo foco.
Pela experiência em implantar estes processos, galgando êxito nas fiscalizações e auditorias, muitas vezes me questiono sobre as reais dificuldades em atender aos requisitos. Minha hipótese que as empresas que estejam maduras, que realmente sejam profissionais, a fiscalização é mais uma etapa necessária para a transparência de todo o processamento ao consumidor.
De modo geral, os requisitos solicitados estão embasados em recomendações técnicas para garantia da sanidade dos produtos de origem animal. Salvo alguns nuances comuns de comportamento humano, de ambas as partes, às vezes para mostrar o poder. Sabidamente, muitas enfermidades podem ser carreadas pelos alimentos, desde enfermidades crônicas até contaminações que podem ocasionar doenças de forma aguda e até óbitos. Há relatos clássicos, como da professora de uma professora de dança, que aos 20 anos, após ingerir hambúrguer, que estava contaminado com E coli, desenvolveu anemia homolítica, uremia (insuficiência renal aguda), tendo ficado nove meses internada em hospital, incluindo mais três meses de coma induzido para prevenir convulsões. Ou o caso de uma menina de sete anos, que entrou em coma durante seis meses, teve o cérebro profundamente afetado e acabou ficando tetraplégica e sem capacidade de falar após ingerir um lanche de frango contaminado com Salmonella. O caso ocorreu em 2005. Os pais e um irmão também comeram o mesmo lanche, tiveram diarreia e vômitos, porém se recuperaram rapidamente.
Muitos outros casos são conhecidos, outros tantos nem são notificados, levantamentos indicaram que no Estado do Paraná, entre janeiro de 2009 a julho de 2014, foram notificados 105 surtos de toxinfecção alimentar e desses 19 casos (18,09%) eram de Salmonella. A principal forma de transmissão da Salmonella é pela via fecal-oral, normalmente por meio da ingestão de água ou alimentos contaminados. Cabe salientar que o número de surtos notificados de doenças transmitidas por alimentos (DTA’s) representa apenas a ponta de um iceberg, quando se compra com o total de ocorrências. Há uma sonegação de dados durante o processo de notificação. Estudos já demonstraram que apenas 10% do número real de surtos de toxinfecções alimentares são confirmados, em decorrência do atual estado de desenvolvimento dos serviços de vigilância epidemiológica, além da falta de conscientização da população frente ao grave problema existente.
Enfermidade como a Brucelose, que tem sua etiologia conhecida há décadas, há registros de que Hipócrates, em 460 A.C., fazia referência a pacientes com sintomas compatíveis com brucelose, já não deveriam ser motivo de preocupação. No entanto, ela tem assombrado até estados que apresentam um bom desenvolvimento sanitário, como Santa Catarina. Conforme a Diretoria de Vigilância Epidemiológica de Santa Catarina, (DIVE-SC) a brucelose humana foi identificada em 130 pessoas em 2015, a maioria dos casos na região Oeste. Um número muito superior ao ano anterior, quando foram contabilizados 20 casos em humanos. A brucelose é uma doença mais comum entre bovinos e suínos, (provocando mastite, aborto e nascimento de crias fracas). No entanto, quando atinge os seres humanos pode provocar sintomas como febre, sudorese noturna profusa, calafrios, fraqueza, dores articulares, cefaleia intensa, estado depressivo, entre outros sintomas. A contaminação ocorre principalmente pelo contato do homem com o animal doente ou pela ingestão de leite cru e derivados provenientes de animais infectados.
A preocupação com a enfermidade deveria estar superada, além de formas clássicas para erradicação, nos animais, já serem conhecidas, o tratamento térmico do leite, considerado o principal meio de contaminação por via alimentar, também deveria ser uma premissa. Assim, fica claro que diversas etapas, para garantia da sanidade do produto de origem animal, não são cumpridas.
Imagino que com o amadurecimento e maior profissionalização do setor, o papel da fiscalização cada vez será menor. Os fiscais deverão realizar suas atividades focando as ações preventivas. Irão supervisionar/auditar as empresas buscando a evidência de cumprimentos dos requisitos solicitados. Assim como, pontos de melhoria para o sistema. Algumas empresas vejo que isto já tem acontecido de forma mais natural, o técnico responsável realiza corretamente suas atividades, desde implementar os processos até sensibilizar e difundir o conhecimento para que as práticas sejam adotadas sistematicamente. Os empresários entendem que os requisitos são uma garantia para a qualidade do produto dele, e que podem significar a sustentabilidade da empresa. Ninguém quer sua marca envolvida em escândalos alimentares. E as fiscalizações são mais “tranquilas”, não há aquele temor: pelo carro do fiscal ter estacionado no pátio da empresa.
Não conformidades sempre irão existir, para elas há as ações corretivas. Afinal, errar continua sendo humano. Mas um ponto muito importante é já saber o que deverá ser realizado, caso uma não conformidade seja detectada. Empresas que mantém este arcabouço documental, com a rastreabilidade do processo de produção, podem comprovar se algum problema no alimento foi gerado dentro ou fora da indústria. No mês passado, no óbito de uma criança, que foi indicado ter sido ocasionado pela ingestão de um achocolatado, a empresa rapidamente avaliou as contraprovas do lote e tinha todos os documentos comprovando a eficácia do processo. Profissionais do setor logo identificaram que o caso não poderia ter ocorrido dentro da indústria, o que foi comprovado pouco tempo depois, com o transcorrer das investigações policiais.
Importante difundir que, estar em aderência aos requisitos legais, é uma forma sustentabilidade da organização, o supermercado que foi autuado hoje, por não manter as carnes na temperatura indicada, aliás carnes embaladas a vácuo e de marcas “nobres”, teve 162,2 quilos de carne inutilizadas, e uso dos equipamentos inadequados está suspenso até que as irregularidades constatadas sejam sanadas. E, claro, uma divulgação negativa da empresa, que poderá ter perdas bem maiores que os 162 kg de carne, até, por ser um mercado que atende uma classe mais abonada da cidade, que tem mais acesso a informação. Um controle de equipamento, manutenção, calibrações e verificações, que fossem feitos de forma correta, conforme a especificação do fabricante, iria mitigar o problema.
Penso que quanto menos precisarmos da mão forte do estado nos fiscalizando, fomentando, tutelando, tangendo, deliberando, etc., mais maturidade temos como sociedade. Não há espaço para o jeitinho, caso queiramos progredir. Infelizmente, ainda vejo que o estado deve continuar punindo muitos, caso contrário, as ações não são realizadas como preconizado.
Nota: Importante citar que um surto de DTA é definido como um incidente em que duas ou mais pessoas apresentam uma enfermidade semelhante após a ingestão de um mesmo alimento ou água, e as análises epidemiológicas apontam os mesmos como a origem da enfermidade. Os 105 casos no PR atingiram muitas pessoas.